É muito bom ter algum tempo para observar e refletir sobre os acontecimentos que envolveram o movimento grevista dos caminhoneiros. Contam-se já dez dias de paralisações e bloqueios pelas estradas brasileiras. As consequências perversas parecem claras, pois sentidas cada vez mais fortemente pela população ao longo dos últimos dias. No entanto, se a resultante política parece ainda indefinida, também são obscuras as causas da magnitude do que estamos testemunhando.
Ainda vai se ouvir muito sobre o alto custo dos deslocamentos de cargas e pessoas por meio da nossa logística tupiniquim, baseada quase que exclusivamente no modal rodoviário. Estruturado financeiramente e inculcado culturalmente, quando o interesse estatal nacional e o capital estrangeiro se abraçaram para produzir a nossa modernidade, o modelo que tem o automóvel como figura central domina nosso imaginário desde os anos 1960.
A face “monopolista” desse sistema se revela pelo indisfarçável poder do lobby das montadoras. A influência exercida não encontra resistências reais no poder público. Ao contrário, a operação Lava Jato tem esmiuçado essa relação promíscua, em que linhas de crédito públicas e medidas provisórias se misturam em encomendas muitos bem pagas.
Ferrovias e hidrovias, de operação e manutenção mais baratas, concentram custos em suas fases iniciais de construção. Portanto, constituem naturalmente objeto de investimento público, mas não são contempladas adequadamente no orçamento dos governos ou em parcerias público-privadas. A decisão é que todos paguemos para que carros, ônibus e caminhões nos levem – e as coisas das quais precisamos – da forma mais cara possível. Não parece muito esperto.
O fato é que monopólios seduzem há tempos nosso homem público, seja pela popularidade da sua defesa ideológica, mas principalmente pela farta disposição de rendas e postos que podem ser apropriados pela baixa política no nosso toma-lá-dá-cá cotidiano. A situação é ainda mais grave com os monopólios públicos. Por natureza, quase todos o são, e quase todos capturados por interesses particulares. Nada escapa aos corporativismos empresariais e sindicais da nossa tradição ‘capitalista’.
Para ilustrar, lembro que um dos pontos fracos da narrativa dos taxistas quando o Uber apareceu era que eles haviam se submetido ao processo formal e portanto eram merecedores da exclusividade. A questão da permissão estatal, que deveria garantir a governança e racionalidade do sistema, motivo do monopólio, gradativamente se converteu em privilégio. Senhores de um serviço público monopolista, alguns taxistas esqueceram da acordada contrapartida e a qualidade do serviço – ou o custo-benefício para o usuário – se deteriorou a olhos vistos. Mas se os taxistas deixarem de existir, adivinhem quem consolida um novo monopólio?
Fruto da mesma lógica, a Petrobras está no centro do debate público desde que foi fundada. Nos anos recentes, seu papel de instruir a agenda nacional foi ainda mais relevante, embora as notícias sobre a companhia fossem cada vez mais negativas. Monopólio de fato, a empresa explora a necessidade de um insumo básico para qualquer economia: energia. Ninguém duvida do poder que essa indústria detém. Não depois dos últimos dez dias.
Descontada a matriz elétrica, os combustíveis fósseis são absolutamente imprescindíveis para nossa mobilidade. O preço da gasolina, do óleo diesel, do querosene de aviação e de outros combustíveis responde a diversos fatores, como o preço internacional do barril de petróleo, câmbio, tributos, infraestrutura de produção, dentre outros. O governo não tem domínio sobre vários deles e, mesmo que tivesse, sabe-se que o cobertor é curto.
Se o governo quiser manter a primazia da matriz rodoviária, mesmo que sob pressão dos caminhoneiros ou dos motoristas revoltados, precisa intervir no monopólio do refino de derivados de petróleo. Se realmente vigora o imperativo da não-intervenção direta, conforme preconiza a nova lei das estatais, não há saída. Quem pagará a conta será o conjunto da sociedade. Muitos financiando o que é caro. No caso da gasolina, muita gente que anda a pé e de ônibus, pagando pela a gasolina de quem tem carro.
No entanto, o país não padece tão somente por estar nas mãos de profissionais que tem visto sua renda encolher ao longo dos últimos anos, ou por depender de nossas mal construídas estradas. As consequências materiais imediatas de uma greve são facilmente mensuradas pelos economistas e já há dezenas de estudos tratando dos bilhões perdidos. Os resultados estruturais é que permanecerão os mesmos se não mudarmos a forma como organizamos nossa economia e nosso estilo de vida.
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Ainda espero tratar da vacina pretensamente aplicada para prevenir a “doença holandesa” que acometeria o nosso pré-sal em algum outro artigo, mas a verdade é que o monopólio nos fascina muito. E isso não tem diretamente a ver com afeições ou rejeições à economia de mercado.
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