Eu fui à guerra. Estava lá, nas trincheiras, buscando a morte dos inimigos – que eles morressem pelo país deles antes que eu morresse pelo meu, afinal. Não havia tempo para pensar ou sentir – matar ou morrer era o nosso credo, avançar não importa a que custo nossa divisa.
À minha frente, entre as nossas trincheiras e as do inimigo, o sangue dos corpos daqueles que tombaram na refrega misturava-se à lama, compondo um cenário dantesco embalado pelas gargalhadas de Satanás. Diante de tamanho horror, ficava a exclamar, com Castro Alves, “Deus, ó Deus, onde estás que não respondes? Em que mundo, em que estrela tu te escondes”?
E eis que caiu a noite do dia 24 de dezembro. Um a um, morteiros, canhões e fuzis foram silenciando diante do grito de nossas consciências. Ao final, só restou aquele silêncio opressor que faz estremecer mesmo as almas mais embrutecidas. Foi quando ouvi uma canção de Natal, ecoando lá das trincheiras inimigas.
O quadro era absurdo – as notas musicais sobrevoavam os corpos insepultos de tantos soldados, pousando a seguir em nossos corações angustiados. Alguns de nós responderam, começando a cantar em coro. As vozes eram tristes, soluçantes e abafadas, mas de uma beleza angelical – ouso arremedar que nunca terá havido perante o Criador concerto mais sublime.
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Um dos nossos, coração tão marejado quanto os olhos, levanta-se então da trincheira. Parte de peito aberto rumo ao inimigo levando não o aço que fere ou o chumbo que perfura, mas o coração que cativa – vai lá, abraçá-lo. Outros o seguem – eu inclusive.
Descobrimos, naquele lugar desolado pelo mal, um sacerdote. Foi ali, entre cadáveres e canhões, que se rezou talvez a mais linda missa que um religioso jamais ambicionaria celebrar. E lá estava eu, ao lado dos inimigos que matei e dos que ainda viviam, buscando pela escuridão deste mundo a luz da redenção.
Findas as orações, nossas rações de campanha compuseram, como que por milagre, a mais deliciosa ceia de Natal jamais servida. Não havia, é certo, o tilintar de cristais – mas quem precisa deles diante do som infinitamente mais agradável das batidas de centenas de corações entrando em harmonia?
Após uma noite verdadeiramente feliz, decidimos sepultar nossos mortos, lado a lado. Com a voz embargada dos penitentes encomendamos juntos ao Criador as almas daqueles irmãos cujas vidas havíamos subtraído na véspera. Foi ali, de mãos dadas com meus inimigos, que finalmente me compreendi efêmero diante da eternidade e insignificante sob o infinito.
Fomos todos – franceses, ingleses e alemães – punidos por estes momentos de grandeza e misericórdia. Afinal, aos senhores da guerra só agrada a paz dos cemitérios. Transferidos para campos de batalha ainda mais violentos, fomos perecendo um a um – mas com a alma leve de uma criança.
A guerra, claro, chegou a um fim – mas aquele Natal de 1914 permanece entre nós, nunca tão atual, convocando nossas mentes a uma reflexão. Onde a liberdade, quando alguns poucos decidem que nossos destinos negarão a lógica mais elementar? Das guerras à corrupção, dos desmandos à sanha da burocracia, lá está Incitatus nos pisoteando a todos, ditando as medidas de nossa humanidade.
Dizem alguns que há no mundo uma tal “maioria silenciosa de pessoas de bem”. Isso não basta – ela há que ser igualmente do bem, há que denunciar o mal, pois que a palha da manjedoura de Belém abrigou a coragem, jamais a omissão.
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