A presidenta Dilma Rousseff resolveu começar esta semana dando o passo mais arriscado do seu governo. Ela se pôs numa encruzilhada: dependendo do caminho que escolher, ou ela entra para a história ou entra pelo cano. E a linha que diferencia uma coisa da outra não podia ser mais tênue.
A imensa fragmentação partidária brasileira criou um modelo de jaboticaba para o nosso presidencialismo de coalizão. É, como a jaboticaba, uma outra frutinha nativa brasileira. Países com menos partidos – e com partidos com linha ideológica mais definida – conseguem formar coalizões mais claramente identificadas com os princípios e os programas dos governos ao qual aderem. No Brasil, com suas dezenas de partidos, as coalizões são uma salada ideológica que só têm propósito numérico, matemático: fazer com que os governos tenham maioria no Congresso para aprovar os projetos de seu interesse e tenham apoio político nos municípios e nos estados para ganhar eleições.
No Brasil, sem partidos hegemônicos e com uma série de partidos de tamanho médio, sem linha definida, atuando no centro do espectro ideológico, a coalizão passa a quilômetros de distância de algum tipo de afinidade daqueles que aderem ao programa de ações proposto pelo governante quando ganha as eleições. O que, por exemplo, o PP, partido marcadamente de direita, tem a ver com as propostas de distribuição de renda e aumento do crédito para as populações de baixa renda que são a marca principal dos governos do PT? O que os partidos de forte presença evangélica, como o PRB e o PSC, têm a ver com a linha de atuação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres ou mesmo do Ministério da Saúde ou da Educação para coisas como o combate à Aids? Nada. Porque a lógica da coalizão brasileira define que é para não ter nada mesmo.
Essa tal jaboticaba brasileira foi lapidada especialmente no governo Fernando Henrique Cardoso e mantida por Lula, principalmente depois do escândalo do mensalão. Consiste no seguinte: os governos preservam o núcleo principal do que garante o seu modelo de administração e literalmente loteiam o resto entre os partidos aliados. Esses partidos pegam, então, seus ministérios e demais nichos de poder não exatamente para colaborar com as linhas do governo, mas para cacifar seus projetos políticos particulares. No bom sentido, como vitrine de realização prática das suas próprias ideias. No mau sentido, como fonte mesmo de financiamento e de poder. É por conta disso que estoura um escândalo atrás do outro.
Ao longo deste atual período de democracia brasileira vivida desde 1985, o PMDB tornou-se o grande especialista nesse modelo brasileiro de presidencialismo de coalizão. O partido simplesmente abriu mão de ter um projeto nacional, de ter candidatos próprios às eleições, para poder aderir a qualquer governo. Foi assim que se tornou o maior partido brasileiro. Super ramificado pelo país, forte em todos os estados e municípios, e extremamente forte no Parlamento. Todos os governos vêem-se, assim, obrigados a beijar a mão do PMDB, a atender às suas reivindicações, dependentes que ficam dos seus votos no Congresso.
O problema é que, sempre que se considera contrariado, o PMDB cobra uma conta alta. Seu caminho é dar sustos no governo para renegociar depois. Foi o que aconteceu na derrota de Bernardo Guimarães, o nome indicado por Dilma para a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Até então, após esses sustos, iniciava-se uma conversa e o PMDB alcançava o que queria. Dilma resolveu que não cederia à pressão nesses termos. Eis aí a encruzilhada: se ela conseguir, a partir daí, demarcar um novo tipo de relacionamento com a sua base, em que esse tipo de pressão já não caiba mais, entrará para a história. Mas se o PMDB reagir, impuser sua força, e tornar ainda mais grave a crise que Dilma agora enfrenta, ela entrará pelo cano. Ou se verá obrigada a renegociar num preço ainda mais alto, ou … sabe-se lá.
É claro que Dilma não rasga dinheiro nem atira pedra na lua. Ao comprar essa briga, ela faz seus cálculos. No início de seu governo, o PMDB experimentava uma unidade que nunca tivera antes. O partido ainda se mostra bastante coeso nas votações, mas a verdade é que já não tem mais essa unidade interna toda. O grupo que Dilma atacou no Senado – Sarney, Renan e cia. – vem sendo contestado. O mesmo acontece com o grupo de Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), líder do partido na Câmara. Dilma apostou nessa contestação para tentar se aproximar de outras parcelas do partido.
Ao mesmo tempo, ela tenta construir outras parcerias que diminuam o peso da dependência do PMDB. Deverá acontecer na próxima terça-feira (20) a conversa para a formalização da entrada do PSD no bloco formado pelo PSB, pelo PCdoB e pelo PTB. O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, deverá vir a Brasília para bater o martelo. Há uma resistência do PCdoB para a entrada do PSD no bloco. Mas, se o bloco for formado, será a maior bancada da Câmara. Se ficar coesa, pode, junto com o PT, ajudar a neutralizar o peso do PMDB, ainda mais se a divisão interna peemedebista se aprofundar.
Pode dar certo? Pode. Mas é um bocado arriscado. O PSB tem mais afinidade ideológica com o PT e o governo, assim como o PCdoB, mas o PSD é um projeto de PMDB. Nesse ponto, pode ser seis por meia dúzia: neutraliza-se uma relação de dependência para começar outra.
O segundo ponto são os adversários eleitos por Dilma. Desde que se iniciaram na política, José Sarney (PMDB-AP), Renan Calheiros (PMDB-AL) e Romero Jucá (PMDB-RR) sempre estiveram bem posicionados junto ao poder. Sarney cometeu a proeza de deixar de ser o presidente do partido que dava sustentação à ditadura militar para, com a morte de Tancredo Neves, virar o presidente do governo que derrubou a ditadura militar. Renan, desde Collor, do qual foi líder, foi figura de proa em todos os governos. E Jucá conseguiu ser líder tanto do governo Fernando Henrique quanto do governo Lula e, até a semana passada, do governo Dilma. Essas são as credenciais dos adversários. Imaginar que eles recuarão, aceitarão passíveis uma posição subalterna ou mesmo menos proeminente na República seria ingenuidade. Os próximos dias serão bem tensos.
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