Congresso em Foco – Quais serão suas prioridades à frente do Conselho Nacional da Juventude?
Alessandro Melchior – Temos dois eixos. Um é a agenda política externa da sociedade, como a reforma do ensino médio, a democratização dos meios de comunicação e a reforma política. A gente reconhece que não tem possibilidade de impacto real sobre esses temas, mas pode agregar força nesse debate. O outro eixo é o acompanhamento das políticas de juventude no governo federal. Há um entendimento, até no próprio governo, de que a política de juventude hoje é o Prouni (Programa Universidade para Todos), o Fies (Programa de Financiamento Estudantil) e o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego). O Pronatec é feito muito em parceria com o sistema S. Há um marco de demandas de políticas da juventude hoje não reconhecidas pelo governo, como as da população do campo e da comunidade LGBT. Essas áreas priorizadas pelo governo são importantes, mas têm elementos contraditórios.
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Que contradições são essas?
O Pronatec tem o objetivo de oferecer 8 milhões de vagas. Essas vagas são ofertadas via sistema S, sem licitação, com professores contratados sem direitos trabalhistas. É um recurso público utilizado por determinada classe social de forma privada. Há suspeitas de problemas na prestação de contas e execução. O problema do Prouni é a falta de fiscalização do ensino superior. Não há controle de qualidade. Geralmente, quem vai para faculdade particular é o estudante pobre, que não tem condições de passar na universidade pública. Aí ele é penalizado pela baixa qualidade de ensino. Hoje o programa Ciência sem Fronteiras, que é supervalorizado no Ministério da Educação, não trabalha com a área de humanas. Acham que só é importante formar em exatas, tecnologia e infraestrutura. Vamos formar, mas para que tipo de sociedade e cidadania? Programas como o Projovem, com elementos de transferência de renda e recuperação de jovens, têm sofrido com o descaso do governo nos últimos dois anos.
Há uma discussão acalorada na sociedade e no Congresso a respeito de temas como drogas e homossexualidade. Na sua opinião, o governo Dilma tem sabido lidar com essas questões?
Um jornalista dizia que havia alguns poucos elementos sombrios no governo Lula. Acho que o governo Dilma começou com mais elementos sombrios do ponto de vista de vários temas. Há descaso total da presidenta Dilma em relação ao tema LGBT. Em 2008, tínhamos de 40 a 50 centros de referência no combate à homofobia. Hoje, se tivermos cinco, é muito. De todo o orçamento destinado ao combate à homofobia do ano passado, nem R$ 1 milhão foi executado. A presidenta disse que não é papel do governo fazer defesa de opção sexual. Isso mostra que ela tem dificuldade de entender o que é avanço de direitos civis e de cidadania. Tem um núcleo duro do governo que combate essa agenda. Os poucos avanços que conseguimos vieram do Judiciário, com o reconhecimento da união civil pelo Supremo Tribunal Federal e a decisão do Conselho Nacional de Justiça que obrigou os cartórios a registrarem esse tipo de união. É importante, mas é muito triste que esses avanços em direitos civis tenham vindo de um poder não político, não legitimado pelo voto popular. Isso mostra como estamos mal das pernas do ponto de vista do poder político, tanto no Legislativo quanto no Executivo.
O que está por trás desses recuos do governo?
Há uma aliança muito forte para garantir a governabilidade, por meio da relação fisiológica com o Congresso, do fundamentalismo religioso e do ruralismo. Brincamos que é o eixo do mal – o apoio à grande mídia, o fundamentalismo religioso e o agronegócio. A manutenção dessa aliança é um erro estratégico que tem dificultado o avanço dessas pautas. Não vejo necessidade de se manter um governo que se diz progressista com uma base conservadora como essa. Isso não faz o país avançar, mas retroceder em direitos. A gente tem problema no interior do governo. No Ministério da Educação, por exemplo, a pauta homofobia não entra.
Não entra por causa do ministro Aloizio Mercadante?
