Os nove homens acordaram assustados com os gemidos de dor vindos da cama onde Nestor Garay dormia na pequena cela que compartilhavam. Era por volta de 1h30 da manhã do dia 26 de junho de 2014 na Penitenciária de Big Spring, oeste do estado do Texas, quando alguns deles saltaram de seus beliches para verificar o que acontecia com Garay. Ele não respondia a estímulo nenhum.
O grupo pediu ajuda a um carcereiro. Ao chegar à clínica da prisão, segundo relatórios médicos, Garay permaneceu inerte. Sua mão direita estava fraca e ele havia urinado nas calças. “Levem-no ao hospital. Este homem está morrendo”, implorou um dos companheiros de cela. Em vez disso, deram a Garay, de 41 anos, medicamentos anticonvulsivos e o prenderam novamente.
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Quando a enfermeira da manhã o viu às 6h15, seu rosto estava caído e seu braço direito, contraído. Demorou mais de uma hora para que fosse levado ao pronto-socorro local e depois transferido para um hospital maior na cidade de Midland. Lá, John Foster, o neurologista que o examinou, disse que Garay havia sofrido um derrame e que qualquer esforço para salvar sua vida, após tantas horas, seria inútil. Garay morreu, algemado a uma cama de hospital. “O momento certo para salvar sua vida teria sido… quando ele caiu da cama”, afirmou Foster.
Big Spring é diferente das demais prisões federais dos Estados Unidos. É uma das 11 instalações do Bureau of Prisons (BOP) usadas exclusivamente para estrangeiros. Alguns são detidos por crimes que qualquer um poderia cometer: a prisão de Garay, por exemplo, ocorreu por venda de drogas. Mas dos cerca de 23 mil internos desse obscuro sistema carcerário, 40% cumprem pena por crimes de imigração, de acordo com dados de 2014 – a maioria por “reentrada ilegal” ou por cruzar novamente a fronteira após ser deportada.
Numa situação pouco comum no Sistema Penitenciário Federal norte-americano, empresas privadas operam todas essas instalações. Cinco delas, incluindo Big Spring, são dirigidas pela The Geo Group Inc. Nesses lugares, a assistência médica normalmente é fornecida por terceirizadas.
PublicidadeAs privatizações de presídios federais nos EUA começaram no fim da década de 1990. O então presidente Bill Clinton prometeu controlar a quantidade de servidores públicos federais, mas ainda assim assinou um projeto de lei que faria crescer um já inchado sistema penitenciário.
Então, no plano orçamentário que enviou ao Congresso em 1996, a Casa Branca incluiu um projeto de contratação de empresas que dirigiriam quatro prisões. “O Sistema Penitenciário Federal”, dizia o documento, “terá sua capacidade expandida e custos cortados por meio da privatização.”
Até 2013, esses presídios já haviam custado aos contribuintes US$ 625 milhões por ano. Um estudo do Bureau of Prisons revelou que os custos adicionais referentes ao monitoramento dos contratos supera qualquer economia que a privatização tenha porventura produzido.
Mesmo assim, tais instalações são agora parte do Sistema Penitenciário Federal. Em 2014, o Bureau of Prisons reiterou que imigrantes “eram um grupo adequado para ser alojado em instituições operadas pela iniciativa privada, já que desfruta de menor oferta de programas visando à reintegração nas comunidades norte-americanas”.
Como informei no The Nation, as prisões privatizadas estão submetidas a um regimento diferente e menos rigoroso. Desde que começaram a funcionar, em 1997, têm sido alvo de reclamações relacionadas à precariedade do atendimento médico.
“Esses presídios operam sem os sistemas-padrão de controle presentes nas demais instalações do Bureau of Prisons”, afirmou Carl Takei, advogada da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) e coautora de um relatório sobre o caso.
Em pelo menos cinco vezes desde 2008, internos das penitenciárias se rebelaram, em grande parte com reivindicações sobre cuidados à saúde. No entanto, o panorama da negligência médica é pouco transparente.
