Bajonas Teixeira de Brito Júnior*
“Mexendo o cafezinho para que ele esfriasse, Nelson dizia a Abdias:
Nos Estados Unidos, o negro é caçado a pauladas e incendiado com gasolina. Mas no Brasil é pior: ele é humilhado até as últimas consequências.”
Ruy Casto, em O Anjo Pornográfico, a vida de Nelson Rodrigues, p. 203.
Às vezes é mais acertado começar pelo mais óbvio, mesmo que seja o menos evidente. E é para isso que chamo a atenção dos leitores: imaginem que a ação do DEM, conduzida voluntariamente pela procuradora do Distrito Federal Roberta Kaufmann, contestando a constitucionalidade das cotas no STF, seja bem sucedida. Suponham que o ministro Gilmar Mendes, quem irá julgá-la, e que foi orientador de mestrado da procuradora Roberta Kaufmann, que escreveu o prefácio do seu livro, e que hoje é seu colega em cursos de Especialização e outros eventos bem remunerados (ver aqui, e aqui, e aqui), conclua que as cotas são inconstitucionais na UnB. Mas, se o são na UnB, o são em todo o país. A Constituição é a mesma.
O que resultará disso? Que todos aqueles que ingressaram nas universidades públicas através da política de cotas deixarão automaticamente de ter direito a elas. Não estão em acordo com a Constituição Federal. Segue-se então um outro desdobramento: milhares de afro-descendentes, em plena atividade de estudos superiores, perderão suas vagas de forma humilhante e profundamente constrangedora, sendo expulsos do ambiente acadêmico. É possível calcular o tamanho do ódio e do rancor raciais que daí resultaria? Trata-se de uma tremenda chicotada desferida por um grupo social privilegiado sobre outro, indefeso.
As cotas raciais são hoje um fato, não uma hipótese, e aboli-las significaria produzir para uma parcela significativa da população um ferimento social de intensa dor e sofrimento. Não apenas aos estudantes, é evidente, mais às suas famílias, e às famílias daqueles que têm expectativa de chegar à universidade pública através das cotas. E a procuradora Roberta Kaufmann diz que as cotas geram ódio racial. Mas a verdade é precisamente o inverso: a ação da procuradora, se bem sucedida, provocará a maior onda de ódio racial que o Brasil já conheceu. Será o início da confrontação e do rancor racial.
Os adversários das cotas gostam de falar em mérito. Mas como exaltar o mérito em um país no qual, como todo mundo sabe, e as páginas dos jornais não param de estampar, os que têm os piores currículos e os melhores sobrenomes são os que ocupam os cargos mais cobiçados?
O argumento da procuradora Roberta Kaufmann, e do DEM, que afirma que a cotas geram ódio racial deve ser lido justamente pelo avesso: ao visarem a liquidação das cotas, a única política social destinada aos negros depois de mais de um século de abolida a escravidão, Kaufmann e o DEM acendem o pavio do ódio racial. A proibição das cotas teria exatamente o efeito de erguer um apartheid visível, claramente discernível, entre os que têm e os que não têm cidadania social no Brasil. Os negros, em sua maioria, são hoje no Brasil meramente semi-livres, visto que sua integração social é bastante precária. Não são como os escravos, cuja condição é a de mortos sociais, mas vivem numa espécie de coma social induzido.
Nessa UTI típica de hospital público brasileiro destinado à população de baixa renda, que coincidentemente é negra, falta tudo. E, em razão disso, as maiores taxas de vitimização pela violência policial, pela violência doméstica, pelo desemprego, pela subnutrição, pelo analfabetismo funcional, pela cooptação do tráfico, e outras infecções sócio-hospitalares, vicejam amplamente nestas enfermarias subterrâneas. A procuradora Roberta Kaufmann toma como premissa que no Brasil “ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro”. É uma afirmação gritantemente falsa, em completo divórcio com os fatos noticiados todos os dias. Aceitar tal premissa requer regredir a uma pungente adulteração da realidade. Um completo sacrificium intellectus, ou seja, o suicídio mental. Apenas para citar um, entre milhares de acontecimentos, a mais importante atriz de Moçambique foi vítima, muito recentemente, de um descarado atentado racial noticiado pela revista Época.