A gente já teve reuniões com o ministro. A simpatia é grande, mas o encaminhamento das pautas é reduzido. O kit homofobia foi vetado ainda na gestão do Fernando Haddad por orientação expressa da Presidência da República. Mas até hoje a gente não conseguiu retomar essa discussão no MEC. Não dão abertura para voltarmos a conversar. As informações que a gente tem é que documentos que trabalham com o tema homofobia são vetados, precisam ser reeditados. A palavra homofobia não entra no MEC.
Isso ocorre desde a paralisação das votações no Congresso, promovida pela bancada evangélica, contra o kit-gay?
Isso, desde o kit-gay e a ameaça de convocação do ministro Antonio Palocci naquela época.
Que avaliação você faz da posição do governo Dilma em relação às drogas?
Do ponto de vista das drogas, há uma miopia maior do governo. Não é só um elemento de disputa de opinião política, é uma questão matemática. Temos no Brasil uma política repressiva, que garante reserva de mercado para o crime organizado. O crime organizado sustenta o sistema financeiro e político em todo o mundo. Em 2008, ano em que estourou a crise financeira, mais de 400 bilhões de dólares foram lavados do crime organizado para o sistema financeiro. Elas sustentam campanhas e não têm impacto na saúde da população brasileira como o álcool e o cigarro. Quem defende o projeto que passou na Câmara é a galera que quer financiar o fundamentalismo religioso por meio das comunidades terapêuticas. Em 2011, o Conselho Federal de Psicologia divulgou relatório que comprovava, após visitas a inúmeras casas terapêuticas vinculadas a entidades religiosas, que muitas dessas casas viraram centros de tortura.
Que consequências essa política antidrogas deixa?
Hoje a política antidrogas é ineficiente, burra, inconsequente, aliada do crime organizado, na contramão do que vem discutido em nível mundial. O próprio governo dos Estados Unidos, que sempre foi propulsor da política de guerra total às drogas, já tem reconhecido que o foco não deve ser mais esse. A OEA vai fazer seminário no final de junho também nesse sentido. Enquanto isso, do ponto de vista interno, temos uma omissão do governo federal que resulta na morte da juventude e no financiamento do fundamentalismo religioso. No Congresso Nacional, quase todos os deputados que defendem a internação compulsória são ligados a essas instituições religiosas.
Você citou o núcleo duro do governo, que seria responsável por esse encaminhamento deformado desses temas. Quem é esse núcleo duro?
Se você analisar a expressão pública da Esplanada dos Ministérios no governo Lula, os ministros falavam, os temas eram discutidos na sociedade, as pastas discutiam entre si. Havia uma vida pública agitada no centro do governo federal. No governo Dilma, isso não existe mais. Ministro não dá entrevista. Quando fala, é altamente cerceado. A ministra Eleonora Menicucci, quando assumiu a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, disse que era, pessoalmente, a favor do aborto. Logo em seguida, teve de se retratar. No inicio do governo, no Fórum Social Mundial, o ministro Gilberto Carvalho disse que uma das prioridades do governo seria a disputa ideológica com setores conservadores, como a bancada evangélica. Foi obrigado a se desculpar. O núcleo duro está fora desses eixos que citei. A Casa Civil é responsável por muitas das dificuldades que as pautas e os direitos sociais têm enfrentado no Brasil, assim como o Ministério da Educação. E existe, ainda, uma diferença de perfil da presidenta Dilma e do ex-presidente Lula.
Esse núcleo duro seria formado por Dilma, Mercadante e Gleisi?
O núcleo duro são os ministérios mais próximos da presidenta, como a Casa Civil, a Secretaria de Relações Institucionais, a Secretaria-Geral da Presidência. O avanço de políticas sociais e garantia de direitos tem sido empacado pela Casa Civil, pela indisposição pessoal da presidenta em comprar brigas, pelo ministro Mercadante e pelo ministro Alexandre Padilha, que tem feito uma gestão recuada no Ministério da Saúde em vários momentos. Os ministros Paulo Bernardo [Comunicações] e Helena Chagas [Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República] também estão inseridos nesse núcleo duro do governo.
