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Preso na Penitenciária Compacta de Potim II, no Bairro das Correias, em São Paulo, João Pedro enviou a carta a Brasília pelo meio tradicional, os Correios. Em letra cursiva, com linguagem formal que sugere certo conhecimento sobre a legislação, ele relata o que considera “infração à lei federal” no que diz respeito ao sistema penitenciário. “O ora requerente, assim como outros inúmeros cidadãos, encontra-se preso e recolhido em prisões sem vagas, e com exasperação da superlotação, com evidente ilegalidade ao artigo 85, parágrafo único, da Lei 7.210/84 [Lei de Execução Penal], e artigo 5º […] da Constituição Federal […] Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992, artigo 7º, item 2”, diz trecho da carta, com referência à legislação sobre “direito à liberdade pessoal”.
“Destarte, é evidente a infração de lei federal de ordem pública, pelo governador do Estado de São Paulo […] e da Justiça pública Estadual, com permissão tácita, por inércia, da presidenta da República”, acrescenta João Pedro. “De outro vértice, a Lei de Execuções Penais fixou o prazo de seis meses, a contar da sua publicação, para que tivesse sido providenciada a construção de estabelecimentos penais em número suficiente ao ingresso dos condenados […] Como passados 20 anos e nada, praticamente, foi providenciado, a situação vem se agravando.”
Ainda segundo a carta, João Pedro denuncia as “nefastas consequências” causadas pelo suposto descaso do governo com o sistema prisional – o entre elas o “fomento às facções criminosas” em São Paulo. Sem apresentar assinaturas endossando sua carta, o preso arrola como testemunhas de sua acusação, além dele mesmo, o secretário de Administração Penitenciária de São Paulo, Lourival Gomes, e o presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) do Ministério da Justiça, Luiz Antônio Silva Bressane.
Como “provas documentais” de sua denúncia, João Pedro diz que, por estar preso, não pode apresentá-las materialmente. Por isso, requer como tais a declaração formal, por parte do CNPCP, da lotação máxima de cada presídio do estado, com o objetivo de confrontá-la com o número de internos de cada unidade prisional. A tarefa de contar os presos, solicita João Pedro, é da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo.
A Penitenciária de Potim II foi inaugurada em 18 de março de 2002. Com área construída de 7.854,69 m², tem capacidade máxima para 844 detentos. Mas, segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, o presídio reúne atualmente mais do que o dobro dessa população prisional. Em junho deste ano, um agente penitenciário foi agredido e, depois de uma revista geral, foram encontrados celulares, chips, baterias, fones de ouvido, drogas e espetos de ferro. Diversas rebeliões já foram promovidas no presídio.
Publicidade“Bastião de Justiça”
A carta, datada de 5 de outubro, foi formalmente recebida no dia 23 de outubro pela Central do Cidadão do STF, departamento subordinado à Secretaria Geral da Presidência. Ou seja, na semana que antecedeu a reeleição de Dilma em segundo turno. Depois dos devidos procedimentos protocolares, o chefe da central, Marcos Alegre Silva, encaminhou ofício à Ouvidoria Parlamentar da Câmara, em 28 de outubro. A mensagem do presidiário, no entanto, só chegou à Secretaria Geral da Mesa da Câmara na última quinta-feira.
“A carta chegou pelos Correios. Recebemos cerca de 200 cartas como essa, todos os dias, vindas do sistema penitenciário de todo o Brasil. São cartas com pedidos diversos, como progressão de regime, livramento condicional, ocorrências sobre execução de pena, denúncias de maus tratos, pedidos de tratamento médico…”, disse Marcos Alegre ao Congresso em Foco. Ele informou que João Pedro já havia escrito para o STF em outras ocasiões, com outros propósitos. No entanto, diz o servidor, apenas pedidos de informação processual e casos de habeas corpus são examinados na central. “Os demais pedidos encaminhamos aos órgãos competentes.”
Para o chefe da Central do Cidadão, o STF é procurado, principalmente, por cidadãos humildes de “rincões do país”, sem acesso à internet ou domínio das tecnologias de comunicação. Ele diz que, além das cartas manuscritas, são protocolados no STF diversos pedidos por fax e formulários eletrônicos, com a ajuda de servidores da corte. “As pessoas têm o ideário do STF como o último bastião de Justiça”, disse Marcos Alegre.
Ele afirmou ainda que, no caso de João Pedro Boria, provavelmente se trata de um “autodidata”. Devido ao tempo de sobra na prisão, explica Marcos Alegre, alguns presos consomem “livros de jurisprudência” e adquirem o conhecimento suficiente para elaborar seus próprios pedidos, imersos que estão no universo jurídico de sentenças e habeas corpus. “O mundo deles gira em torno disso. Na maioria das vezes é o próprio preso quem escreve. Eles acabam por adquirir um conhecimento jurídico interessante”, declarou o servidor, lembrando que esses presos viram os “escribas da cadeia” ao redigir também para os colegas de cela.
Golpe do emprego
Identificado como empresário, João Pedro tem outras complicações na Justiça. Além da condenação por roubo, pesa contra ele acusação de estelionato, crime pelo qual foi preso em 2007 pelo Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra). Segundo a denúncia, ele promovia o “golpe do emprego” por meio da empresa Human Desenvolvimento Organizacional e Internacional, no município de São José. A fraude consistia na oferta de vagas em empresas de renome, com altos salários, mediante o pagamento de uma taxa prévia. Em vez de obter a colocação, os interessados pagavam por um serviço não prestado.
Um advogado carioca contou à reportagem ter sido vítima de João Pedro Boria. Ela lembra que, recém-formado em Direito, procurou os serviços da Human Desenvolvimento para tentar uma vaga de emprego. Foi ludibriado, diz: “Até hoje eu tenho créditos a receber”, diz o advogado, que instaurou processo judicial contra João Pedro e, em fevereiro de 2008, conseguiu a penhora dos bens do empresário, segundo registros do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro.
Em agosto de 2006, o blog Imprensa Marrom foi condenado a pagar R$ 3.500 por danos morais a João Pedro, devido à veiculação, no blog, de comentário de internauta considerado ofensivo pela Justiça. A notícia foi veiculada pela Folha Online, em 3 de setembro daquele ano. “A decisão […] é a primeira condenação no Brasil por Comentários, ou seja, não por texto de quem faz o blog, mas de um de seus leitores, com veiculação automática”, diz a reportagem.
O Congresso em Foco fez, em outubro de 2012, uma radiografia sobre os pedidos de impeachment protocolados na Câmara contra a Dilma, então em seu segundo ano de mandato – todos foram arquivados por falta de embasamento legal. Àquela época, Dilma ainda gozava de certa aprovação popular (chegou a 65% em março de 2013), e sequer poderia imaginar que enfrentaria as manifestações de junho de 2013, quando viu a aprovação ao seu governo despencar para 30%. A reportagem mostrava que cidadãos comuns eram os autores dos requerimentos, todos apontando algum tipo de desmando que, em suas avaliações, Dilma teria cometido.