Por uma estranha combinação de eventos pessoais e profissionais, o dia 17 de abril de 2016 – quando a Câmara dos Deputados aprovou a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff – me colocou a mais de 7 mil km de distância de Brasília. Enquanto os deputados decidiam o futuro da primeira mulher a ocupar a presidência da República, eu estava em Austin (Texas, EUA), onde fui participar do 17o Simpósio Internacional de Jornalismo Online.
O domingo do impeachment coincidiu com um período de duas semanas de férias, marcado com grande antecedência. O compromisso era dedicar alguma atenção a uma família que pacientemente convive com um maluco que poucas vezes trabalha menos de 80 horas por semana.
No meio do caminho, rolou o simpósio. Espero voltar ao assunto. Por enquanto, quero registrar apenas o meu imenso prazer não apenas em ter estado ali, injetando megalitros de informação nova na veia, mas de ter visto um brasileiro protagonizando a coisa, simultaneamente com sabedoria, generosidade, paixão & humor. Rosental Calmon Alves, diretor da entidade promotora do simpósio (o Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, da Universidade do Texas), me fez lembrar, meio que na contramão do atual turbilhão de pessimismo pátrio, como adoro ter nascido brasileiro.
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Era domingo, o impeachment ali pra ser votado, e eu online, (A) explorando as iluminadoras possibilidades das barreiras que se abrem e das que se fecham no campo do jornalismo, ao mesmo tempo em que (B) acompanho os acontecimentos, para me colocar a par das novidades e, sobretudo, (C) indicar caminhos e problemas na cobertura do Congresso em Foco, ora auxiliando nas postagens, ora direcionando a ação nas redes sociais, ora motivando a galera baseada no Brasil.
Pausa para créditos. Em Brasília, o time que entrou em campo foi: Edson Sardinha, editor-executivo; Leonel Rocha e Fábio Góis, editores; Lúcio Batista, gestor de tecnologia; Luma Poletti, Gabriel Pontes e Patrícia Cagni, repórteres. Em São Paulo, Felipe Aguiar da Costa, meu filho e sócio-gerente da chureba, pegou a namorada Sofia e saiu a registrar com vídeos e fotos as manifestações vermelhas e verde-amarelas.
Como aconteceu desde que pisei nos Estados Unidos, dormi pouquíssimo na madrugada daquele domingo. Quando saí do hotel, às 8h30 (10h30 em Brasília), já estava há horas falando e trocando mensagens. Com a equipe do Congresso em Foco e também com parlamentares, analistas políticos e jornalistas estrangeiros. No último caso, suponho que em boa parte em razão do nosso reconhecido apartidarismo, a demanda alcançou nos últimos dias níveis espantosos: Al Jazeera, The New York Times, Reuters, France Presse, The Guardian, RBC News (da Rússia), BBC, rádios da África do Sul e da Suécia, The Economist… jornalistas de todo o mundo nos procurando para tentar compreender o que, muitas vezes, somos incapazes de explicar.
Retomando o fio da meada. Domingo, 17, dia da aprovação do impeachment. Saio do hotel Ramada, em Austin, a caminho do prédio onde funciona o Centro Knight, para o último dia de atividades, já de mala pronta.
Entro no táxi. O motorista, um senhor com seus 70 anos, por aí. Já rodamos algumas centenas de metros e observo que ele não ligou o taxímetro. Aviso com a melhor das intenções, para evitar que ele fosse prejudicado, O homem resmunga, malcriado, que eu não preciso me preocupar porque, se prejuízo houver, a vítima será ele. Digo que é isso que desejo evitar, mas ele não dá muita bola. Decido ficar quieto. Mas o taxista logo me pergunta de onde sou. Falo que sou do Brasil e ele se derrete todo, como é comum pelo mundo afora. Abre um largo sorriso e proclama, em tom de discurso:
“Sou palestino. O Brasil foi o primeiro país do mundo a reconhecer meu povo. Nenhum outro fuckin’ country nos tratava como cidadão, o seu país foi o primeiro a nos reconhecer como cidadão”. Em tempo: não sei se a informação é verdadeira, embora seja um fato o bom relacionamento que o Brasil tem com os palestinos desde 1975, quando – ainda durante a ditadura militar – o país autorizou o funcionamento em Brasília de um escritório da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
O motorista fala maravilhas sobre Lula, diz ser amigo de vários brasileiros e desanda a meter o sarrafo nos bandidos que infestam a política pelo mundo afora e que agora querem tirar do poder “a mulher”. Isto é, Dilma Rousseff, cujo nome o taxistas não foi capaz de pronunciar nenhuma vez.
“Dizem que ela roubou”, continuava ele. “Mas qual o político que não rouba? Se roubou, o dinheiro mudou de mãos, mas continuou no Brasil”. Lembro que nesse momento botei pra fora todos os enormes dentes que Deus me deu, um riso que se revelou um alívio mais que passageiro na tensa conversação inesperadamente estabelecida.
O falante senhor, que eu tomaria como um “afro-americano” não tivesse ele declarado a nacionalidade palestina, me pergunta “what the hell is going on in Brazil”. Saio do confortável silêncio em que me encontrava e me atrevo a dizer que naquele dia mesmo a Câmara deveria aprovaria o início do processo de afastamento de Dilma do poder, como aconteceu.
“Whaaaatt, man?”, berra ele de volta, virando pro banco traseiro, onde eu me encontrava. Furioso, questiona: “Como assim? Você está julgando a mulher? Você está dizendo que ela tem que sair? Que ela tem que deixar o cargo, mesmo depois de eleita por milhões de brasileiros??!!!”.
Tento explicar que pretendo apenas atualizá-lo sobre o que deve ocorrer porque tenho alguma informação sobre o assunto. Que sou jornalista, que me dedico exatamente à cobertura do Congresso e da política brasileira. Que ousadia a minha! “Ah, só podia ser jornalista. Todo jornalista é tendencioso e você prova que é tendencioso”. Eu, surpreso, levava na boa. Já estávamos chegando ao destino quando lembrei que ainda tinha na mochila um exemplar impresso de um número antigo da Revista Congresso em Foco.
Falando grosso, virei o jogo ao mostrar que não entraria na pilha do sujeito e após presenteá-lo um exemplar da revista, para o qual ele lançou olhos interessados e curiosos, como se o seu radar tivesse encontrado algo exótico. “Já que o senhor não me ouve, quem sabe não consegue a ajuda de algum dos seus amigos brasileiros para traduzir o que está escrito e ter alguma ideia sobre o nosso trabalho”. Quando saio do carro, para pegar a mala, me cumprimenta simpático, refeito do piti que protagonizara.
Entro no prédio do Centro Knight pensando em como se globalizou a intolerância. O que me fez lembrar outra história, contada por um ex-secretário de estado de São Paulo, que certa vez foi à França com um colega de secretariado muito competente em sua área de atividade (agricultura), mas algo simplório. Chovia torridamente em Paris, onde se encontrava a comitiva liderada pelo então governador Mário Covas (PSDB), e ele se impressionava com a dimensão do temporal. Ao que o auxiliar, prontamente, comunicou: “Liguei agora de manhã pra São Paulo e lá está a mesma coisa. A chuva é geral”.
Pois é. Parece que o mundo fez o mesmo com o sectarismo político. Ele agora é geral.
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