Estive semana passada com Marina numa visita ao governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB) – que assinou o apoio à formação da Rede – e depois, numa palestra que deu na universidade católica de Recife. No final, no entanto, ela conseguiu fluir bem e foi muito aplaudida.
Um jornal de Pernambuco e a edição online da Folha de S.Paulo fizeram uma cobertura estranha. O título da segunda era: “Marina diz que Feliciano é criticado ‘por ser evangélico’”. A matéria em nenhum momento afirmava que Marina “defendeu Feliciano”, mas continha uma grande distorção: omitia completamente as críticas que Marina fez a ele considerando-o tão errado na presidência da Comissão de Direitos Humanos quanto Blairo Maggi na Comissão de Meio Ambiente do Senado.
Veja aqui o que ela realmente disse
A matéria era estruturada de forma a induzir o leitor a supor algum tipo de “defesa” do pastor homófobo por parte dela, embora, em nenhum momento, o diga explicitamente. Evidentemente, ao passar de uma mídia para outra e ganhar as redes sociais vira isso mesmo: uma suposta defesa do sujeitinho. A versão, como soe acontecer, periga predominar sobre o fato. Na quinta-feira, porém, no jornal impresso a matéria, do mesmo repórter, sai no essencial correta. Não sei se as reclamações surtiram efeito ou eles mesmos corrigiram, espontaneamente.
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Na verdade, Marina é apenas uma a mais entre os milhões de evangélicos que se sentem envergonhados e desconfortáveis com o fato de Feliciano ser insistentemente apresentado enquanto tal. Se alguma “defesa” existiu, foi a dos evangélicos em geral, que não devem, na visão dela, ser “confundidos” com Feliciano e suas ideias/fobias/alucinações. Como se elas fossem um atributo evangélico.
O que tem de ser dito no caso é:
1) trata-se de um oportunista que explora sentimentos homófobos e racistas que infelizmente existem na nossa sociedade e estão difundidos entre um variado leque de pessoas religiosas de diferentes crenças e não religiosas igualmente. Há homófobos e racistas em todas as crenças e não-crenças, não se trata absolutamente um atributo particular aos evangélicos;
2) a discussão central não é o que pensa ou deixa de pensar esse deputado, mas como pessoas como ele ou como o ruralista Maggi podem, por força de regateios político-parlamentares, assumir a presidência de comissões que demandam um perfil político e cultural diametralmente oposto ao seu. Um problema institucional do Legislativo brasileiro, portanto;
3) pessoalmente, considero que personalizar o foco no Feliciano só o favorece e promove, ainda que possa também promover (numa medida bem mais modesta) lideranças “anti-homofóbicas”, pela via da “polêmica” que a mídia gosta;
4) não penso que isso ajude avançar a causa de cidadania dos homossexuais nos seus diversos aspectos. Vira parte da “política-espetáculo” de quem gosta de ver “o circo pegar fogo” e, também, como notamos nesse episódio, um mote para patrulhamentos escusos, politicamente motivados.
A distorção de um jornal de Recife, acolhida e depois corrigida (pelo visto, não a tempo…) pela Folha de S.Paulo, envolvendo Marina com Feliciano deu, como que dizem, “panos pra manga”. Não me deixo impressionar com as chamadas “redes sociais”. Em certas situações, há pouco a fazer: todo dia espalha-se um hoax qualquer, uma mentira ou distorção que corre solta e depois some. A essência do fenômeno é aquela expressão italiana: si non e vero e bene trovato.
Pessoalmente, tenho dois tipos de diferenças de visão. Com Marina, por um lado, e com alguns militantes da causa gay por outro.
Com Marina, divirjo, não é de hoje, sobre a questão do aborto, drogas e, numa menor medida, na questão gay, mas penso que nossas visões podem conviver perfeitamente num mesmo grupo político.
Por outro lado, tenho divergências mais de natureza tática sobre a forma com que parte do movimento gay e certos grupos GLT se colocam, sobretudo quando em posições de governo, e em relação à maneira em que estão encaminhando o affaire Feliciano. Aqui vou abordar apenas o segundo assunto. O primeiro tema já abordei em outro artigo.
No sétimo céu
Na minha opinião, a forma com que Feliciano vem sendo combatido na comissão só o favoreceu. Ali cabia uma denúncia à dinâmico do Parlamento que coloca um homófobo e racista na presidência da Comissão de Direitos Humanos e um “rei da soja” na de Meio Ambiente do Senado – nisso, a colocação da Marina foi perfeita. Dali para frente, é combatê-lo, semanalmente, em cima dos temas concretos que forem surgindo na comissão da mesma forma que combatemos diariamente a maioria parlamentar noutros campos de atuação.
A insistência em destituí-lo a qualquer preço sem ter maioria para tanto, com manifestações meio histéricas (para chamar a atenção da mídia) dentro da sala da comissão, promoveu, é certo, algumas lideranças GLT mas promoveu muito mais o dito cujo: várias inserções no Jornal Nacional, Páginas Amarelas da Veja, artigo na Folha e muitos e muitos gigabytes na redes sociais (contra, mas muito mais a favor, por incrível que pareça…)
Um personagem novo surgiu no horizonte político brasileiro… Cruzo com Feliciano nos corredores, cercado de fotógrafos, cinegrafistas, seguranças, admiradores e curiosos com um sorriso de orelha a orelha no sétimo céu de felicidade.
