Eu tinha menos de 12 anos. E por muitos anos antes disso eu passava pela estante de casa e lá estava ele: o título do primeiro livro de Clarice Lispector que li, A maçã no escuro. Mas não era o título que me intrigava, era o nome da autora. Eu lia “Clarice Lispector” e algo logo se instalava no meu imaginário de pré-adolescente. Algo soava Agatha Christie, Virginia Wolf, a despeito dos estilos literários – díspar no caso da primeira, familiar no segundo caso. “Lispector” era o conflito benquisto (eu não sabia, mas queria continuar a ler apenas, e só, o nome da fada). Clarice começava a se insinuar. O moroso transcorrer dos anos a levaria para longe, para depois devolvê-la como encanto definitivo.
Agora eu tinha vinte e poucos anos. A universidade era meu micro-universo simulado se esgueirando das fáceis delícias. Eu buscava a compenetração, e recebia o desafio das notas e aprovações. Foi quando o surgimento de uma confraria me trouxe Clarice de volta. Washington (o amigo cortês) e André (a amizade livre) me incentivavam: escreva. Assim, sem ponto de exclamação, sentença imposta como ponto inicial. Eu passei a escrever para entender a Clarice que lia. E li para começar algo que me parecia importante, mas que eu não fazia ideia do que se tratava.
Perdão a você que lê esse devaneio introdutório. Vamos aos fatos, evitando adjetivos e voos rasos: nos tempos de universitário consolidei o contato estranho que tinha com Clarice por meio de um livro e uma estante. Com os amigos supracitados, “fundei” uma confraria e publiquei dezenas de edições de um jornal chamado Penúltima Palavra – “porque a última palavra é do leitor”, dizia o lema infantil e algo romântico. Esse é o perfil do graduando que fui: a monografia sobre a autora de Perto do coração selvagem, sua obra inaugural, era consolidação do meu encanto irremediável. Clarice sempre foi uma intriga e um prazer. Necessariamente nessa ordem.
E no último dia 10 de dezembro ela faria 91 anos, mas inventou de morrer, em 1977, um dia antes de completar 57 anos. Eu estava de plantão naquele 10 de dezembro – no dia seguinte, o Estado do Pará correu risco de virar três. Ou dois. Ficou um. Eu me recusei a publicar nesta coluna algo sobre Clarice em um dia “contaminado”. Escrever sobre e para ela é coisa pra ser feita com o máximo de distanciamento: naqueles 10 e 11 de dezembro eu fazia jornalismo, e discorrer sobre a escritora implicava contaminação.
Ademais, mestres como José Castello, Teresa Monteiro e Nádia Batella Gotlib certamente prestariam seus proficientes tributos. Foi uma enxurrada de “homenagens”. Até “dia de Clarice” inventaram. Será que ela ia gostar dessa história? Logo Clarice, para quem a morte é que imporia a verdadeira distância a seus leitores mais afetados – eles a endeusavam; ela, víscera ambulante, rejeitava o rótulo… Sei não. Eu homenageá-la-ia ficando em reverente silêncio.
Mas agora lanço flores aos ventos: saquei uma das minhas edições do Penúltima Palavra (guardo “no plástico” todas elas, em impressões coloridas), pincei um texto-loa escrito a lápis não sei onde e publicado no jornalzinho, e agora o transcrevo abaixo. Assim, submeto-me à execração pública apenas para fazer minha singela homenagem a você, Haia Pinkhasovna Lispector. O texto tem aquele frescor quase piegas do pós-adolescente diante do descortinar da vida e do mundo real. Desculpe-me pelo mau jeito: às vezes, imitar sua escrita é o que nos salva da… como é mesmo que se chama a falta de graça que nos assalta em pleno calçadão de Copacabana quando, de repente, surge aos nossos pés um enorme – e morto – rato ruivo?
Com sua permissão, eis o texto do jornalzinho. Sem parágrafo, título ou aspirações (no jornal, foi publicado com a menção à escritora na frase “quero escrever movimento puro”):
“Vivo tentando o lado escuro e atraente da vida de uma pessoa. Há muito perco horas na feitura de uma letra que me agrade. Quanto às outras, que os ventos as levem e tragam de volta quando couberem em minha aspiração. E minha aspiração não passa de afável silêncio. Já registrei milhares de vezes o maior alarde que pode emanar das palavras, com a obcecada intenção de fazê-las sair por aí para, enfim, ter sem esforço o nobre e silente instante do verso. Uma espécie de silêncio que se vê na ida de tudo o que não seja eu mesmo. A cada episódio, do fundo de meu desterro, mando uma porção de mim para desfrutar o frêmito das coisas se libertando. A parte que fica sorri e constata que precisa daquele movimento puro de minhas próprias vozes. Nessas horas, escrever é uma felicidade mutante que senta ao nosso lado para trocar insultos e carícias – nada melhor do que ser fustigado pela centelha fugidia da felicidade. Ela nos tira da condição escultural de criaturas com uma luz acesa na cabeça. E nos põe no fluxo contínuo das situações ilusórias ao nos tornar barco sem leme, remo, norte ou timoneiro – apenas o projetar das horas em um mar de singela ignorância. Viver é abraçar o voo do vento e aterrissar no descampado da alma. Uma vida inteira de quedas nos distancia de uma vida pateticamente segura. Não seria inteiro sem minhas cicatrizes de luz, arremedos de lembrança das minhas férias ao sol. Não seria completo sem os resquícios da dor latejante que herdei em cirandas na gelidez da lua. Não seria um homem em vias de anjo se não cortejasse o perigo ensejado no arrancar de uma flor. Sou demais um voo e um mergulho para me deter ao grilhão das palavras terrenas. Escrever é como a renitência de um vento doce: conduz ao estado primitivo do que deve ser a vida eterna. Prefiro o ventre, porque nele me encontro. Se ‘tudo o que é fêmeo é preso pela cintura’, ofereço-me a passeá-la em meus braços.”
Mais, de mim, para Clarice: