Bajonas Teixeira de Brito Junior*
No edital a escolaridade exigida foi esta: “Ensino Fundamental Incompleto ter concluído as 4 (quatro) primeiras séries do Ensino Fundamental, antigo primário”. Inscreveram-se 109.193 candidatos para 1.400 vagas. Entre os inscritos havia 45 doutores, 22 mestres, chegando a 80 o número de pós-graduados. Pois é: 45 doutores, 22 mestres, 80 pós-graduados concorrendo a uma vaga de gari no Rio de Janeiro para garantir um salário mínimo. O assunto foi tema de matéria publicada na imprensa em 21 de outubro de 2009 (Concurso para gari no Rio registra 45 inscrições de candidatos com doutorado).
Numa avaliação assim por alto, calculando que muitos esconderam o título temendo que pudesse mais atrapalhar que ajudar, é lícito imaginar que o número de pós-graduados inscritos tenha sido bem maior. E gente formada em bons programas por sinal, porque estamos falando do Rio de Janeiro, que tem antiga tradição em pós-graduações e em conceitos máximos da Capes. Pelo número de doutores, o provável é que a massa de graduados tenha sido enorme. Esses também formados em instituições conceituadas. Deve ter quem tenha visto a presença de doutores como concorrência desleal, como gente grande em jogo de criança. Mas isso provavelmente não corresponde à verdade. Foi muito mais uma “concorrência desesperada” do que desleal.
Por que “concorrência desesperada”? Porque no Brasil, mesmo ainda nas famílias bem situadas, o sonho de ter o filho formado perdura. Na medida em que, com o aumento das matrículas, o glamour das graduações empalidece de uma hora para outra (até o benefício da prisão especial foi tirado), as pós-graduações, com seus títulos de mestre e doutor, renovam de algum modo o brilho hierárquico dos títulos. Sem esquecer que no Brasil chamar de doutor sempre serviu para dar um lustre na distinção.
E nisso justamente reside o efeito produzido pelo título da matéria. “Doutor” sempre foi no Brasil título de quem tem poder. O doutor Roberto Marinho. O doutor Olavo Setúbal. O doutor Assis Chateaubriand. O doutor sendo meio o equivalente de conde ou marquês. Por outro lado, a ocupação oferecida pelo concurso para gari não é das mais respeitadas no país. Recentemente houve o episódio em que um apresentador de telejornal deixou escapar observações pouco lisonjeiras: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras… dois lixeiros… o mais baixo da escala do trabalho”.
Agora ficamos diante da inteira curvatura da vara: a hierarquia dos doutores infletindo rumo ao “mais baixo da escala do trabalho”. Claro. Claro. A última expressão é puro preconceito. Evidente que é. Mas é o que o brasileiro melhor situado pensa em geral quando pode se expressar bem à vontade. Criou-se até duas designações (gari e lixeiro), uma para maquiar a outra para escrachar. É típico da nossa língua ter sempre duas designações, uma palavra hipócrita que embeleza e um termo maldoso que denigre. Entre mil exemplos que se poderia citar, lembro uns poucos: “comunidades” e “favelas”, “moreno” e “crioulo”, estudioso e cdf. E o mesmo acontece com “gari” e “lixeiro”. Para fazer um afago na dignidade, usam-se palavras bonitas (comunidade, moreno, estudioso gari). Quando se quer rebaixar, descer a ripa, aí surge a favela e o cdf, o lixeiro, etc.
Lembro que o escritor William Burroughs, a respeito do México, dizia que lá não era como nos Estados Unidos, onde existia o bandido de classe média, bem apresentado e burocrático. No México haveria apenas os bandidos de elite, cheios de conexões políticas e rigorosamente fora do alcance da lei e que, por isso, seriam tratados como autoridades e não como bandidos, e, do outro lado, os bandidos pés de chinelo destinados a apodrecer nas prisões. A hierarquia dos muito poderosos, de um lado, e dos insignificantes, do outro, parece que persiste em toda a América Latina.
Assim como permanece, em um número relativamente grande de casos, a impossibilidade de bem discernir entre autoridade e bandido. É um paradoxo de indiscerníveis. E nisso que se situa, para nós brasileiros, a dificuldade de um pensamento que forme categorias horizontais e estáveis. Pão, pão, queijo, queijo, é uma boa regra, mas pão de queijo é que sabe melhor ao paladar. Submerso sempre na mistura dos opostos, os brasileiros passam do xingamento ao elogio numa velocidade estonteante. Essa instabilidade é o seu estado normal, a lei oscilante do seu imo peito. Isso é mau, mas isso também é bom. O nazismo, por exemplo, seria impossível com a nossa incredulidade permanente.