E a questão da meia-entrada e da meia-passagem, que o Congresso está definindo no Estatuto da Juventude e numa lei geral? Não há um excesso de benefícios dessa natureza, que acaba prejudicando o restante da população, que paga a conta?
Dá para pensar que existe um exagero. A gente tem de entender que a meia é uma política de ação afirmativa de acesso à cultura para populações que historicamente têm mais dificuldade. Para estudantes, que estão em processo de formação, idosos e professores, tem um elemento de ação afirmativa. Mas há um elemento de excesso também. A questão da renda também deveria ser levada em conta. Você pode ser estudante de escola particular muito cara e, por isso, não precisar dessa ação afirmativa para ter acesso aos bens culturais. O Estatuto da Juventude traz um avanço importante que é garantir a meia-entrada a jovens de baixa renda que não estudam. O problema é que, como não há uma legislação nacional aprovada, o que acontece é que os estados criam política de meia-entrada para policiais, bombeiros, professores de ensino fundamental, médio e universitário. Cada hora um deputado corporativista garante a meia-entrada para a sua categoria. Acaba não existindo meia-entrada para ninguém, porque o valor é maior.
A meia-entrada não inviabiliza grandes grupos artísticos, mas pode prejudicar grupos autônomos, não?
São dois trabalhos paralelos. Quando discutimos a política cultural, é muito no viés de criticar a Lei Rouanet, esse instrumento que dá ao setor privado a possibilidade de garantir o financiamento da cultura no Brasil, de maneira muito elitizada, alcançando o público de artistas de grande expressão. A gente defende a meia-entrada para o público que precisa de política afirmativa para ter acesso aos bens culturais. O que existe de problema é o entendimento de que, com a redução do universo de quem tem direito à meia, o preço vai baixar. Isso não existe. No Senado, o Estatuto da Juventude limitou a 40%. E na Câmara o projeto de lei geral da meia-entrada, relatado pelo deputado Vicente Cândido (PT-SC), também limitou essa cota a 40%. Isso significa que estudantes, adolescentes e idosos vão disputar esses 40% com professores, policiais militares e pastores, todas as diversidades que os estados acharem importante. Aí não haverá meia-entrada para ninguém. O grande defeito desses dois projetos é a falta de fiscalização. Falam de um limite de 40%, mas não dizem como isso será fiscalizado. Os grandes produtores culturais é que vão dizer quando for alcançado o limite.
Que apoio vocês têm para tentar reverter essa decisão na Câmara?
Do ponto de vista da meia-entrada, a gente não tem mais a disposição de fazer esse debate da cota. No mérito, a gente perdeu. Não vamos retomar essa discussão. O Estatuto foi aprovado há mais de um mês no Senado e ainda não foi para a Câmara. A gente desconfia que seja o problema da meia-passagem. É possível que haja um lobby das empresas de transporte coletivo.
Por quê?
O projeto garante direito até duas passagens de ônibus para estudantes e jovens de baixa renda, por veículo, e também direito a meia-passagem a jovens estudantes de baixa-renda. Ele estende o benefício do Estatuto do Idoso para juventude de baixa renda. Isso tem impacto no lucro das grandes empresas, que vão continuar repassando o custo para a grande população. Nunca reduzem o lucro.
Esse pensamento em relação ao governo Dilma é compartilhado por outros setores dos movimentos sociais?
No governo FHC, a relação com os movimentos sociais era ruim. O diálogo com os trabalhadores sem-terra, a CUT e a UNE era na base do cassetete e da cavalaria. No governo Lula, houve aposta no diálogo, com dezenas de conferências nacionais nas áreas da juventude, da comunidade LBGT, das mulheres, da igualdade racial. Todos os temas entravam na agenda do governo. A reforma agrária avançou muito, havia greve no funcionalismo.
Falta esse diálogo no governo Dilma?