O movimento “anti” colocou-se num beco sem saída: não tem força para destituí-lo, acaba promovendo-o e aparecendo para o público não diretamente envolvido na questão como intolerante e radical, aparentemente tentando calar uma torrente de sandices (como as colocações sobre John Lennon ou “mãe menininha do Patois”) que, afinal, ele tem o direito constitucional de emitir e nós de criticar.
Liberdade de expressão dos energúmenos
Isso é um aspecto importante: a liberdade de expressão não está aí apenas para proteger apenas o discurso politicamente correto. Para mim, o limite à liberdade de expressão está na incitação à violência e, legalmente, no racismo. Defendo o direito de Bolsonaro e Feliciano expressarem suas barbaridades desde que não incitem à violência.
Há percepções diferentes da liberdade de expressão. Nos EUA, é totalmente irrestrita, pode se defender o nazismo e até incitar à violência, inclusive contra o governo como fazem as milícias supremacistas. Não pode passar à ação. Já na Europa, coíbe-se a negação do holocausto nazista. Mas sandices fascistóides e outras são toleradas e a homofobia só é reprimida quando associada à violência. E isso acontece: recente pesquisa mostra que metade dos homossexuais europeus já se sentiu, em algum momento, ameaçada física ou moralmente.
O volume da mobilização, sobretudo de jovens, na França contra a aprovação da lei do casamento gay foi preocupante. Claramente foi mobilizado pela rede capilar da igreja católica. Mas o movimento conseguiu caracterizar sua causa como uma bandeira de cidadania, democrática conquistou a maioria da população – isso está claro nas pesquisas – e venceu.
Somos um país de maioria culturalmente conservadora em relação a temas comportamentais. Ela pode ser reduzida, desconstruída e desmontada, no futuro, como o foi em outros países, como Portugal por exemplo, que legalizou o aborto via referendo. Não creio que a melhor forma de avançar seja pelo viés do discurso de “orgulho gay” e da combatividade anti-homofóbica. É certo que desopilam o fígado, permitem extravasar a raiva. Mas politicamente não são muito eficazes na conquista de corações e mentes dos conservadores ou dos encima do muro. Podem eventualmente ser contraproducentes.
Temos que respeitar o conservadorismo de costumes e fazer com que os conservadores culturais respeitem outras formas de viver e amar diferentes das suas. Em resumo: não é uma questão gay, é uma questão democrática. O discurso para a maioria conservadora ou os indiferentes tem de ser pelo caminho democrático da tolerância, do respeito às diferenças, e da aceitação do outro. O que, aliás, é perfeitamente afinado com a pregação de Jesus Cristo.
O episódio de Recife
Voltemos a Recife. Era evidente que qualquer referência que Marina ali fizesse ao Feliciano que não fosse um ataque em regra correria o risco de se distorcido – como o foi – para uma suposta “defesa” ou atenuação. Nesse momento, nessa discussão não há lugar para nenhuma sutileza: ou se condena de forma clara e dura (sem ser histérica!) ou se ignora.
Ao dizer que ele não deve ser condenado por “ser evangélico” mas por ser “despreparado”, a preocupação central naquele momento parece ser a defesa dos evangélicos, em geral, do desgaste de imagem que Feliciano lhes inflige junto ao segmento moderno e laico da sociedade e não, aquilo que esse mesmo segmento esperaria dela: uma manifestação explícita de solidariedade aos gays por ele discriminados.
Marina, por outro lado, atendeu a uma justa preocupação de seu público evangélico que se sente discriminado pelas generalizações que surgem no bojo do repúdio ao Feliciano. Sua preocupação nesse particular é justa: Feliciano não faz o que faz porque é evangélico. Faz o que faz e diz o que diz porque é um oportunista político, um pilantra religioso e, culturalmente, um reacionário preconceituoso e racista.
A verdade é que existe na nossa sociedade, bastante intolerante e avessa ao diálogo, tanto preconceito contra os gays quanto contra os evangélicos em função das representações caricatas que se fazem de uns e de outros. Há uma diferença. Num caso é um conjunto de convicções religiosas e noutro uma orientação comportamental sexual/afetiva.
As consequências também são assimétricas: embora isso aconteça em outros países, notadamente no mundo islâmico, no Brasil os evangélicos não são vítimas de violência nem perseguidos de fato, enquanto abundam os crimes de ódio – incluindo assassinatos – e as discriminações explícitas contra os gays.
Isso pode indicar qual preconceito precisa ser combatido com mais urgência. Penso, porém, que devemos combater claramente ambos cultural e politicamente. É preciso afirmar claramente a pluralidade religiosa (incluindo aí a não-religiosa), por um lado, e a liberdade de orientação sexual/afetiva, por outro, e promover uma cultura inclusiva e tolerante. Isso é cidadania.
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