Não foi nem um pouco por acaso que o ministro Celso de Mello passou a maior parte do tempo do seu voto discutindo com os demais ministros do Supremo Tribunal Federal a teoria do domínio do fato. Essa teoria, importada do direito alemão, tem sido a base do voto que condena o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu no julgamento do mensalão. Trata de dizer que Dirceu tinha conhecimento pleno do esquema e que, como comandante que era do partido, era quem dava o aval final ao que se acertava – não sou eu quem está dizendo isso, trata-se apenas de uma tradução do que dizem os ministros do STF que assim consideraram a participação de Dirceu. Celso de Mello é o decano do Supremo. Por isso, assumiu o posto de defensor da teoria para ser o defensor dos seus pares, o defensor da instituição. Porque tanto ele como os demais ministros sabem que o uso da teoria do domínio do fato para condenar José Dirceu é o ponto mais polêmico do julgamento.
Sem entrar no emocionalismo de quem politiza – de um lado e de outro – o julgamento do mensalão, é possível se concluir que a análise dos ministros do STF na Ação Penal 470 apresenta dois importantes avanços e uma polêmica na jurisprudência de casos de corrupção pública. A polêmica é a teoria do domínio do fato, e vamos voltar a ela mais adiante. Vamos, primeiro, aos dois avanços. Por sinal, importantíssimos.
Para determinar a corrupção, não é preciso o ato de ofício – Esse é um ponto com o qual todos os onze ministros do STF que participaram do julgamento (onze, porque tal entendimento inclui também Cézar Peluso, que se aposentou no início do julgamento) concordam. Antes, prevalecia um critério pelo qual era necessário fazer-se uma conexão direta entre o recebimento de alguma vantagem indevida e uma ação correspondente em troca. Tal entendimento acabou contribuindo para absolver o ex-presidente Fernando Collor: não se encontrou uma ação dele no governo que exatamente correspondesse ao Fiat Elba que ganhou de presente de um dos fantasmas de PC Farias.
Agora, os ministros entendem que se alguém efetivamente recebeu dinheiro proveniente de desvio de recursos públicos é corrupção. É um avanço inconteste, porque nem sempre é fácil se identificar essa relação direta.
O próprio caso da compra de apoio político – base da acusação do mensalão – é um claro exemplo disso. Fazer parte ou não de uma base de apoio parlamentar é algo que engloba mais do que simplesmente votar ou não a favor dos projetos do governo no plenário. Além disso, no modelo de coalizão brasileiro, a base de apoio é geralmente difusa, gerando uma necessidade de negociação permanente. Quem acompanha a política brasileira, sabe que muitas vezes os partidos da base dão “sustos” no governo negando votos para voltar a negociar as vantagens que desejam. Seja um cargo que cobiçam e não receberam, sejam verbas orçamentárias, seja dinheiro mesmo.
Assim, um partido ou um parlamentar poderia usar em sua defesa que não votou pela aprovação de algum projeto quando, na verdade, ele bem poderia ter agido assim justamente porque naquele momento estava chantageando o governo para obter algo mais. E a Justiça, tentando estabelecer essa conexão direta, cairia nessa esparrela. Agora, ficou claro que, se o dinheiro recebido era indevido, fica caracterizada a corrupção.
Se há dinheiro público, é corrupção, não somente caixa 2 – Outro ponto em que o entendimento dos ministros foi unânime – ainda que possa ter havido divergência quanto aos réus condenados – é de que a invocação de caixa 2 eleitoral não derruba o crime de corrupção. Aliás, a tática usada por alguns advogados nesse sentido causou espanto à ministra Cármen Lúcia, atual presidenta do Tribunal Superior Eleitoral. Alguns advogados foram à tribuna confessar crime de caixa 2 eleitoral – que, no caso, já estaria prescrito – para tentar livrar seus clientes da imputação de outros crimes, não prescritos. A ministra tem razão: é espantoso mesmo ir à tribuna da Suprema Corte confessar um crime com o propósito de escapar de outro e da prisão. Felizmente, tal tese não colou.