No Brasil não apenas as pessoas são discriminadas pela cor da pele, como há uma dupla discriminação: a positiva e a negativa. Positivamente, os mais brancos, aqueles que mais expressam traços identificados com a proveniência do colonizador europeu, galgam mais facilmente os postos e as posições sociais. Negativamente, os mais negros, os que mais expressam traços africanos, encontram as maiores dificuldades de sucesso social e profissional.
Quantos arcebispos, bispos, ou mesmo padres negros o Brasil possui? Quantos senadores? Quantos membros do STF? Quantos juízes? Quantos generais? Quantos reitores de universidades públicas? Quantos presidentes de estatais? Se não me falha a memória, nestas categorias, apenas conheço dois: o ministro Joaquim Barbosa e o senador Paulo Paim. Ora, de acordo com o IBGE a população brasileira chega a quase 190 milhões de habitantes (2008), sendo cerca de 50% negros. Como é possível, que dentre estes 95 milhões de negros, tenhamos tão poucos em posições sociais prestigiosas?
E aqui entramos no âmbito da dissimulação. O Brasil é imensamente racista e, mais ainda, desavergonhadamente dissimulado. Nelson Rodrigues, um escritor que soube como poucos reconhecer o racismo brasileiro, lembra em uma de suas crônicas do tempo em que foto de negro não podia sair em jornal. Em outra crônica, mostra um Sartre, cuja visita ao Brasil foi um dos momentos de maior histeria intelectual no país, embora dele na verdade se tenha aqui lido muito pouco, a perguntar pateticamente: “E os negros, onde estão os negros?”. Pois é: onde quer que fosse, Sartre não encontrava os negros.
Mas Nelson Rodrigues encontrou um negro em especial: Abdias do Nascimento. O ator por ele escolhido para protagonizar o Anjo Negro. Só Nelson Rodrigues poderia escrever algo assim, e ninguém melhor que o jovem e talentoso ator Abdias para representá-lo. Mas adivinhem? Não foi possível. Não foi possível por um motivo, por assim dizer, metafísico: não era aceitável um negro representar no Teatro Municipal. O jeito foi pintar de negro um ator branco. Assim, para o público, ficava claro que aquele ator era só uma simulação de negro. E, desse modo, ficou todo mundo satisfeito porque, no fundo, o Anjo Negro era agora um Anjo Branco. Metafísica. Pura metafísica. Nada de racismo.
O Teatro Municipal do Rio de Janeiro, capital federal, fez parte da arquitetura do branqueamento no Brasil. Da época em que, como disse José Murilo de Carvalho, os intelectuais sonhavam em viver, e se possível, morrer, em Paris. Mas a arquitetura racial, ligada ao biopoder, é bem mais antiga que o Municipal. Vem do período da promoção da imigração, na segunda metade do século XIX. Tratava-se de mudar a cor do país. Não foi fácil a vida do imigrante, principalmente porque a intenção dos fazendeiros do café era, na verdade, transformá-los em escravos brancos. E, mesmo quando isso não acontecia, havia inúmeras outras dificuldades a serem vencidas: a barreira do idioma, a aquisição de terras, a falta de ferramentas, etc. Mas a situação, por dura que fosse, não era comparável à dos negros. Estes, para situar um momento preciso, saíram da escravidão literalmente sem nada. Um nada que, além do mais, implicava o abandono completo da parte dos poderes públicos. Salvo, é claro, o poder de polícia. A repressão aos negros foi tamanha que virou canção infantil ensinando às crianças brasileiras,
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