“Eu sou a favor do Uber.” A frase banal me surpreendeu quando pronunciada por um taxista paulistano. Nos últimos meses, a cidade assiste a uma verdadeira queda de braço entre as entidades de classe dos taxistas e os representantes da empresa americana Uber, fundada em São Francisco em 2009 e hoje atuante em 60 países. No Brasil, a empresa começou a operar em maio do ano passado apesar da oposição dos taxistas que acusam os serviços de “transporte compartilhado” da Uber de concorrência desleal.
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O debate é semelhante ao que ocorreu em praticamente todos os cantos onde a Uber se instalou. Sob o slogan “Seu motorista particular”, a empresa oferece um aplicativo que conecta os usuários finais a motoristas particulares previamente selecionados. Quem se opõe afirma que o serviço é uma prática clandestina do serviço de táxis, sem fiscalização ou controle – argumento obviamente encampado pela maioria dos taxistas e suas entidades de classe. Já os que são simpáticos à empresa afirmam que a Uber opera em um modelo de negócios inserido na chamada economia compartilhada (de pessoa para pessoa), que otimiza recursos, gera emprego e pode ajudar a reduzir o trânsito das grandes metrópoles.
Desde maio do ano passado, a população das grandes metrópoles brasileiras assiste atenta aos vários rounds dessa batalha de interesses particulares que incidem sobre o interesse público. Em São Paulo, o último lance foi a aprovação, em 9 de setembro passado, do Projeto de Lei 349/2014, de autoria do vereador Adilson Amadeu (PTB). O projeto proíbe a atividade da Uber e de aplicativos que oferecem serviços remunerados de transporte individual de passageiros sem o uso de táxis. Caso o PL 349 seja sancionado, a atuação da empresa passa a ser ilegal em São Paulo. Pelo menos por enquanto: o PL passou com uma emenda, apresentada no dia da votação pela Prefeitura, que deixa uma brecha para uma futura regulamentação da Uber e de serviços semelhantes.
Conversei com o taxista pró-Uber em uma noite chuvosa no centro de São Paulo, poucos dias antes de o PL 349/2014 ser aprovado. Queria entender por que ele tomou uma posição divergente da maioria da categoria. Ele me contou sua história.
“Pago R$ 150,00 por dia pra máfia”
PublicidadeDepois de anos de trabalho braçal, o corpo do marmorista Wilson* pediu arrego aos poucos. Seu vigor físico foi virando pó à medida que serrava, empilhava e polia placas de mármore e granito. O trabalho com o mármore passou a ser só um bico, mas Wilson continuou a trabalhar pesado como torneiro mecânico no chão de uma fábrica na zona leste paulistana. Nos anos 1970, virou “agitador de greve”, nos seus próprios termos, e membro do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. “Queimei meu filme nas fábricas e não consegui mais trabalhar na metalúrgica”, diz ele para resumir o episódio vivido há 34 anos. Ainda jovem, resolveu buscar uma nova fonte de renda como taxista em São Paulo. Mas só conseguiu entrar na chamada “ralé dos táxis”: as frotas – ou a “máfia” –, jargão usado por muitos frotistas para se referir às empresas que os empregam.
Wilson é registrado na empresa em que trabalha e recebe um salário mínimo mensal – um pagamento muito inferior ao valor das diárias cobradas pelo carro. “Eu pago 150 por dia pra máfia, se eu atrasar um dia pra pagar, a diária sobe pra 170. Se atrasar três dias, eles tomam o carro e te colocam no listão. Se você entra nessa lista, não trabalha de jeito nenhum. Eles só tiram seu nome quando você pagar”, conta. O “listão”, citado por vários frotistas entrevistados pela Pública, é compartilhado entre as empresas de frota de táxi que tem um acordo velado para não contratar os que constam desse “SPC das frotas”.
“Eu ainda tenho que pagar conserto de pneu, multa, batida, combustível e mais o meu almoço. É tudo a gente que paga. E tem mais: se o carro bateu, a máfia pede a peça no desmanche e cobra da gente peças novas”, continua o taxista. “Os desmanches alimentam as frotas. E você sabe que peça de desmanche é tudo peça de carro roubado. É mais barato: é bem menos da metade do preço, uns 15% do valor. Os caras compram três, quatro rodas pelo valor de uma, por exemplo. Se as frotas acabassem, ia ser um baque pros ladrões de carros e pros desmanches”, especula.
As frotas foram legalizadas pelo artigo 2º da chamada Lei de Taxis (7329/1969), sancionada pelo então prefeito da capital paulista Paulo Maluf (PP), que autorizou pessoas jurídicas a prestar o serviço de táxi. Ano após ano, as CCTs (Convenções Coletivas de Trabalho) da categoria – acordos firmados entre os órgãos sindicais das várias categorias de taxistas e as empresas de frota e cooperativas de táxi –, reconhecem como legítimo o pagamento das diárias pelos motoristas. A “justificativa” é que o motorista pode ficar ininterruptamente com o carro para trabalhar, ou seja, o empregador não teria como aferir quanto o motorista lucrou. Esse argumento foi utilizado, por exemplo, por uma juíza de segunda instância em um processo de 2012 movido pelo taxista Dalvo Apolinário Júnior contra as empresas paulistanas de frota Safira e JPO. Na sentença, a desembargadora federal do trabalho Maria Cristina Fisch, relatora de um recurso do taxista, considerou legítimo o pagamento das diárias e do combustível pelos frotistas porque a cobrança “se deve à peculiaridade da atividade de taxista, em que a maior parte de sua renda advém dos valores pagos pelos consumidores finais de seus serviços, que contratam as ‘corridas’ diretamente com os empregados taxistas, sem controle do empregador”.
Na prática, porém, para pagar as diárias os motoristas são obrigados a se submeter a jornadas de trabalho extenuantes que colocam seus passageiros em risco. “Eu trabalho 12, 14, 16 horas por dia, todos os dias. Depende do movimento do dia, do quanto de dinheiro eu fiz. Tem colegas com diárias maiores que trabalham 18 ou 19 horas todo dia pra dar conta. Tem colega que, depois de uma jornada dessas, encosta e dorme no carro um tempinho. Conheço taxista que dorme até em garagem de frota. Domingo não tem diária, mas a gente tem que trabalhar também pra levar a diária na segunda de manhã.”
Só de diárias, Wilson paga R$ 3.600,00 por mês. O combustível e a alimentação elevam os custos mensais para cerca de R$ 4.300,00. Somando o salário mínimo que recebe da frota e o lucro das maratonas diárias de trabalho, costuma fazer entre R$ 1.300,00 e R$ 1.500,00 por mês e diz que comemora quando chega a R$ 2.000,00. “Ultimamente tá difícil. Tem dia que tá sobrando dez, vinte conto”, lamenta, e diz que nos últimos dois meses não conseguiu arcar com o aluguel da casa onde mora, numa comunidade da periferia paulistana.
“Agora pensa que a frota que eu trabalho tem 120 alvarás e faz as contas pra você ver quanto a máfia leva por mês ou por ano”, reflete. “Por isso, eu sou a favor do Uber. Com menos do que eu pago pra frota, eu financiaria um carro, pagaria o seguro e ficaria com o carro pra mim.”
O argumento de Wilson, porém, é utilizado no sentido contrário por outros frotistas, como o ex-policial militar Alexandre Marques, 32 anos, há oito meses na praça. “Eu tenho que pagar R$ 196,00 de diária. Se chegar atrasado, faltar, é mais R$ 10. Multa, combustível e alimentação é a gente que paga, e o restante é da frota. Todo dia eu tenho que ir atrás desses R$ 196,00, mas tem dia que eu não faço esse dinheiro”, conta. “Pra ser taxista, eu tive que tirar o Condutax [cadastro que habilita qualquer cidadão a trabalhar como taxista], tive que correr atrás de frota, atrás de táxi. Fui lá pegar uma fila quilométrica pra tirar o meu Condutax, fiz o cadastro nas frotas e tive que esperar um monte pra ser chamado. Aí o que acontece: os caras chegaram e começaram a trabalhar ilegalmente, a tirar o ganha-pão de todo mundo e caiu bastante o nosso movimento”, protesta.
