No tempo que se diz democrático não há espaço para o isolamento decisório. Nesta quadra cronológica da humanidade o gestor da coisa pública não é mais o senhor absoluto das decisões. Tampouco o único intérprete autorizado a decifrar o pensamento dos seus administrados. Consultar os cidadãos não é uma mera faculdade democrática. Este ato é, sobretudo, uma obrigação fundamental para situar o grau de democracia aplicado em determinado país. Eleição, plebiscito, leis de iniciativa popular e referendo são palavras determinantes no conceito de soberania popular. Momentos únicos em que os cidadãos participam diretamente dos destinos de seu país, ratificando ou mudando os rumos traçados pelos gestores.
A participação do cidadão, entretanto, não se resume aos procedimentos postos pela democracia direta. O vácuo provocado pelo lapso de tempo em cada convocação popular é preenchido com a efetivação da democracia representativa. Nesta forma de gerir a coisa pública, o cidadão e suas organizações escolhem aqueles que representarão os seus interesses, perspectivas, projetos e sonhos. A democracia representativa complementa a participação direta dos cidadãos, fechando o círculo de compartilhamento decisório a que está obrigado o gestor da coisa pública.
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Não sem razão representantes dos cidadãos e de suas organizações se espalham em todos os cantos e recantos decisórios do Brasil. O presidente, os governadores e os prefeitos junto ao Poder Executivo. Os senadores, os deputados e os vereadores vinculados ao Poder Legislativo. Trabalhadores e empresários indicando representantes nos conselhos que administram o FGTS, nos fundos de pensão e noutros assemelhado. Enfim, representantes de comunidades se alastram pelo país, fazendo brotar a esperança de um Brasil mais participativo. É o novo mundo exigindo o compartilhamento de poderes, pudores e quereres.
O Poder Judiciário, especialmente em razão de sua relevantíssima missão institucional, não ficou alheio ao tema da participação democrática e representativa em seus órgãos decisórios. A Constituição Federal – a exemplo do que fizera com os demais poderes – procurou compatibilizar o recrutamento aleatório do concurso público com a representação direta do cidadão e de suas organizações. E o fez através do ato de convocar para o compartilhamento decisório representantes da advocacia e do Ministério Público. O Quinto Constitucional se fez o instrumento de aprimoramento do Judiciário, permitindo que sua administração não se restringisse aos juízes de carreira, recrutados apenas com base no saber formal.
E não se diga que tal arranjo é novidade heterodoxa da Constituição Cidadã de 1988, que tanto desagrada o conservadorismo político. O espírito do Quinto Constitucional precede-lhe em muito. Repete regra do artigo 144 da Constituição de 1967 (emenda n° 1 de 1969); do artigo 104, alínea b, da Constituição de 1946; do artigo 104, parágrafo 6° da Carta de 1934. Entendeu-se que em prol da produção de Justiça, advogados, magistrados e integrantes do Ministério Público jamais poderiam estar em posição de confronto, em rota de colisão. Todos são agentes do bem supremo da civilização, que é a Justiça.
PublicidadeUm dos grandes desafios da democracia moderna é fazer com que a Justiça seja compreendida, sentida e vivida por todos os brasileiros. Não há, portanto, prioridade maior neste país do que a promoção da Justiça. Ela é premissa básica para que sejam superadas as limitações do subdesenvolvimento econômico e os danos morais da exclusão social. E essa luta – que é uma luta em defesa dos direitos mais básicos dos cidadãos, já incorporados ao patrimônio da humanidade há várias gerações – torna mais importante e vital a presença da advocacia nos tribunais.
É que o advogado não é apenas coadjuvante na estrutura do Poder Judiciário. Nos termos da Constituição e da História da Humanidade é também protagonista – por isso indispensável à administração da Justiça. Não sem razão, Honoré de Balzac assim liquidou a questão sobre a importância da participação da advocacia na magistratura: Todo processo é julgado pelos advogados antes de sê-lo pelos juízes, assim como a morte do doente é pressentida pelos médicos, antes da luta que estes sustentarão com a natureza e aqueles com a justiça.
O advogado tem como missão envolver-se no drama do cidadão comum, compreendê-lo, defendê-lo. O Quinto Constitucional coloca, por meio da advocacia, o cidadão comum no Judiciário. Ele se tornou o melhor antídoto ao distanciamento provocado pela ausência da consulta popular, pela morosidade que destrói esperança ou pela insensibilidade de alguns que acreditam que o saber formal é mais importante do que o saber social. É através do Quinto Constitucional que se pode trazer para dentro do Poder Judiciário vivências como as contadas pelo alagoano Graciliano Ramos – em Memórias do Cárcere – ao ensinar que “Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”.
Nosso tempo cultiva e compreende o espírito democrático do compartilhamento decisório efetivado através do Quinto Constitucional. Não o encara como fator de disputa corporativa entre magistrados e advogados. Esta distorção o enfraqueceria – e, sobretudo, impediria que se exercessem os efeitos benéficos que o justificam perante a sociedade. Afinal, o cidadão não poderá ser considerado o destinatário maior da Constituição Federal se nosso tempo – o tempo da nossa ciência – insistir em reeditar um passado em que as manifestações de autoritarismo brotavam de dentro do Estado, oriundo de um gestor público que se intitulava intocável, infalível e sacro.
Certa vez o magistrado Orlando Viegas Afonso, então presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses – ASJP e também da MEDEL – Associação dos Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdades, pontuou que “Se é importante a discussão sobre a imparcialidade e a independência, não menos importante é, nos regimes democráticos, a forma como os juízes são nomeados (selecionados e formados)”. O recrutamento do advogado para integrar o processo no Poder Judiciário, via Quinto Constitucional, tem legitimidade e a razão democrática. O representante da cidadania e da advocacia nos tribunais jamais poderá ser considerado um magistrado comum. Ele tem um papel específico e especial.
A democracia exige que o representante da advocacia seja o espelho dos cidadãos e da instituição que o designou, o receptor mais autorizado para escutar as suas lamúrias e o porta-voz mais legítimo para tornar reais as suas esperanças. Até porque o representante de uma organização, comunidade ou segmento social deve observar o pensamento da entidade, da sociedade ou do agrupamento que está a representar. E como representante destes cidadãos e organizações, mesmo quando legalmente livre para agir e votar segundo suas próprias concepções, não pode esquecer as motivações de sua escolha.
O Quinto Constitucional não foi criado para oxigenar o Poder Judiciário. Ao contrário, como já exposto, o Quinto Constitucional é dispositivo que enriquece o Judiciário, permitindo que a ele se agregue a experiência de carreiras correlatas – procuradores e advogados. E, no caso específico da advocacia, transmite ao Judiciário maior dose de cidadania e vivência social. O Quinto Constitucional é voz cidadã do outro lado do balcão. E em assim sendo – como de fato é – afastar-se dos compromissos da representação equivale à perda da condição ética da própria representação.
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