Lula não agiu mal quando incentivou a expansão do ensino superior, permitindo que a classe média baixa tivesse acesso à formação universitária. Mas isso foi feito como um mimo, um “brinco”, um agrado. É como se todos pudessem agora ter o seu diploma de graduação. Mas esse título, ainda mais com o fim do benefício da prisão especial, permanece só um título, porque o mercado de trabalho continua estreito como sempre, e os novos formados têm na maioria poucas chances. Os salários, além disso, tendem a cair com a inflação de títulos. Por isso, por exemplo, a briga dos médicos e dos advogados para que só se credenciam cursos de qualidade. Querem enxugar o mercado. A mesma coisa para a OAB, com o seu concurso da Ordem. Penso que quanto mais educação melhor. Um Brasil em que muitos possuam um diploma universitário pode surpreender gerando novas e interessantes tensões. E uma multidão de doutores sem colocação, claro que vai deflagrar confrontos que já deveriam estar na ordem do dia.
Em relação às pós-graduações, os problemas são similares. As faculdades privadas não são obrigadas a contratar um quadro de mestres e doutores como seria necessário para garantir uma formação de qualidade para seus estudantes. As próprias universidades e faculdades particulares, pela força que têm dentro do Conselho Nacional de Educação (CNE), impõem uma legislação que as exime dessa obrigação que seria o mínimo aceitável pelo bom senso. Assim, as universidades federais, principalmente as federais, lançam no mercado carradas de mestres e doutores que não são absorvidos. E vão parar, literalmente, nos concursos para gari. As faculdades privadas não precisam deles, e não os querem, porque seus salários seriam onerosos. E elas reúnem hoje 90% das matrículas no ensino superior.
Isso ajuda a explicar um paradoxo bem interessante que está na matéria citada. De fato, o número de doutores inscritos (45) foi o dobro do de mestres (22). Como compreender isso, se a verdade é que o número de mestres no mercado é muito maior que a de doutores? Seria mais conforme se fosse o contrário: 22 doutores e 45 mestres. Mas não é assim. O número esmagador é de doutores. O que explica isso? Por que justamente gente com títulos mais altos e mais classudos optaram pelo concurso? A explicação pode ser fácil.
Depois de inúmeras decepções, cansados de aguardar por um emprego à altura, alguns desgarrados da vasta legião de doutores sem ocupação fixa do Rio de Janeiro optaram por essa via extrema. Doutores entre 30 e 40 anos, com responsabilidades com uma família, veteranos das frustrações no mercado de trabalho, premidos pela urgência, descobrem que não tem escolha. Já os mestres, mais jovens, muitas vezes aspirantes a um doutorado, acreditam ainda que se chegarem lá as portas se abrirão para eles. Ao menos, a porta de uma bolsa de doutorado do CNPq ou da Capes. Eles ainda têm muitas ilusões para perder. O desespero dos intelectuais com doutorado que se lançam ao concurso pode bem ser avaliado pelas regras do edital.
As provas são físicas e muito puxadas. Ora, o doutor sabe exatamente ao que está se arriscando, porque sua formação permite que leia e compreenda perfeitamente as regras do edital. E lá fica claro que seu título não valerá de absolutamente nada para a sua aprovação. E a sua condição física, apurada em muitas horas de leituras, muito menos.
O edital do concurso para gari, bem maior e mais detalhado do que os que encontramos para concursos de professor universitário, tem 24 páginas. As provas, em duas etapas, contemplam exclusivamente aptidões físicas. Ai se vê a dureza da situação. A leitura do edital não deixa dúvidas quanto à primazia dessas aptidões. A primeira etapa, eliminatória e classificatória, é “composta de Teste Dinâmico de Barra Fixa, para os candidatos de sexo masculino e Teste Estático de Barra Fixa, para os candidatos de sexo feminino”. A segunda etapa da prova, também de testes físicos eliminatórios, é muito pior: abdominais, flexões e 12 minutos de corrida. O doutor entra nessa disputa flertando com a morte súbita. Não deixa de ser uma tentativa de suicídio.
Esse é o drama. Nisso é que se revela mais assustadoramente o caminho da educação superior no Brasil hoje. O mercado que deveria ser constituído, principalmente, de instituições universitárias contratando doutores e mestres, não existe. Mas como não existe?! Não tivemos a maior expansão do ensino universitário da história do Brasil? Sim, mas nada disso tem qualquer valor para o assunto. As faculdades privadas mandam. E decidiram que não precisam de mestres e doutores. E, aliás, se tornaram um negócio de certo modo mais rural do que educacional. Outro dia estavam à venda duas faculdades privadas no Espírito Santo no regime porteira fechada: alunos, professores, carteiras, bibliotecas, etc.
*É doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na internet), e do livro Lógica do disparate.
isso é picaretagem !!!! o advogado passa no concurso mas quando ele assume vai direto para um gabinete da prefeitura e fazem um concurs-so interno !!!!!!!!!!!!!! ( só quem trabalha na prefeitura pode fazer ) picareta e promovem ele para um cargo mais alto