Em resposta a um pedido de acesso à informação, o Bureau of Prisons divulgou recentemente mais de 9 mil páginas de arquivos com registros médicos sobre 103 homens que morreram nessas prisões de 1998 a 2014. Eles fornecem um olhar acurado sobre os serviços de assistência médica nesse sistema obscuro – e contêm impressionantes indícios de negligência.
Os documentos contam a história de um homem que sofria de câncer, aids, problemas no fígado e coração e foi submetido a atrasos expressivos no tratamento. Revelam também departamentos médicos que constantemente falham em diagnosticar pacientes, apesar dos sintomas óbvios, e profissionais de saúde pouco qualificados pressionados a desempenhar atividades fora do âmbito de suas funções.
Os arquivos e evidências foram analisados por um grupo de médicos independentes. Em 25 dos casos, os examinadores encontraram indicações de que a assistência médica inadequada contribuiu para causar mortes prematuras.
Um novo tipo de crime
A prisão não era um risco iminente quando Eloy Flores cruzou o rio Grande, na fronteira entre México e EUA, com destino ao Texas em 1990. Naquela época, o jovem de 19 anos simplesmente atravessou as águas e conseguiu uma carona para Silver Spring, no estado de Maryland, onde um amigo lhe havia dito que poderia encontrar emprego.
Logo que chegou, trabalhou como diarista. Pouco tempo depois, abriu uma empresa de pintura. Casou-se e teve com Miriam, sua esposa, quatro filhos, todos cidadãos norte-americanos. No início da década de 2000, já haviam comprado uma casa.
Em 2008, Flores e Miriam decidiram que seus filhos deveriam conhecer o México e aprender a falar espanhol. Eles planejaram se mudar para o país e retornar aos EUA quando seu filho mais velho, Eduardo, tivesse idade para entrar na universidade. A estada da família ocorreu conforme o planejado, até o momento da volta.
A fronteira havia se transformado desde que Eloy Flores pisou nos Estados Unidos pela primeira vez. O número de agentes federais que percorrem o deserto é cinco vezes maior hoje, o que coloca em situação perigosa as pessoas que tentam ultrapassar ilegalmente os limites territoriais norte-americanos.
Em 2011, Eloy e Miriam deram início aos preparativos para o retorno. Eles cruzariam a fronteira primeiro e depois seus filhos voariam para Baltimore, em Maryland. Eloy Flores lembra-se de ter sido deportado cinco vezes em três anos.
Na tentativa mais recente, o casal não foi imediatamente deportado, mas levado a um Tribunal Federal em Del Rio, no Texas, onde se deparou com um programa chamado Operation Streamline (algo como “Operação Agilidade”, em português). Lançado em 2005 como uma parceria entre os departamentos de Segurança Interna e de Justiça, tem o objetivo de acelerar ações penais por entrada ilegal no país.
No dia em que os Flores chegaram ao tribunal, mais de 80 homens e mulheres, no espaço de duas horas, confessaram ter entrado de forma ilegal nos EUA. “Você não está sendo processado por ser uma pessoa ruim ou por não ter boas razões”, disse o juiz Victor Garcia a Eloy Flores, em gravação feita durante audiência no dia 18 de novembro de 2013, antes de condená-lo a quatro meses de prisão. “Não posso impedir você de voltar. Mas posso mostrar o que acontecerá com você se o fizer: será preso.”
Naquele ano, no segundo mandato do presidente Barack Obama, ações penais por entrada ou reentrada ilegal nos Estados Unidos atingiram a casa de 91 mil. Flores e o restante dos presidiários precisavam ser jogados em algum lugar.
Um novo tipo de prisão
Após a sentença, Eloy Flores foi separado da esposa e colocado em um ônibus para Big Spring. Enquanto Miriam Flores cumpriu apenas dez dias em outra prisão gerida pelo The Geo Group, ele foi levado para a penitenciária no oeste do Texas. Mesmo 18 meses depois do fim de sua pena, quando conversamos no pequeno cibercafé que gerencia em Atlacomulco, no México, o tempo que passara preso ainda o abalava.
As celas eram apertadas, abrigavam cerca de dez homens e os guardas eram agressivos, ele descreve. “Não se pode nem olhar para eles.” O pior, conta, “é que lá vi várias pessoas realmente doentes.” Muitas delas, diz, “não passavam por nenhum tipo de tratamento.”