“Me senti feito de otário. Quando eu comecei, tava dando pra fazer um dinheiro legal. Hoje eu to fazendo metade do que eu fazia, depois da Uber. Existe lei federal e estadual e os caras simplesmente botam os carros pretos pra rodar e, o pior, agora tem a UberX, que é mais barato ainda, que é carro de tudo quanto é tipo e de tudo quanto é cor e é difícil de fiscalizar. Se eles entrassem pra concorrer de igual, aí eu queria ver emplacar, botar luminoso e placa vermelha. Só os boy que iam pegar corrida com eles pra pagar de gatinho, porque ia encarecer muito”, opina.
Mercado de alvarás
As correntes que prendem os motoristas às frotas são os alvarás – permissões gratuitas concedidas pela Prefeitura para os taxistas operarem. Teoricamente, não poderiam ser vendidas, mas o mercado de alvarás é mais uma daquelas hipocrisias brasileiras cotidianas. Todo mundo sabe que é ilegal, mas o comércio rola solto. Oficialmente, as entidades de classe dos taxistas afirmam desconhecer essa prática, mas ela está aí, só a alguns cliques ou corres de distância. Segundo Wilson, um alvará em São Paulo não sai por menos de R$ 120.000,00 – pago à vista e no ato. O que explica por que ele se submete ao regime escorchante das diárias.
A reportagem da Pública procurou um vendedor de alvarás através da seção de classificados de uma edição da Folha do Motorista, um jornal que circula no Rio e em São Paulo, fundado pelo vereador Salomão Pereira (PSDB). O anúncio oferece a venda de um carro popular e a “transferência” do alvará, o que é permitido, desde que por doação, pela legislação municipal. Mas, como todo mundo sabe, o alvará está à venda. “Alô, eu vi o anúncio aqui na Folha do Motorista. Queria saber quanto tá o alvará, quanto é o preço…” Sem saber que um jornalista está do outro lado da linha, o interlocutor nem reluta em iniciar a transação. “Eu tô querendo um valor pelo carro, o alvará e o ponto. Eu tô pedindo R$ 200 mil tudo. O ponto é muito bom, tem bastante movimento”, afirma o taxista Robson*, soando animado com o possível comprador. O ponto de fato é bom: fica próximo à região do Baixo Augusta, colada ao centro de São Paulo, cheia de trabalhadores dos prédios comerciais durante o dia e de hipsters e descolados que frequentam os bares e as casas noturnas da região durante a noite. É movimento certo.
O maior custo do pacotão oferecido, porém, é o alvará. Mesmo sendo ilegal, muitos taxistas alugam ou compram as licenças sorteadas pela Prefeitura. Quanto mais movimento na área do alvará, maior o preço. Segundo os taxistas ouvidos pela Pública, os preços da venda e aluguel de alvarás subiram muito recentemente porque o último sorteio feito pela Prefeitura ocorreu em 2012.
Com o preço do alvará lá em cima, é compreensível que os taxistas reclamem da concorrência com a Uber, já que os outros custos são bem parecidos. Os taxistas pagam mais taxas, mas contam com isenção fiscal de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) e IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) na compra de veículos. Em São Paulo, eles podem requisitar também isenção de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e têm descontos de 30% na compra de carros em concessionárias. Já os motoristas da Uber pagam mais impostos, mas são isentos das taxas. Um levantamento do G1, aliás, comparou os custos dos motoristas da Uber com os taxistas e concluiu que, nos custos legais, não há grande diferença.
Alguns dias depois do primeiro contato com Robson, liguei novamente e reafirmei meu interesse. “O primeiro passo é você juntar a documentação e a gente ir no DTP [Departamento de Transportes Públicos, órgão ligado à Secretaria Municipal de Transportes e responsável pela fiscalização dos táxis na capital] pra fazer a transferência pro teu nome. Primeiramente sai o alvará e depois sai a transferência do veículo pro teu nome, né? Aí você me deposita uma quantia na minha conta, pode ser no dia mesmo que a gente for dar entrada na transferência no DTP. Aí o restante você me passa no dia que a gente for assinar o livro do DTP. Assinando lá seu nome, já sai no teu nome o alvará”, descreve Robson. “Se você tiver um carro, um imóvel, a gente pode negociar também. Podemos baixar esse preço”, barganha. Pergunto a ele se não tem chance de melar o negócio. “Ah, é muito difícil de dar alguma coisa errada. Lá não tem erro, não”, garante.
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