Deputados federais da bancada ruralista conseguiram criar e controlar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação Nacional do Índio (Funai), que investigará também o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Todos os sete principais cargos do colegiado – presidente, vice-presidentes, relator e sub-relatores – foram ocupados por apoiadores da polêmica Proposta de Emenda à Constituição nº 215 (PEC 215), que inclui o Congresso Nacional na demarcação de terras indígenas e quilombolas. Juntos, esses deputados receberam mais de R$ 9 milhões de empresas e empresários do setor agropecuário nas eleições de 2014.
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Para parlamentares contrários à PEC 215, a nova CPI não passa de um instrumento de pressão para aprová-la e faz parte de um processo de ataques aos direitos indígenas e dos povos tradicionais estabelecidos pela Constituição de 1988. O roteiro é parecido com outro, ocorrido há mais de uma década: a PEC 215 surgiu no ano 2000, imediatamente após uma CPI que investigou a Funai, em 1999. A proposta, muito criticada por movimentos sociais, antropólogos e ativistas, precisou de quinze longos anos para estar pronta para a votação em plenário. Isso só ocorreu no mês passado, quando foi aprovada em uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados – novamente sob intensa pressão.
A Agência Pública fez um levantamento do financiamento eleitoral dos deputados que ocupam os cargos de comando e relatoria na CPI. Além de empresas, incluímos também empresários do setor rural que repassaram recursos como pessoas físicas. De fichas-sujas a investigados por invasão de assentamentos rurais – justamente um dos focos de trabalho da comissão –, tem um pouco de tudo. Empreiteiras, empresas ligadas ao setor do petróleo e bancos foram deixados de fora da pesquisa, embora tenham contribuído com alguns dos parlamentares.
O presidente da CPI, Alceu Moreira (PMDB-RS), recebeu mais de R$ 967 mil de financiadores ligados ao agronegócio, de um total de R$ 1,7 milhão arrecadado. O maior doador, com R$ 250 mil, foi a Agropecuária Araguari. Em meio aos repasses, Moreira conta ainda com R$ 15 mil de Cornélio Adriano Sanders, acusado de explorar trabalho escravo em suas fazendas. O mesmo empresário repassou R$ 30 mil para Luis Carlos Heinze (PP-RS), primeiro vice-presidente da CPI. Heinze recebeu pelo menos RS 1,68 milhão de empresas e empresários rurais, de um total de R$ 2,73 milhões arrecadados.
Outro financiado por Sanders é o segundo vice-presidente da comissão, Mandetta (DEM-MS), com R$ 15 mil. O deputado angariou cerca de R$ 456 mil do setor, menos do que ele próprio investiu na candidatura (R$ 581 mil), que custou, ao todo, R$ 2,1 milhões. O terceiro vice-presidente, Nelson Marquezelli (PTB-SP), teve como maior doadora a Brapira Comércio de Bebidas, com R$ 1,08 milhão. Diretamente do setor agropecuário, recebeu pelo menos outros R$ 262 mil, além dos R$ 908 mil que o deputado, produtor de laranjas, investiu do próprio bolso na candidatura de R$ 2,56 milhões.
Sub-relator da Funai, Valdir Colatto (PMDB-SC) destoa dos companheiros de bancada pelo baixo custo da candidatura – “apenas” R$ 619 mil. A maior doadora, Claídes Masutti, repassou R$ 215 mil dos R$ 463 mil arrecadados pelo deputado junto ao setor agropecuário. Ela foi cassada da prefeitura de Campos de Júlio (MT) por ter oferecido em sua fazenda um churrasco às vésperas das eleições de 2008. Já a sub-relatora do Incra, Tereza Cristina (PSB-MS), foi a que mais recebeu para chegar à Câmara, considerando apenas os integrantes da Mesa e relatoria da CPI: R$ 4,3 milhões. Somente da Iaco Agrícola, empresa sucroalcooleira, a doação foi de R$ 1 milhão. Ao todo, o setor agropecuário investiu cerca de R$ 2,75 milhões na candidatura da deputada.