Com o governo Dilma, você percebe uma queda desse eixo de gestão que é o dialogo. Há poucos dias o MST ocupou o Ministério de Minas e Energia. A Polícia Federal estava disposta a tirar os militantes na pancada. Não teve greve considerada legal ou legítima pelo atual governo. A reforma agrária foi reduzida. A política de combate à homofobia acabou. O governo Dilma é mais conservador na relação com os movimentos sociais do que o governo Lula. O “eixo do mal” da política nacional – a grande mídia, o fundamentalismo religioso e o agronegócio – tem aliados fortes no governo Dilma. Aliados orgânicos e ideológicos ou cooptados com o processo, que agora entraram para a casa grande.
Quem, por exemplo?
Gente que tem uma síndrome para entrar na casa grande, como o Paulo Bernardo [ministro das Comunicações], o queridinho da grande mídia, e a Gleisi Hoffmann [ministra da Casa Civil], que teve papel fundamental para derrubar a última secretária nacional Antidrogas. O Mercadante quer ser aceito pela casa grande de São Paulo para ser governador. São os aliados atuais do eixo no governo.
Há um sinal de rompimento entre o governo Dilma e os movimentos sociais?
Acho que ainda não há um rompimento. Mas o posicionamento de todos os movimentos sociais é sempre na evolução da intensidade da crítica ao governo. O MST, a CUT, a UNE, as mulheres, o movimento negro, não há um movimento social que faça uma avaliação positiva do governo. Há sempre um endurecimento de críticas ao governo. O cerco da PF no Ministério de Minas e Energia não me lembrou o governo Lula, mas o governo FHC. Eu estava lá. E vi que a galera estava disposta a tirar à força. Quando você precisa ocupar ministério para ser recebido pelo governo é porque o diálogo não é coisa prioritária do governo.
Isso desmobiliza os movimentos sociais?
Não fragiliza, só fortalece. O que fragiliza é a dificuldade das pessoas de entender a diferença entre governo, partido e movimentos sociais, especialmente num governo de esquerda. Não entender a diferença entre eles é que desmobiliza.
E o que muda com a proximidade das eleições presidenciais, em 2014?
Por conta das eleições, quais são as possibilidades mais imediatas? O Aécio, que representa a política do cassetete. O Eduardo Campos, que não tem relação melhor com os movimentos sociais. Vejo disposição do governo em melhorar essa relação do ponto de vista eleitoral, por conta da aproximação da eleição. Mas não vejo disposição em melhorar isso na relação cotidiana ou na definição de políticas. No caso da Marina, a saída dela foi a de ser a candidata insossa da classe média, que tem uma bandeira que a classe média acha bacana, que é o ambientalismo, mas ela não se posiciona. Não tem opinião. Aproximou-se muito da classe média e da grande mídia na ultima eleição e vai cumprir seu papel com o PSDB de levar a eleição para o segundo turno. Com todos os problemas, é melhor um governo Dilma do que um governo Marina. Veja como vamos mal das pernas.
Uma crítica que se faz é que a União Nacional dos Estudantes (UNE) foi cooptada pelo governo federal ao receber grande volume de recursos. Você concorda com essa crítica?
Não acho que foi cooptado. No último congresso da UNE, a nova presidenta fez críticas severas ao governo. Há um reconhecimento de avanço no ensino técnico, embora tenha havido um crescimento ainda maior no governo Lula. Os problemas têm de ser reconhecidos. O governo deveria repassar recursos de forma descentralizada para os veículos de comunicação. Mas centraliza em veículos que têm como centro editorial o racismo, a homofobia, é um absurdo. A gente tem um governo omissão com a política de comunicação. Tanto a UNE quanto a Ubes cumprem o seu papel histórico. Se pegar as pautas de reivindicações, as plataformas do movimento estudantil até hoje, desde as décadas de 1970, são coerentes. O fato de receber recurso público não quer dizer que ela tenha sido cooptada. Bancos e veículos de comunicação também recebem e não são acusados disso.
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