Durante muito tempo impliquei com livros de auto-ajuda, livros espíritas, esotéricos e toda sorte de subliteratura (incluindo as biografias do Nelson Motta, epístolas publicadas à revelia do autor, livros de socialites & rappers, os livros de mulherzinha em geral e as chatices multimídias do Arnaldo Antunes). Ah, que bobagem: que perda de tempo reclamar desse povo e especialmente do Pedro Bial.
Vocês sabiam que o mestre de cerimônias do final da picada vai publicar uma seleção de suas preleções no BBB? Alvíssaras! Maior força aí, Bial. Suzana Vieira também deveria exercer seus dotes de escritora, Chalita vende feito pão quente e a lista é interminável, graças a Deus e à Bíblia que, aliás, é o maior best-seller de todos os tempos há mais de mil anos.
Daí que eu gostaria de me redimir de uma bobagem que escrevi no rodapé de uma novelinha chamada “Acaju” (consta do livro “Notas da Arrebentação”, ed.34). Eu dizia que, depois de desencarnado, caso algum espírito se metesse nalgum orifício dos irmãos Gasparetto, alegando tratar-se de manifestação de arrependimento desse escriba que vos fala aqui e agora, esse espírito decerto seria de algum suíno, jamais o meu. E o mais grave: não me conformava com a possibilidade de ganhar dinheiro vendendo livros depois de morto (ainda que fosse eu mesmo a dar meus pitacos lá do além). Uma grande sacanagem. Onde eu ia gastar? No inferninho do anjo Gabriel? Imaginei que, deixando a rubrica em carne e osso, sangue, suor e lágrimas, eliminaria a chance de algum malandro faturar às minhas custas depois de morto. E tinha outro problema. A sintaxe adquirida em vida com tanto sacrifício. Se não me engano, foi o professor Antonio Cândido que, ao analisar a obra de um figurão desencarnado, sentenciou: “a morte não faz bem ao estilo”.
Essas coisas me impediam de aceitar a psicografia.
Tudo Bobagem. Erro feio de cálculo.
Alô mundo espiritual, eu me redimo. E, se preciso for, me disponho – depois de ter batido com o rabo na cerca – a descer nesse vale de lágrimas e confirmar a errata.
Explico o motivo dessa minha súbita mudança de opinião. Simples, mas tão simples, que eu até fico envergonhado de ter demorado vinte e tantos anos – desde que decidi que jogaria minha vida na lata do lixo e seria escritor – para ter percebido aquilo que estava mais do que escancarado diante do meu nariz: Cioran corrompe. Machado de Assis é um trapaceiro vendedor de mariola, ilusionista barato. Bataille faz as mulheres chocarem ovos a partir do ânus. Borges finge que é seu amigo, encurrala você e causa desdobramentos e alucinações irrecuperáveis. Dostoiévski nada mais fez senão condenar seus leitores à sentença de morte da qual ele mesmo conseguiu se safar. Henry Miller é uma espécie de mosquito da dengue que espalha cancros e doenças venéreas. Cortázar provoca o vômito de coelhinhos, e assim por diante.
A lista é enorme. Ou seja: a boa literatura não faz bem pras saúdes, nem a física e muito menos a mental.
A boa literatura não vai salvar a vida de ninguém. Quem salva vida não é Baudelaire, mas os projetos sociais e as rimas imbecis do Ferréz. Liberdade é algo perigoso e não deveria ser consumida pelos leitores do Arnaldo Antunes que aprenderam a beijar de língua. Literatura é algo mais nocivo do que o amor, que – como todos sabem – é droga pesadíssima, e, já que estamos falando em saúde pública, aqui faço um apelo ao doutor Dráuzio Varella: reúna-se imediatamente com a cúpula do PSDB e arrume um jeito de proibir o consumo desse mal nas creches, nas escolas e em locais públicos. Penso que literatura é algo que somente deveria ser tolerado em zonas de exclusão, vamos tirar esse mal da vista de nossos filhos: mas com ternura porque , enfim, áreas de exclusão devem ser erguidas pensando na auto-superação (aprendi esse termo “auto-superação” num livro do dr. Shinyashiki…) dos reincidentes e na felicidade geral da nação. Escritores, digo os bons, são equivalentes a terroristas, e a simples aproximação de um leitor da Thalita Rebouças com esses seres abjetos que propagam Céline, carrega o potencial de contaminar e destruir não apenas o usuário (porque quem sabe ler também está mais perdido do que o escritor propriamente dito), mas sua família e seus amigos mais próximos que – avaliem só o perigo – correm o risco de se desinteressarem do mais recente livro genial de receitas da Ana Maria Braga, digo, Jô Soares. A situação, dr.Dráuzio, é grave – de calamidade pública.
Guantánamo neles! Se a boa literatura não for varrida do convívio social, os parentes e os amigos e as pessoas próximas do leitor viciado podem ser irremediavelmente contaminados. O manual de saúde fantástica do doutor Dráuzio classifica essa gente como “leitores passivos”. Arte é pior que cigarro.
Distância, dr.Dráuzio, recomenda-se manter distância para ter a certeza de que Orides Fontela não será lida nem sequer mencionada nas escolas públicas e particulares, nem nas tevês e muito menos nos portais do Fantástico.
