Comecei a sentir aquilo em Pequim, na quinta-feira de manhã, cedo, ao acordar e tentar usar a internet. Havia sido mais uma noite de pouquíssimo sono depois de dias de uma agenda meio doida. O negócio não me assustou: era uma leve pressão no peito – não chegava a ser uma dor – e que se irradiava por ambos os braços como uma nevralgia. Não parecia nada de especial a não ser pelo fato de nunca ter sentido aquilo antes.
Desci para encontrar o primeiro secretário da nossa embaixada, o Marco Túlio Cabral, no hall do hotel com um amigo chinês. Juntos fomos visitar a área de investimento externo Three Gorges, a maior empresa hidrelétrica do mundo, tratar de possíveis investimentos no Brasil. Ela, da mesma forma que a Hanergy, diversifica seu investimento em energias alternativas, inclusive solar. Ao sair da reunião não sentia mais aquela pressão no peito, afastada pela adrenalina.
Ela voltou a me visitar no sábado no aeroporto JFK em Nova York quando bobamente perdi minha escala para Bogotá e estava tentando remarcar no voo seguinte. “Preciso ir ao médico quando chegar no Brasil”, pensei. Logo passou. Na manhã seguinte, cheguei a Bogotá. Ia participar do Congresso Ciudades y Clima, como keynote speaker na sessão de abertura, presidir uma das mesas e, na quarta-feira, intervir no parlamento colombiano. O evento foi organizado pela prefeitura de Bogotá e pela ONG Ciudad Humana, do meu amigo Ricardo Montezuma.
De tarde, no hotel, a sensação voltou novamente. Não era dor propriamente dita. Era uma pressão no peito que irradiava para os dois braços. Não era assustadora, era chata. Desci e encontrei a minha amiga Aspásia Camargo no bar. Estava com um ar cansado, não se sentia bem com sintomas típicos da altitude. Concluí que meu problema era o mesmo. Afinal, o ar de Pequim e Bogotá tem algumas semelhanças embora a altitude da capital chinesa seja menor: é seco e poluído. Uma explicação ecológica convincente: altitude, ar seco e poluição.
Só que, ao contrario das outras duas vezes, dessa vez aquilo não passava. No início da noite, ao descer para a recepção com meu MacBook para que Alex, um amigo colombiano, revisasse o espanhol da minha apresentação em Power Point, para o dia seguinte, senti apertar mais e pensei: de repente melhor procurar um médico aqui no hotel. Esse negócio tá ficando esquisito.
Comentei com Ricardo que reforçou a ideia. Chamaram os paramédicos que subiram ao meu quarto com seus equipamentos. Dois jovens. Colocaram um monte de fios para fazer o eletrocardiograma. Eu estava confiante. “Não tenho nada, é a altitude”. Aí, ele me olhou de um jeito estranho. Repetiu o exame, imprimiu e ficou examinando atentamente. Me olhou de novo e voltou a examinar o gráfico. “Não estou gostando disso”, pensei.
Veio toda uma definição em cardiloguês – dialeto que brevemente dominarei, mas que, naquele momento, não me dizia grandes coisas, ainda mais em castelhano –, mas o sentido das palavras isoladas que captei era inequívoco: “mala oxigenación” , “obstrucción arterial”, “probable enfarto”. A gestalt mais clara ainda. Fui colocado na cadeira de rodas e depois na maca e levado para a ambulância de forma expedita. Aspasia, chamada às pressas, e Alex, o amigo colombiano, embarcaram juntos. “Mifu”, pensei, enquanto a ambulância corria pelas ruas de Bogotá.
Na emergência, fui atendido por outro jovem médico e logo passávamos a novo eletro enquanto a Aspásia iniciava árduo processo de negociação em torno do lado burocrático da coisa. Problemas com o seguro-saúde – eles sempre aprontam –, com as regras do hospital, por aí. Afinal, para que um pudesse ir para a UTI ela teve que assinar um documento se comprometendo a pagar tudo que fosse necessário (eu não podia assinar, possivelmente porque a eventual dita cuja poder-me-ia privar de pagar…) Aspásia assinou o documento que dois dias depois foi substituído por um outro firmado pela minha mulher Ana Borelli, quando chegou.
Veio o diagnóstico: enfarte que, pelos vistos, começara já em Pequim, na quinta-feira. Duas artérias obstruídas, uma muito e outra mais ou menos. As funções fundamentais do coração mantidas, um enfarte nível 2 numa escala de 1 a 4. Medicação via oral, monte de comprimidos, injeções e o soro. Indicação para um cateterismo no dia seguinte que avaliaria se havia como desobstruir as artérias ou se seria um caso de cirurgia.
UTI: ao passar na maca, aquela sensação médio arrepiante de ver nos leitos pessoas certamente muito piores que eu. No meu leito, aquela sensação de um controle total sobre mim, da falta absoluta de qualquer veleidade de movimento. Barulho e luzes. Entreouvi que o prefeito de Bogotá –participante do evento – havia telefonado para saber de mim. Isso mais o passaporte diplomático, a postura combativa da Aspásia e a intervenção da nossa embaixada me possibilitou negociar a grande vitória daquela primeira noite: ficar com meu celular na UTI, algo normalmente proibido.
Eu queria comunicar pessoalmente aos meus filhos, mulher, mãe e secretárias o acontecido. A primeira a saber, até para iniciar a queda de braço com o seguro, ainda de noite, foi Grace, da assessoria de Brasília.
