Abro este espaço para, desta vez, publicar um artigo que foi escrito por meu irmão, Wilson Granjeiro:
Hoje acordei cedo e fui trabalhar. No caminho, dei de cara com um engarrafamento gigante, logo no começo da M Norte. Como nessas situações não há nada a fazer, a não ser se acalmar e aguardar o trânsito fluir, liguei o som do carro e coloquei um CD do Xote Santo. Mês de agosto, Xote Santo no carro… Naturalmente, veio-me à lembrança o meu pai e suas lutas. Ao som daquela música típica da região onde nasci, meus pensamentos e lágrimas me levaram de volta ao Nordeste, bem à época em que vivíamos na pequena Encanto, Rio Grande do Norte.
Nós tínhamos algumas propriedades, alguns animais, três jipes, uma lambreta, uma mercearia e uma padaria. Financeiramente, vivíamos tranquilos. Meu pai, muito solidário com as pessoas menos favorecidas, vendia muito fiado. Os clientes pagavam só depois da colheita das safras de algodão e feijão, entre outras. Até que enfrentamos uma tremenda seca, e muitos não puderam pagar as dívidas para com meu pai. Foi então que o que tínhamos foi aos poucos se acabando. Em 1969, papai decidiu vir a Brasília tentar uma nova sorte. Começou trabalhando de mascate, vendendo roupas nas ruas, depois de servente de obra, até se tornar pedreiro, e dos bons. Então, em 1970, decidiu trazer toda a família. Fomos morar no Núcleo Bandeirante e mais tarde nos transferimos para Ceilândia.
Sou de um tempo em que os heróis de um menino eram o pai, o irmão mais velho e os professores. Uma pena hoje em dias esses heróis terem sido substituídos por outros. Felizmente, no meu caso, os valores passados pelo velho Zuza ainda fazem morada no coração. Lembro-me de quando ele me acordava às cinco da manhã, me colocava na garupa de uma bicicleta velha e me levava abraçado à sua cintura, cambaleando de sono, até o ponto onde ele pegava o “pau-de-arara” (caminhão fechado, com bancos de madeira, usado para o transporte de trabalhadores braçais) para ir trabalhar. Depois de deixá-lo, eu, então com pouco mais de doze anos de idade, voltava para casa com a bicicleta e dormia mais um pouco. Esperava o dia passar e às dezoito horas subia sozinho para pegá-lo de novo no velho ponto, próximo ao CE n. 02.
Fiz isso por longos meses. Na minha visão, eu estava ajudando meu herói a manter nossa casa com os poucos recursos que ganhava na construção de Brasília. Podíamos não possuir muitas coisas, mas tínhamos o que toda família precisa ter: união, respeito e amor. Nossos vínculos eram tão fortes que até hoje nenhum de nós consegue ficar brigado com o outro. Também não suportamos ver um de nós em sofrimento sem sofrermos juntos.
Lembro que algumas vezes meu pai chegava da obra com todos os dedos das mãos sangrando, por causa da acidez do cimento. Nessas ocasiões, ele pedia que minha mãe abotoasse os botões de sua camisa, tamanha eram as dores. Mesmo assim, logo de manhã, lá íamos nós, outra vez, para o ponto onde ele pegava o caminhão para mais um dia de luta na obra.
Quando ele foi parar no hospital e entrou em coma, eu não imaginava que ele pudesse morrer. Mesmo porque havia em mim plena confiança de que Deus o tiraria daquela situação. Certo dia, fomos eu e meu irmão José Wilton visitá-lo, às quatro da tarde, hora das visitas. Nos preparamos para entrar na UTI. Vestimos os jalecos, os sapatos e as toucas e adentramos o corredor do hospital. Uma médica se aproximou e nos perguntou: “Vocês são os filhos do ‘Seu’ Zuza?”. Sim, respondemos. Ela, então, deu a notícia de que nosso pai falecera às dez horas da manhã.
O mundo caiu sob nossos pés. Fui para um lado chorando e meu irmão para o outro. Até que, insatisfeito com as palavras da médica, perguntei onde estava o corpo. Ela disse que já devia estar na anatomia. Sem pensar, desci os corredores do hospital, em busca do meu pai. Na sala de anatomia, deparei com vários corpos, uns nas mesas, outros nas gavetas e alguns no chão. Perguntei ao agente de saúde que estava lá qual deles seria o meu pai. Ele me respondeu: “Pela hora que seu pai faleceu, ele deve ser um desses que está no chão”, apontando para um saco azul. Quando abri aquele enorme zíper, lá estava ele, com o rosto enorme, inchado de tanto soro, e a boca ainda sangrando por causa do tubo que usara na UTI.
Foi então que meus pensamentos se voltaram a Deus. Surgiram as perguntas: Fizéramos o que deveria ter sido feito? Por que o Senhor o levara? Onde estaria o Senhor da vida? Os textos que me vieram à mente, naquele momento, foram: “Onde estavas tu, quando fundei o mundo? Eu sou o Deus que dá a vida e a pode tirar. Sou Deus que cura, trata, salva e leva aqueles que são meus. E me alegro na morte dos justos”. Só então pude descansar, no Senhor que me fez lembrar a história do ladrão que, antes de morrer, reconhecera o senhorio de Jesus e seu poder em salvá-lo.
Pai, neste Dia dos Pais, acredito que o seu maior presente seria conhecer o Matheus, o Davi, o Pedro, o Guilherme, a Helena, a Jaqueline, a Débora, o Marcelo. Todos seriam contagiados por sua humildade, hospitalidade e tremenda facilidade em ajudar as pessoas. Esses valores são eternos. Hoje procuro transmitir aos meus filhos e a todos que me rodeiam os ensinamentos do velho Zuza, extraídos dos momentos em que éramos parceiros nas reformas e nas obras, nas caminhadas de bicicletas pelas madrugadas e à noitinha, quando retornávamos para casa.
Haverá um dia em que nos veremos outra vez. Com certeza com outros nomes e corpos incorruptíveis, e num lugar onde não haverá sofrimento nem dores. Eu o reconhecerei, você me reconhecerá, e juntos adoraremos ao Deus da vida. E numa só voz cantaremos, sem cessar: “Santo, Santo, Santo é o Senhor, para todo o sempre!”
Aos que me leem, feliz Dia dos Pais! E que o bom Deus faça do seu pai o seu grande herói, e de você o seu maior admirador. Que Ele permita que você o ame e seja por ele amado enquanto houver vida.
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