Invasor banca relator
O relator da CPI e presidente da Comissão Especial que aprovou a PEC 215, Nilson Leitão (PSDB-MT), angariou R$ 1,43 milhão do setor agropecuário dos R$ 2,46 milhões investidos na campanha. Entre os doadores aparece Marino José Franz (PSDB), ex-prefeito de Lucas do Rio Verde (MT) e responsável por R$ 50 mil para a campanha de Leitão. Franz seria supostamente o “braço político e financeiro” de uma quadrilha de invasão e venda de lotes destinados à reforma agrária, desbaratada em 2014 pela Polícia Federal. “Eu não tenho problema com ninguém. Se ele tiver culpa de alguma coisa – que eu sei que eu não tenho –, com certeza ele vai pagar. Mas se fosse assim, alguns deputados do PT nem poderiam estar no Congresso, né?”, ironizou Leitão.
O relator é investigado no STF por suspeita de envolvimento com outra quadrilha, acusada de invadir reiteradamente a terra indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso. Em setembro, 13 pessoas do grupo foram denunciadas pelo Ministério Público Federal do estado pelos crimes de invasão de terras públicas, resistência, associação criminosa, incêndio, roubo, corrupção ativa, incitação ao crime e crime de dano. “É terceiro falando pro quarto sobre um quinto”, diz Leitão, sobre as escutas telefônicas nas quais integrantes do grupo afirmam haver um pedido do deputado por 30 lotes da invasão. “Eu nunca fui lá, nunca pisei lá. Aliás, fui numa comissão externa da Câmara, com outros deputados, ficamos duas horas em cima de um caminhão e voltamos.”
Um dos requerimentos apresentados na CPI pela deputada Érika Kokay (PT-DF) pede ao Ministério da Justiça cópia de diversos inquéritos da Polícia Federal, inclusive o que trata da terra Marãiwatsédé. “Ela tinha que colocar explicitamente o que ela quer, não só os números do inquérito. Pode mandar ela me convocar, ficaria muito mais fácil”, provoca Leitão. “Se ele tem envolvimento com atos ilegais, ele tem que responder, mas solicitamos um conjunto de inquéritos sobre situações de conflito envolvendo a questão indígena. Não tivemos o objetivo de ‘funalizar’ ou de individualizar o processo de investigação. Não estamos aqui para investigar o deputado”, refuta Kokay.
Sem objetivo definido
Ainda que tenha sido questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo teor amplo e vago dos fatos que se dispõe a apurar – em tese, a Presidência da Câmara só pode autorizar a abertura de CPIs com fatos e períodos muito bem especificados –, a nova comissão da Funai foi instalada no início do mês. Pelas primeiras reuniões, já mostra o tom que dominará os trabalhos, assim como a força do rolo compressor ruralista.
A vastidão do requerimento de criação da CPI, que pretende investigar itens como “critérios para demarcação das terras indígenas”, permitiu que o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), presidente da comissão, apresentasse um pedido que solicita à Funai cópia de todos os convênios assinados com pessoas jurídicas brasileiras e estrangeiras desde 1988, assim como todos os contratos celebrados com antropólogos no mesmo período. Perguntado na terça-feira (24), durante reunião da comissão, sobre qual a lógica do pedido e se teria tempo de analisar a provável montanha de material que receberá, uma vez que a CPI tem prazo para encerrar os trabalhos, Moreira garantiu que é capaz de “passar as noites pesquisando a documentação”, “com o maior prazer”.
O requerimento de informações de Moreira foi utilizado como exemplo, por deputados contrários à PEC 215, da falta de clareza quanto aos objetivos da comissão. “Essa CPI não se propõe a investigar coisa alguma, não tem fato determinado. Ela veio para manter viva a discussão da PEC, para pressionar a sua apreciação. Para isso eles querem criminalizar e destruir o Incra e a Funai, colocando em questão todo o processo de demarcação e criando um clima favorável para a apreciação da PEC 215”, critica a deputada Érika Kokay. Ela recorreu da decisão do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), de autorizar a criação da CPI, assim como entrou com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal, também com o objetivo de impedir a comissão de funcionar. “Me parece muito contraditório que o presidente da Casa, que disse que não instalaria a CPI dos planos de saúde porque não tinha fato determinado, instale esta CPI sem fato determinado.”