No caso, os ministros do Supremo entendem que, comprovado o recebimento de dinheiro proveniente de desvio de recurso público, não importa se o beneficiário daquele dinheiro usou-o para pagar despesas de campanha eleitoral ou o que quer que seja. O dinheiro é indevido.
Ainda que, no caso, os ministros tenham destacado que nem sempre o dinheiro recebido foi usado mesmo para pagar despesas eleitorais. Serviu até para amparar a amante do ex-presidente do PTB José Carlos Martinez, morto num acidente aéreo em 2003. E quem disse que o dinheiro foi para a amante de Martinez foi Ricardo Lewandowski, o ministro mais simpático às alegações da defesa no julgamento.
A teoria do domínio do fato – Mesmo ao apresentar sua denúncia, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, já admitia que fora mais difícil encontrar provas da ação de José Dirceu no mensalão. Na época, ele dizia que muitas vezes o chefe da quadrilha esconde-se por trás dos demais. E que os planos do esquema eram arquitetados entre as paredes dos gabinetes do Palácio do Planalto, portanto, longe das vistas das pessoas – de novo, não sou em quem diz isso, é outra vez um resumo do que ele disse na ocasião. Os demais réus sacaram ou depositaram dinheiro, assinaram documentos. Dirceu, não. Daí, as provas contra ele eram mais frágeis.
Para alcançá-lo, o Supremo valeu-se da teoria do domínio do fato. Trata-se de uma teoria surgida nos anos 1930 na Alemanha e usada, entre outros casos, para condenar comandantes nazistas por crimes de guerra. No caso dos nazistas: não bastava condenar somente aquele que, por exemplo, efetivamente colocou prisioneiros judeus nas câmaras de gás, mas os que ordenaram que tal barbaridade fosse feita. Ainda que objetivamente a ordem não ficasse clara, estava estabelecido que tais comandantes tinham o “domínio do fato”: o conheciam e, mais do que isso, davam o aval final a ele. Tal teoria é usada também para alcançar chefes de organizações criminosas mais complexas: máfia, tráfico de drogas, etc.
O que os ministros entenderam foi que Dirceu, como o articulador principal da formação das alianças políticas, como alguém que notoriamente era, como disse Ayres Brito, um “primeiro-ministro”, mas não deixava também de ter o comando do PT, não tinha como não saber de que forma era acertado o apoio político ao governo.
Alguns ministros citaram, em seus votos, que Roberto Jefferson não foi o único a falar, nos depoimentos à Justiça, da participação de Dirceu. Outros envolvidos também disseram ter participado de reuniões em que Dirceu estava. Ou que, ao final de uma reunião, Delúbio Soares ou José Genoino ligavam para Dirceu para relatar o resultado.
É daí que eles concluíram que ele tinha o “domínio do fato”. Mas os próprios ministros sabem que a adesão a tal tese é polêmica. E não foi por acaso que passaram tanto tempo na sessão de ontem (10) debatendo esse ponto.
Tomara que esteja certo o ministro Celso de Mello quando disse que os juízes – não apenas do STF – usam há décadas a teoria do domínio do fato, “de forma prudente”.
De qualquer modo, os dois avanços, além do ponto polêmico, poderão significar um novo momento para o julgamento de casos de corrupção pública. Um novo momento de maior rigor, de menos leniência com o desvio dos recursos públicos. É o que se vai cobrar aqui neste espaço. A partir de agora, ao final de cada coluna, estará em negrito a seguinte frase: Julgado o mensalão do PT, que venham os julgamentos do mensalão do PSDB e do mensalão do DEM. Com o mesmo rigor. Porque chega de “todo mundo faz, sistematicamente”.
x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-
“Julgado o mensalão do PT, que venham os julgamentos do mensalão do PSDB e do mensalão do DEM”
Deixe um comentário