E lá vem ele de novo: Sócrates e seus papos esquisitos. O personagem principal da nossa coluna de estreia parece ter tomado gosto por essa ágora digital e resolveu ficar mais um pouquinho. Sorte nossa: há sempre algo a aprender com esse mestre da arte de tirar nossas ideias da caixinha.
Voltemos, então, às páginas da República, de Platão, esse livro incontornável quando o assunto é pensar a ética e a política. Vamos encontrar Sócrates, logo no início do livro, em debate duro com Trasímaco, que é interlocutor desiludido com a política e impaciente, desses que encontramos facilmente entre nós nos dias de hoje. Em pauta, a tentativa de dar uma definição satisfatória do que é a justiça. A tese de Trasímaco é que Sócrates e todos nós somos ingênuos, pois “a justiça é um bem alheio”: é simplesmente o interesse de quem é mais forte e detém o poder. Ponto. Quem pode manda, quem não pode obedece. A tal justiça funciona na verdade para justificar – exatamente – o poder. Dito de outra forma, justo é aquilo que é útil para quem está no poder ou no comando da situação.
Sócrates não pode aceitar isso, pois equivaleria a dizer que a justiça é necessariamente injusta e com isso qualquer esperança política é fadada ao fracasso. Um certo abismo político abre-se na discussão. Sócrates percebe o perigo e tira do bolso um argumento surpreendente: mesmo a injustiça precisa de “algum grau de justiça”. Até mesmo os ladrões, piratas e outras classes de malfeitores precisam ser de algum modo justos entre eles caso queiram executar com sucesso suas intenções criminosas. Afinal, para agirem em conjunto, é preciso que, no mínimo, os membros do bando tenham alguma ética, sejam “justos pela metade”, como diz Sócrates. Se assim não fosse, cada um tentaria passar a perna no companheiro e, então, bye-bye quadrilha organizada.
Falar de bandidos justos ou de uma ética dos criminosos parece um contrassenso, não? Mas, se a gente parar para pensar, a afirmação começa a fazer sentido. Pense nos códigos de boa conduta das máfias e organizações criminosas de vária matriz; ou então na necessidade de se instituir algo como a delação premiada para que se consiga romper a lei do silêncio que impera no meio das organizações criminosas?
Demasiadamente humano
Pensar que é possível ser, ao mesmo tempo, criminoso e justo produz um outro efeito: o da humanização. Afinal, se alguém é capaz de agir com justiça, mesmo que no âmbito de uma atividade injusta, isso nos mostra que, no fundo, o tal “bandido” não é tão diferente assim de nós, pretensos “cidadãos de bem” (até que nos sejam concedidos os poderes do Anel de Giges, como discutimos na coluna passada, ver aqui).
Uma meia-justiça, que é a ética dos ladrões entre eles, também nos permite compreender o mecanismo psicológico que possibilita aos criminosos se isentarem da culpa por seus atos. Se, para assaltar um banco, preciso executar o vigia, esse ato me parece como algo justo, uma necessidade para a concretização dos meus planos. Se, para me eleger a um cargo público, recorro a financiamento ilícitos e caixas dois, não há nada de mal nisso, afinal, o importante é vencer a eleição para favorecer assim os meus. Com raciocínios assim, é possível justificar quase tudo. Não surpreende que muita ética da política esteja baseada exclusivamente neste princípio do favorecimento de meu bando. O problema é quando esta ética da meia-justiça, da justiça para os meus, se torna a única ética da política.
A suspeita lançada por Trasímaco parece descrever tanto o assalto ao poder por parte dos mais diversos bandos de ladrões como as respostas sempre meio-justas que os poderosos dão às necessidades e reivindicações da população. Afinal, quem acredita que o governante esteja de fato governando para os outros? Mas aceitar uma justiça que é essencialmente injusta, aceitar que a política e o sistema jurídico estejam ao serviço dos interesses dos mais poderosos, seria a pior das derrotas. Seria como conformar-se em viver em uma cidade que faz da ética meio-justa do bando de ladrões sua Carta Magna.
Seria ainda possível pensar na política da justiça-por-inteiro? Ou teremos de nos acostumar definitivamente ao reino nada encantado da “meia-justiça”? Seria ainda possível construir um sistema político em que o interesse do mais fraco e despossuído seja parte da equação? Sócrates continua procurando isso ao longo de páginas clássicas e turbulentas da filosofia ocidental. E nós? Já desistimos?
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