Para a deputada, o crescimento do fundamentalismo patrimonialista, articulado com o religioso e o punitivo, na atual legislatura, levou a um cenário em que eles se retroalimentam – no que tem sido chamado de bancada BBB: boi, bala e Bíblia. “Esse nível de fascismo, de querer punir todo mundo, armar a população, atacar a comunidade LGBT e os direitos da mulheres, faz parte de um processo de desumanização e cerceamento de liberdades do qual o presidente da Casa também faz parte”, analisa. “Não foi ele quem criou o projeto para criminalizar a heterofobia, e o que impede que as mulheres tenham acesso à pílula do dia seguinte em caso de estupro?”, diz, sobre Eduardo Cunha. “Essa aliança dos fundamentalismos não era tão clara na legislatura passada, mas agora com o apoio da Presidência da Casa, ela está valorizada e potencializada.”
O deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), relator da CPI, acusa a bancada petista de ser “bipolar”, por ter reclamado da composição da mesa do colegiado. “Primeiro não apresentaram nomes pra comissão – não participam e depois falam que não deixaram participar. Não tem como colocar alguém na mesa sem nomes”, rebate Leitão. “O PT não deseja investigar porque existem muitos desvios de objeto e de dinheiro público.” Segundo Kokay, o partido tentou disputar cargos na comissão da PEC 215, mas foi derrotado, devido à maioria ruralista. Ela acredita ainda que uma nova tentativa na CPI da Funai teria o mesmo resultado, se, especula, a criação da CPI sem fato determinado já não tivesse sido acordada com o presidente Eduardo Cunha, inclusive com os nomes da mesa pré-definidos.
Medo do “bolivarianismo”
Dono da prerrogativa de indicar o relator e os sub-relatores, o presidente da CPI foi questionado por petistas sobre a distribuição dos cargos, exclusivamente para ruralistas, durante uma reunião da comissão. Moreira arrancou risos dos deputados ao dizer que teve o cuidado de escolher para uma das sub-relatorias alguém da base do governo – o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC). Após o argumento, o próprio Moreira não resistiu e soltou uma risadinha. À Agência Pública, o presidente justificou a CPI com uma complicada tese, cuja conclusão é que as terras serão usadas, oportunamente, “como moeda de troca para criar o Estado bolivariano, como é a Venezuela”. O medo da chegada do “bolivarianismo”, termo constante nas falas da oposição ao Planalto, explicita que, de base, Moreira só tem o partido, assim como muitos outros parlamentares ruralistas. “Imaginamos que o Incra e a Funai são instrumentos utilizados para se valer dessas minorias oprimidas para poder valer um projeto ideológico para o futuro”, afirma.
Apesar das ligações dos parlamentares com o agronegócio, o presidente da CPI disse que conduzirá os trabalhos com isenção. “É só ser magistrado, ou seja, não permitir nenhuma vez – mesmo que tu estejas com muita vontade de fazer – que se produza qualquer tipo de dado na unilateralidade. Sempre as duas partes falarão. Eu quero a verdade, não quero terra. Se tiver as duas partes pra esclarecer o processo, ótimo.” Em discurso comum a muitos colegas de bancada ruralista, Moreira criticou o abandono ao qual são submetidos os índios, que viveriam na miséria. “Não tem política indígena, tem política demarcatória. Na Raposa Serra do Sol [terra indígena em Roraima], os índios estão disputando um pedaço de pão velho com os urubus, no lixo.”