Outra coisa. Uma poeta, ainda mais Patricia e ainda mais linda daquele jeito, no Jornal Nacional, é uma ameaça porque a simples menção dessa palavra “poeta” pode causar algum tipo de associação maligna com Orides Fontela, ou quiçá com Hilda Hilst, e aí, já viu? né? …
Portanto, você que tem uma filha ou filho estranho em casa, preste muito atenção nos livros que o infeliz está consumindo. Aqui faço um alerta: avalie bem o perigo que uma Clarice Lispector pode representar: pense muito seriamente no estrago monumental que a leitura de um “Paixão, segundo G.H” causaria na cabeça dessa podre criatura que voce pôs no mundo para ser feliz e realizada, sua filha sim, ela mesma, a princezinha do papai, que, aos dezessete anos, em vez de investir a nerdice em algo útil, sei lá, algo do tipo uma faculdade de química, em vez disso se transformou numa leitora de Clarice Lispector. Toda a felicidade da tabela periódica trocada pelo universo denso e ensimesmado de uma feiticeira maluca do feito de mme. Lispector. Já pensou no estrago?
Esse caminho não tem volta. Depressão certa, pêlos no sovaco e comentários hediondos na fila do cine Unibanco da Augusta e, o pior, a falta de talento de sua filha será confrontada com a falta de namorados, e aí você vai ter que gastar uma grana absurda em psiquiatras e anti-depressivos. Porque a garota pode ser uma nerd, mas jamais será uma Clarice, muito menos uma Sylvia Plath, entende? Ela é sua filha. Todavia, a coisa pode alcançar proporções catastróficas. Imagine o irmão dessa pobre coitada, o garoto que foi seu orgulho Gelol, seu filhão lendo Kerouac em vez de absorver os conselhos sábios do doutor Lair Ribeiro. Na melhor das hipóteses, o garoto viraria um alcóolatra e o ameaçaria de morte somente porque você – logo você, um cara que cultiva o hábito refinado de ouvir Zezé di Camargo & Luciano – não aguenta mais ouvir a gaita de um crioulo baixo astral chamado Sonny Boy Williamson, já pensou?
E tem mais. Numa hipótese mais sombria, seu filho apaixona-se por um peão de obra, o Joacir, que ele chama de Dean. Ele e o Joacir, digo, Dean, passam as madrugadas nos bares do largo Paissandu enchendo a cara de conhaque vagabundo e arrumando encrenca com os punks e rappers locais. Num belo dia, você recebe um telefonema sinistro da delegacia dizendo que Sal Paradise está preso, e que você, o pai e/ ou responsável, tem doze horas pra indenizar o dono do bar que seu filhão e o comparsa destruíram, caso contrário o garoto será transferido para a fundação Casa. Fazer o quê, afinal é seu filho. Chegando na delegacia, você encontra Sal Paradise e Joacir monossilábicos, fazendo cara de mal.
E aí vem a cereja em cima do bolo. Em forma de um ultimato de Sal Paradise (que coincidentemente também é seu filho): “Só saio daqui com ele”. Além da indenização para o dono do bar, você tem que pagar a fiança do filhão e do Joacir, viu só que merda?
Tudo culpa da literatura.
Livro bom não é pra qualquer um. Para combater essas aberrações e todas as consequências imprevisíveis que a leitura de um bom livro pode causar na cabeça de um idiota desmiolado como seu filho, enfim, para anular vagabundos do feitio de Bukowski, é que temos o Sesc e o Senac e os cursos profissionalizantes do Instituto Universal Brasileiro, também contamos com os livros do Padre Marcelo para esquecer as viadagens do Reinaldo Arenas, qual bicha você quer pôr dentro de casa? Pense nisso. Pense que Raskólnikov fez a merda que fez porque acreditou nos livros que leu, e uma coisa é certa: Dostoiévski manipulava o mal pensando nos seus filhos. Nunca mais esse russo do inferno, jamais.
Quando é que o Ignácio de Loyola Brandão vai escrever a biografia da Xuxa? Quero amanhecer na livraria Cultura e adquirir o primeiro exemplar. Porque, a partir de hoje, é nisso que acredito: em primeiro lugar no Pedro Bial, e, depois, nas biografias do Loyola: Setubão forever. Nunca mais Camus, nunca mais Thomas Bernhardt, pra Pasargada que o carregue Bandeira. Não quero mais saber de Primo Levi, nem de George Orwell. Basta de Tanizaki e de Pavese, chega! A mãe de Vitorini o encoxava no tanque, e Kafka era sim uma barata, acreditem nisso.
Tudo uma questão de opção e eu aqui, do fundo do meu coraçãozinho sertanejo, e do “alto” de meus doze livros publicados, vos digo: literatura de verdade, aquela que pega na veia e muda a vida de uma pessoa e faz com que ela dê um foda-se amplo, geral e irrestrito a tudo e a todos, aquela que promete subversão e vôos vertiginosos sobre abismos infernais, literatura que grita por independência e liberdade, ah, isso só pode existir na cabeça de quem está irremediavelmente preso, condenado e louco varrido. Não é pro seu filho(a), não.
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