A história contada ontem (17) neste Congresso em Foco por Fábio Góis é mais um triste retrato da falência do atual sistema legislativo brasileiro. Mais uma eloquente evidência de que tal sistema precisa de uma reforma urgente. Mais uma demonstração de que a recusa de deputados e senadores de se debruçarem de forma séria sobre tal reforma transforma o fato narrado pelo Fábio em mais um passo firme e decidido rumo à esculhambação do Congresso brasileiro.
Para quem não leu a história, segue o link e o resumo. Um deputado – Eduardo Cunha (PMDB-RJ) – e um senador – Inácio Arruda (PCdoB-CE) – passaram a usar de forma recorrente o expediente de apresentar emendas a medidas provisórias do Poder Executivo para tentar aprovar suas propostas. Eduardo Cunha apresenta sempre a mesma emenda – propondo a extinção do exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – e Inácio Arruda alterna duas emendas, que tratam de questões tributárias de setores de importância na economia de seu estado, o Ceará.
Não vamos entrar no mérito das propostas que os dois parlamentares tentam aprovar. O que espanta é o expediente escolhido por eles. Primeiro: as emendas que eles propõem não têm relação alguma com o objeto principal das medidas provisórias. Segundo: em vez de se valerem das ferramentas legislativas de que dispõem como parlamentares, eles pegam carona na ferramenta legislativa que a Constituição concedeu ao Poder Executivo. O que tal opção revela? Que o Congresso cada vez mais aceita ser um mero trailler, um reboque, do Poder Executivo.
Ao justificar sua opção pela emenda à medida provisória, Eduardo Cunha expõe uma situação inquestionável. As pautas da Câmara e do Senado vivem trancadas por medidas provisórias. O Congresso praticamente não faz mais nada hoje senão examinar medidas provisórias. Num quadro como esse, a possibilidade que resta para tentar aprovar alguma coisa é tentar emendar as medidas provisórias. Impossível não conferir razão a Eduardo Cunha no seu argumento. Impossível entender como o Congresso não reage a tal situação.
Como o monstro do dr. Frankenstein, a medida provisória é a criatura que hoje assombra o criador. Ela foi imaginada no primeiro turno da Constituinte quando os parlamentares escreviam uma Carta que então imaginavam para um país parlamentarista. A medida provisória seria então uma ferramenta para um Executivo que seria extensão do Legislativo, um gabinete parlamentar. No segundo turno, a corrente parlamentarista acabou derrotada pelos constituintes que se uniram no chamado Centrão. O país permaneceu presidencialista, mas a medida provisória ficou. E deu um golpe pesado na chamada equipotência entre os poderes.
Com a ferramenta que ganhou, o Poder Executivo – que já era muito forte pela estrutura centralizada da República brasileira – ficou muito mais forte que o Legislativo. E ainda ampliou essa força com as regras – e a falta de regras – criadas para as medidas provisórias.
A medida provisória foi criada para ser uma ferramenta de exceção. Quando houvesse um caso de “urgência e relevância”, o presidente da República lançaria mão dela para fazer valer imediatamente a nova regra necessária. É apenas por causa da sua – em tese – “urgência e relevância” que a medida provisória tem preferência sobre qualquer outro tipo de proposição e tranca a pauta da Câmara e do Senado. Ocorre que, na prática, porém, o governo chutou para o espaço a “urgência e relevância” e faz medidas provisórias às centenas, sobre qualquer tema.
E as pautas da Câmara e do Senado vivem trancadas de MPs que nada têm de urgentes e relevantes. O Congresso bem poderia reagir a derrubar as MPs. O problema é o imbróglio jurídico que tal ato de rebeldia gera. Uma MP passa a valer no momento exato em que é editada. Se cair depois, gera uma imensa confusão jurídica. E é o Congresso quem tem de encontrar uma solução para essa confusão jurídica se optar por derrubar uma MP. Resultado: o Congresso acaba aprovando a imensa maioria das MPs para fugir desse rolo todo.
Era de se esperar que uma MP tratasse de um único tema, “urgente e relevante”. Mas o governo descobriu que a melhor forma de fazer passar alguma coisa polêmica é enfiar como artigo de uma outra MP que, de fato, seja “urgente e relevante” ou trate de alguma coisa que tenha a concordância de todo mundo. Assim, as MPs passaram a chegar tratando dos mais variados temas nos seus artigos. O deputado aprova ações emergenciais contra a seca e pode, desavisadamente, acabar revogando a lei da gravidade.
Já que a MP trata de temas variados, por que não aumentar a sua variedade enxertando emendas com ainda mais outros temas? Também foi o governo quem descobriu esse caminho. Buscou aliados na sua base de sustentação para apadrinhar emendas de interesse do Executivo nas suas próprias MPs! Foi assim que o governo conseguiu passar o Regime Diferenciado de Contratação (RDC) para as obras do PAC. Como emenda a uma medida provisória. Ora, voltando ao argumento de Eduardo Cunha, se o governo faz, por que o deputado não pode fazer também?
E vai assim o Congresso se contentando em virar repartição do governo. Aceitando que as suas chances de alteração do jogo sejam só nas brechas que o próprio Executivo lhes conceder. Até quando?
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