Vicente Bagnoli*
O Banco Central recentemente tomou uma importante decisão que favorece os servidores públicos, ao vedar as instituições financeiras, na prestação de serviços e na contratação de operações, a celebração de convênios, contratos ou acordos que impeçam ou restrinjam o acesso de clientes a operações de crédito ofertadas por outras instituições, inclusive aquelas com consignação em folha de pagamento. Ao publicar a Circular nº 3.522, o Banco Central coloca fim à exclusividade no oferecimento de crédito consignado e acaba reconhecendo que tal conduta fere a livre concorrência. Porém, a decisão, no entendimento do Bacen, não se aplica a milhares de servidores públicos que continuarão alijados de exercer a sua liberdade de escolha e reféns do monopólio caso a circular seja aplicada apenas a novos contratos, deixando inalterados os contratos já celebrados.
A recente decisão do Bacen tem como motivação, além de outras, a representação protocolizada em junho de 2010 pela Federação Interestadual dos Servidores Públicos Municipais e Estaduais dos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Piauí, Roraima, Sergipe e Tocantins (Fesempre), na Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE/MJ) em desfavor do Banco do Brasil. Requereu a Fesempre o reconhecimento de que a conduta em exigir a exclusividade é anticoncorrencial, o fim da exclusividade em todos os contratos existentes e a proibição para os futuros, bem como a condenação do Banco do Brasil por conduta anticoncorrencial.
Em que pesem os fortes indícios trazidos na representação demonstrarem a pertinência de instauração de processo administrativo por infração à ordem econômica, entendeu a SDE ser incompetente para tal análise em razão do parecer da Advocacia-Geral da União 01/2001, optando pelo arquivamento do feito e o envio da representação ao Bacen para a apuração de denúncia de infração à ordem econômica e aplicação de eventual sanção, e ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para ciência.
Desde então, Cade e Banco Central realizam análises e constantemente a Fesempre peticiona juntando informações e cobrando celeridade no caso diante dos prejuízos causados diariamente aos servidores públicos pela falta de competição entre os agentes que poderiam oferecer crédito consignado em razão da exclusividade.
Pouco antes de publicar a circular, o Bacen manifestou-se no caso Fesempre informando que “a ausência de regulamentação da matéria, no âmbito do sistema financeiro nacional, impede que as condutas sejam analisadas com vistas a eventual instauração de processo administrativo punitivo contra a instituição financeira representada”.
Com isso, o Banco Central reconheceu que a competência que lhe é assegurada no entendimento da Advocacia-Geral não podia ser exercida, pois faltava regulamentação da matéria. Ou seja, o Bacen atestou que nada faria acerca dos contratos com cláusulas de exclusividade de crédito consignado em andamento. Porém, uma vez reconhecida pelo próprio Bacen a ilegalidade da cláusula de exclusividade em crédito consignado, não deveria o Banco Central mudar o seu entendimento no caso Fesempre que beneficiaria todos os servidores públicos do país?
Oportuno destacar que, com fulcro no próprio parecer AGU 01/2001, parágrafo 81, “o Banco Central, tendo em vista a competência genérica que lhe é atribuída pelo §2º do art. 18 da Lei nº 4.595/64 de regular as condições de concorrência entre instituições financeiras, tem ampla margem de discricionariedade para identificar os casos de infração às regras de concorrência do setor, podendo editar regras próprias ou valer-se de critérios constantes de outras leis, inclusive da Lei nº 8.884/94”.
O Banco Central, como agente regulador do sistema financeiro, ao publicar a circular regulou o mercado de crédito consignado proibindo sua contratação com exclusividade. A circular deve ser aplicada inclusive aos contratos existentes. Afinal, se a prática limita a concorrência, prejudicando desta forma todos os servidores públicos do país, não se pode cogitar que a proibição da exclusividade se aplica apenas para os contratos futuros. Admitir isso é aceitar que as infrações à ordem econômica permaneçam existindo.
A Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 8.884/1994) é bastante clara ao dispor em seu artigo 20 que constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; IV – exercer de forma abusiva posição dominante.
A circular é um avanço do tema dentro do Banco Central que reconhece a exclusividade como sendo prejudicial. Contudo, a exclusividade deve ser eliminada, inclusive, dos contratos já existentes. Neste sentido, vale observar que nos termos do protocolo de entendimentos Cade/Bacen, datado de 9 de dezembro de 2008 e assinado pelos procuradores do Cade, do BACEN e da União (fls. 05), “compete ao Cade aplicar as sanções previstas na Lei 8.884/94 por práticas que configurem infração contra a ordem econômica, inclusive no âmbito do sistema financeiro nacional”.
Por essa razão, e com base na Lei de Defesa da Concorrência, que trata das infrações à ordem econômica, ainda que o Bacen reconheça que nada possa fazer com relação aos contratos já celebrados, cabe ao Cade, autarquia responsável por defender a livre concorrência no país, analisar e julgar a exclusividade que vem sendo praticada para fazer imperar a concorrência no crédito consignado para o bem dos servidores públicos.
*Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, Mestre em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie, onde é Professor Adjunto da Faculdade de Direito, consultor não-governamental da International Competition Network – ICN e advogado. Email: bagnoli@vicentebagnoli.com.br.
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