Na iniciativa privada, existem sem dúvida diversos altos executivos que têm salários acima dos R$ 26,7 mil pagos aos ministros do Supremo Tribunal Federal atualmente. Há na iniciativa privada salários de R$ 50 mil, R$ 100 mil, e até mais. Mas há uma coisa que certamente não existe em nenhuma empresa privada: 464 funcionários que ganham mais de R$ 26,7 mil.
O Senado tem cerca de 3 mil funcionários de carreira, fora os terceirizados. Ou seja, o número de servidores que ganha mais de R$ 26,7 mil ultrapassa em muito os 10% dos cargos efetivos. Alguém imagina alguma empresa privada com uma folha de pagamento assim?
R$ 26,7 mil é o teto constitucional do funcionalismo. Em tese, ninguém poderia em hipótese alguma ganhar mais do que isso no serviço público. Na prática, isso só aconteceu por um curtíssimo período em que prevaleceu uma liminar da Justiça Federal. Em respeito a ela, as instituições dos três poderes cortaram o que excedia a esse valor. Na semana passada, a liminar caiu, por uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao decidir sobre recurso do Senado, que queria voltar a pagar os vencimentos acima do teto.
De acordo com as matérias sobre supersalários que este Congresso em Foco vem publicando, foi uma auditoria do Tribunal de Contas da União que chegou ao número de 464 servidores que recebem mais que o teto constitucional no Senado. Há outros também na Câmara, no Judiciário e no Poder Executivo.
Leia aqui as matérias do Congresso em Foco sobre supersalários
A diferença que fica óbvia entre a cultura do serviço público e a cultura normal na iniciativa privada é que o pagamento de altos salários não é no serviço público algo diretamente relacionado com o mérito. Se o Senado tivesse mesmo quase 500 funcionários merecendo receber todo mês quase R$ 30 mil, seria uma das instituições mais eficientes do país. Certamente, não é essa a percepção da sociedade, que pode até ser distorcida e injusta, mas não é baseada em puro preconceito. Há uns 50 anos, já havia uma marchinha de carnaval que ironizava os servidores públicos na figura da Maria Calendária, que trabalhava, “coitada”, “de fazer dó”.
Esses altos salários fazem parte de uma cultura, que precisa mudar, que considera que o bem público não é de ninguém, e, portanto, ninguém precisa tomar grande cuidado com ele. Os senadores, como também mostrou o Congresso em Foco, também acumulam vencimentos além do que deveriam. Emprestam seus carros oficiais para levar suas mulheres ao shopping center. Passeiam no helicóptero da Polícia Federal, fazendo com que um cidadão acidentado se veja obrigado a esperar. Enfim, a classe política apropria-se sem pudor do bem público. E tal comportamento gera a mesma cultura entre os servidores que a assessoram.
O que acontece não apenas no Senado, mas em boa parte do serviço público – especialmente no Legislativo e no Judiciário –, é a inexistência de uma carreira bem estruturada que preveja de fato uma evolução funcional baseada no tempo e no mérito. Um médico recém-formado ganha um salário baixo como residente num hospital. É ao longo do tempo, quando vai adquirindo experiência e renome, que ele passa a ser alguém bem remunerado. Há diversas carreiras no serviço público em que o funcionário já entra ganhando R$ 20 mil. Claro que são carreiras que exigem boa formação inicial, isso ninguém discute. Mas nos próximos 20, 30 anos da vida funcional, só restarão a esse funcionário R$ 7 mil para que alcance o teto do funcionalismo. É evidente que essa falta de perspectiva de ascensão vai gerar acomodação.
E outro problema gerado como consequência é a febre do concurso público, que é forte em Brasília, mas se espalha por todo o país. É claro que o jovem que acaba de se formar comece a olhar para o serviço público com uma outra perspectiva. Por que ele vai esperar anos como estagiário ou auxiliar num escritório de advocacia, por exemplo, se ele pode rapidamente fazer um concurso público e começar a sua vida já com um salário alto e com estabilidade? A busca não é pela realização de uma vocação profissional: é por dinheiro e tranquilidade. E estamos aí cheio de juízes de vinte e poucos anos sem experiência de vida para julgar as pessoas.
Ao retomar os concursos públicos, recriando a carreira do funcionalismo e acabando com a absurda terceirização inventada no governo Fernando Henrique Cardoso, o governo Lula agiu certo e melhorou a qualidade do serviço público. Mas é preciso que se corrijam as distorções que levam à construção de uma mentalidade na qual servir de fato ao público é o que conta menos.
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