Eloy se sentiu como se tivesse escapado de um tiro ao chegar em casa vivo e saudável, quando, cerca de seis meses depois, recebeu uma ligação que lhe deu calafrios. Era um artista, ex-detento de Big Spring, que costumava se sentar no pátio descoberto da prisão para desenhar e de quem Flores havia se tornado amigo.
Um dos companheiros de desenho do artista era um homem chamado Nestor Garay, querido entre os presos e conhecido por dividir seus lanches com os demais. “Ele me contou que Nestor havia morrido lá dentro”, relatou Flores. “Que o pessoal da prisão não havia cuidado dele… Pensei que poderia ter sido eu.”
Os registros médicos de Garay revelam um desastre, narram os profissionais que os analisaram. Muitas das falhas em seu caso parecem sistemáticas, resultado de um sistema de atendimento de saúde defasado por cortes de custo.
Nas penitenciárias dirigidas pelo Bureau of Prisons, enfermeiros registrados e assistentes médicos cuidam da rotina do atendimento. Mas as prisões privatizadas normalmente empregam profissionais menos treinados e mais baratos que dão conta do mesmo trabalho. “O fato é que o sistema – Bureau of Prisons e The Geo Group – contrata poucas pessoas e as coloca em posições para as quais não foram apropriadamente treinadas”, explica Russell Amaru, assistente médico na Penitenciária de Big Spring.
Quando foi acordado por uma ligação da enfermeira, conta Amaru – e um relatório interno da prisão confirma –, ela não informou corretamente os sintomas de Garay. Tampouco era uma enfermeira suficientemente qualificada para fazer diagnósticos.
Técnicos de enfermagem normalmente aparecem nos 103 documentos levantados por essa investigação como os únicos cuidadores que um prisioneiro doente vê por dias ou até semanas. Os médicos responsáveis pela avaliação dos dados constaram que, muitas vezes, eles desempenham funções além de suas capacidades profissionais. Em 19 dos arquivos que recebemos, os examinadores enquadraram essa situação como atendimento médico inadequado.
O emprego de pessoal menos capacitado aparentemente não viola os contratos do Bureau of Prisons com as empresas privadas. Para permitir economia de recursos, o órgão submete o funcionamento dessas prisões a normas menos rigorosas.
“Quanto mais especificidades você pede no contrato, mais dinheiro a empresa contratada exigirá para oferecer o serviço”, assinala Donna Mott, uma recém-aposentada agente de monitoramento de contratos do Bureau of Prisons. “Se você coloca como especificidades as mesmas coisas que o BOP desempenha… Isso basicamente custará às contratadas o mesmo valor que o Bureau gasta para operar suas instalações.”
Dr. John Farquhar, ex-diretor clínico da Penitenciária de Big Spring, reclamou abertamente em registros médicos sobre o “atendimento precário” prestado no local e descreveu as medidas tomadas para cortar despesas, que incluíam a redução de transferências a prontos-socorros. “Sente-se sempre a pressão para não ultrapassar o orçamento”, disse Farquhar, que se aposentou pouco tempo após a morte de Garay.
O posicionamento do Geo Group veio em uma breve nota na qual afirma que suas prisões “atendem às exigências contratuais estabelecidas pelo FBOP (Federal Bureau of Prisons), assim como a todas as políticas e programas executados nas instalações operadas pelo FBOP”.
A terceirizada responsável pelo atendimento médico no presídio, Correct Care Solutions, comunicou em uma nota à parte que fornece “uma gama abrangente de serviços de saúde conforme as obrigações contratuais”.
Segundo Mott, o fato de os contratos não disporem de demandas específicas em diversas áreas de operação faz com que os órgãos fiscalizadores “não tenham meios de cobrar os prestadores de serviço”.
O contrato do Bureau of Prisons com o Geo Group para a administração da Penitenciária de Big Spring poderá ser renovado neste ano.
* Reportagem originalmente publicada no site Reveal, do Center for Investigative Reporting. Leia aqui o texto original em inglês, na íntegra. Traduzido por Anna Beatriz Anjos.
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