Quando finalmente me vi instalado na UTI, já era madrugada no Brasil e não queria acordar as pessoas de madrugada para o susto. Em Los Angeles, no entanto, eram ainda 11 da noite, assim que a primeira a saber foi minha filha Anninha. “Amorzinho, tá tudo bem, mas papai está aqui em Bogotá num hospital, tive um pequeno problema cardíaco, etc…”. Ela imediatamente decidiu vir ficar comigo. Chegaria menos de 24 horas mais tarde.
Me mantive acordado (não era difícil com o barulho e as luzes) até as 3 da matina, 6 no Rio, e liguei para meu filho Guilherme e minha mulher Ana Borelli. Ana também decidiu vir. Convenci o Gui a ficar, pois a irmã já estava vindo. Depois liguei para minha mãe. Missão cumprida. Chamei a enfermeira: “Preciso de algo para dormir, dose cavalar”. Atendeu, graças a Deus.
No dia seguinte, recebi a visita do pessoal da prefeitura de Bogotá. Veio nosso embaixador. O celular não parava de tocar. Nesses dois dias, recebi telefonemas do Gabeira, Mollon, Zequinha Sarney, Carlos Minc, Paula Serrano, Flora Gil, Sergio Bello e mais umas dezenas de outras pessoas que ajudaram muito a levantar a moral. Pelo msm mensagens: Armando Strozemberg, Sérgio Xavier, Patricia Kranz, Clarissa Garotinho, Rogério Zilberstein e muitos outros. Por e-mail, Roberto Rocco e outros, com destaque para o Chico Alencar, que recentemente passou por uma dessas bem mais punk ainda. (Ausência notada: o prefeito do Rio, que se interessou por mim menos que o de Bogotá…). Nosso embaixador compareceu à UTI e ficamos batendo papo.
Adrenalina máxima: a hora do cateterismo. Parece um negócio meio impossível, mas, de fato, conseguem pegar uma veia no pulso e ir empurrando um cateter (um tubinho cheio de bossas) até o coração, injetam um liquido traçante, olham as artérias e veias. Não senti nenhuma dor. Algumas sensações: calor no rosto, leve náusea, pressão no peito, que o cirurgião sempre me antecipava, permaneci lúcido o tempo todo, a sensação que teve foi que durou quase duas horas. Fiquei com dor nas costas.
“Não será necessário realizar uma cirurgia, estou colocando dois stents em duas de suas artérias e o senhor deverá se recuperar rapidamente, mas terá que mudar seu estilo de vida no tocante à alimentação e, sobretudo, stress”. Foram as palavra mais sublimes que poderia ter ouvido ao concluir-se o diagnóstico nos primeiros 20 minutos. Isso pelo cirurgião que de manhã disparara à queima roupa: “Precisamos fazer um cateterismo para tomar uma decisão: angioplastia e stent ou cirurgia. No seu estado atual o senhor tem 40% de chances de morrer se não fizer nada”. Isso dito em espanhol soava ainda mais dramático.
Por isso, quando o mesmo médico disso que não ia precisar de cirurgia, foi para mim como um gol do Mengão. Só que silencioso, contido, as redes balançando em super câmara lenta… Ou como a cena do filmezinho que ele mostrou das minhas artérias pré e pós: um filete quase insignificante e logo um riacho reconstituído.
Logo que voltei à UTI, tudo se desanuviou definitivamente. Minha filha Anninha surgiu com aquele jeito só dela de iluminar tudo em volta. Uma das enfermeiras brincou: “Ahora el corazón de usted es mitad colombiano”.
Dormi profundamente. Logo que acordei, na manhã seguinte, chegou minha mulher Ana Borelli, que havia deixado às pressas, mas com grande reponsabilidade e tudo encaminhado, a mega exposição da área portuária que está dirigindo nos mínimos detalhes.
No dia seguinte, fui para o quarto e na quinta-feira veio a alta. Na sexta, a primeira sessão de fisioterapia –puxada –, que me fez pela primeira vez ter a noção mais precisa do abalo. Lembrei-me da esteira do hotel Portman em Shanghai apenas dez dias antes. Comecei andando em 6, depois 6,5. Em cinco minutos, comecei a corrida com 8, depois 8,5, depois 9 e nos últimos dois minutos 10. Depois voltei para 6. Ao todo, dez minutos de caminhada e vinte de corrida.
Agora, ela colocou em 3 para caminhada e fiquei cansado, diminuiu para 2,5 e logo para 2. Fiz vinte minutos, terminei suando em bicas. Dizem que para cinco dias depois de um enfarto não está mal. Pode ser. Mas fiquei meio deprimido. Decisões: perder dez quilos, adotar uma dieta radical e fazer ainda mais exercícios.
Foi um caso estranho justamente porque faço bastante exercício, tomo estatinas e medicação para pressão e nenhum exame cardíaco anterior (um completo em 2010 e um eletro no início deste ano) havia indicado algum problema cardíaco.
É verdade, foram dois anos de considerável stress e aporrinhação. Tudo que aconteceu envolvendo o processo PV/Marina, as coisas do PV no Rio, o trabalho frequentemente muito frustrante na Câmara, a rotina de ir a Brasília toda semana. Uma permanente sensação de tristeza com os destinos do partido que fundei e alguns períodos de trabalho alucinante como na Rio + 20 e nessa viagem à China, onde especificamente, em função do fuso horário, passei duas semanas dormindo três ou quatro horas por noite.
Algumas providências serão elementares: rotinas, disciplina na alimentação e nos exercícios. Outras menos triviais: como continuar na política brasileira e na atuação pública com menos stress, e sem essa sensação profunda de frustração de um coração deveras partido. Pode ser que, afinal, parafrasenado (e traíndo) Fernando Pessoa seja mister concluir que para alma não ficar pequena nem bem tudo vale a pena.
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