Contrário à PEC 215, o deputado Edmílson Rodrigues (Psol-PA) desconfia das anunciadas boas intenções. “Não vamos poupar o governo, que corta recursos do Incra, da reforma agrária e da Funai. Tem que se colocar o dedo nessa ferida, mas o nosso objetivo não é golpista, é fazer com que o governo cumpra o seu papel e fortaleça as instituições. Na hora em que os ‘agronegocistas’ tiverem razão em cobrar da Funai mais investimentos, aí nós estaremos juntos. Só que esta razão eles não terão, porque, no fundo, mesmo quando dizem que querem defender os direitos indígenas, na cabeça deles o fortalecimento do índio é a destruição do índio. Eles querem lote com títulos para que se venda a terra pra eles, para que reconcentrem a terra; querem parcerias produtivas, para que os índios trabalhem para eles, uma volta à Idade Média”, critica. “O objetivo, tanto da PEC 215 quanto dessa CPI é de inviabilizar as demarcações e a combalida política de reforma agrária”, complementa.
Para o parlamentar o Psol, o governo federal está ajoelhado ante os interesses do latifúndio, praticamente paralisando os procedimentos que envolvem a questão fundiária – Dilma Rousseff é a presidente que menos demarcou terras indígenas desde 1985 e a que menos assentou famílias para a reforma agrária. “O governo cedeu, virou refém, mas os ‘agronegocistas’ não se contentam com essa postura humilhante”, acusa Rodrigues.
Questionada sobre a possibilidade de a CPI pautar a votação da PEC 215, a deputada Tereza Cristina (PSB-MS), sub-relatora do Incra na CPI, procura não se comprometer. “Não vou dizer que não, mas não é esse o objetivo”, diz. “Existem há muito tempo, na Funai, dúvidas quanto ao processo demarcatórios, os laudos antropológicos, como são feitos e com que viés. Ninguém quer nada em desfavor dos índios. Quem leu a PEC 215 com cuidado vê que ela não tem lado, ela traz pros indígenas uma condição de eles terem recursos para uma vida melhor, com dignidade. Houve tempo suficiente para o governo dar outra solução, mas ele não o fez.”
Após a reunião da CPI na terça-feira (24), na qual fez um longo discurso em defesa da melhoria das condições de vida dos povos indígenas, o relator acusou os opositores à PEC de, eles sim, estarem contra os índios. “Todo mundo quer a mesma coisa? Não, a diferença é gritante. Eu quero o índio bem, quero investigar como está sendo usado o dinheiro, que não chega às aldeias, e o PT não quer nada disso, muito menos os indigenistas. Quem tem medo de ser investigado? Esse discurso de deputados petistas e dos puxadinhos do PT de que a CPI é contra os índios está errado, a CPI é contra os que roubam dinheiro dos índios. Também não é verdade que a PEC 215 é para paralisar as demarcações, ela vem justamente para demarcar, coisa que não se faz hoje devido ao caos que está instalado.”
Refluxo
Depois de ter acompanhado algumas reuniões da comissão especial da PEC 215 na Câmara – cujo presidente foi justamente Leitão –, Alberto Terena, integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, não acha possível acreditar na bancada ruralista. Segundo ele, seus integrantes só olham para os próprios interesses. “Ali são os ruralistas, legislando pra si próprios, pra expandir a soja e o gado. Não somos contra o setor agropecuário, mas desde que não tire direitos constitucionais nossos sobre o território”, explica. O índio da aldeia Buriti, em Mato Grosso do Sul – onde Oziel Terena foi assassinado a tiros durante uma operação de reintegração de posse, em 2013 –, vê um cenário político delicado para os povos indígenas. “Eles querem mesmo é tirar direitos, como já reduziram a proteção ao meio ambiente com o Código Florestal. Agora, querem acabar com as demarcações. É uma falta de respeito até mesmo com a nação, pois eles deveriam legislar não só para o agronegócio, mas também para os povos indígenas”, diz.
Para Alberto Terena, desde que foi coroada com a promulgação da Constituição da República, em 1988, a luta dos povos indígenas passou a ser menos a favor de avanços, e mais contra retrocessos. “Antes, não tínhamos sequer a segurança dos nossos direitos, que começaram a ser atacados quando passamos a reivindicar o que está previsto na Constituição. Não estamos inventando, temos direito e vamos lutar, sobretudo pela terra, nosso maior patrimônio, a nossa mãe”, explica.
O professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) Carlos Frederico Marés afirma que os índios vivem um período de “refluxo” das mobilizações de décadas atrás. “Todo esse conjunto de direitos indígenas conquistados em toda a América Latina e no Brasil começou a sofrer um processo de refluxo a partir da década de 1990, como se as elites tivessem se dado conta de que os índios conquistaram direitos e que, agora, é preciso relativizá-los, diminuir a força da Constituição e reinterpretá-la. Agora, eles não reivindicam mais, evitam a involução. Hoje o mote do movimento é contra a PEC 215, o que, convenhamos, não é nenhum avanço, é uma tentativa de impedir retrocessos.”
Marés assumiu a presidência da Funai em 1999, pouco depois do fim da CPI que investigou a instituição naquele ano, e ficou até 2000. Embora faça a ressalva de que pode estar sendo traído pela memória, diz não se lembrar de qualquer impacto, positivo ou negativo, da Comissão Parlamentar de Inquérito. “Faz muito tempo, mas a CPI não resultou em nenhuma interferência, apoio, ajuda ou contribuição para a minha gestão à frente da Funai.” Marés acredita que a CPI de 2015 pode, como acusam alguns deputados, criminalizar instituições, ONGs, os próprios índios e, com isso, abrir espaço inclusive para a “desmarcação” de terras.
Servidores da Funai ouvidos pela reportagem concordam que pode haver espaço para críticas sobre processos demarcatórios, em alguns casos – excepcionais – até justificadas. Nos corredores da instituição, em Brasília, a “CPI dos laudos” não é motivo de grande alarde, embora tenha despertado a atenção de muitos funcionários, que acompanham os desdobramentos dos trabalhos.
Primeiros passos
Pelos requerimentos já apresentados à CPI, as primeiras oitivas deverão voltadas exclusivamente à questão indígena, deixando os remanescentes de quilombos e os assentamentos rurais para uma segunda etapa. A primeira pessoa cujo nome foi aprovado para depor foi a antropóloga Flávia Cristina de Melo. No requerimento de autoria do deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), ela é acusada de manipulação criminosa do processo administrativo de demarcação de terras da área indígena do Mato Preto, no Rio Grande do Sul, por ter, durante o período em que esteve com o povo guarani, participado de cerimônias religiosas e ingerido chá de ayahuasca.
Os parlamentares pró-CPI, inclusive, defendem que o episódio seria um dos fatos determinados que justificariam a criação da comissão. “No requerimento do deputado Alceu Moreira que pede a CPI, e que uma série de deputados subscreveu, existe, entre outros, um fato concreto muito claro: o que tem acontecido na terra indígena Mato Preto. Foi uma situação muito abordada na comissão especial da PEC 215”, analisa Osmar Serraglio (PMDB-PR), autor do texto final da Proposta de Emenda à Constituição aprovado na comissão especial, da qual foi relator. “Ele (Moreira) levanta este fato concreto, embora, percebe-se pela proposição, que ele quer ver quais são as regras e critérios que orientam a Funai.”
Já o primeiro a ser solicitado a comparecer pelo relator foi o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber Buzatto, sob a vaga justificativa de que o “seu depoimento é fundamental para o esclarecimentos dos fatos objeto de investigação desta CPI”. “Pelo comportamento do Cimi, a gente quer saber por que os índios estão morrendo pela falta de atendimento básico na saúde. O Cimi defende o índio, mas se é uma entidade séria devia atender o pequeno produtor que é desintrusado [retirado das terras demarcadas]. Porque o Cimi não se preocupa? Quero entender como ele funciona”, explicou Leitão à reportagem.
Buzzatto afirma que não há qualquer razão que justifique ou legitime a sua convocação. “Entendo que se trata de uma tentativa de intimidação dos parlamentares ruralistas que dominam esta CPI e querem usá-la para atender aos seus próprios interesses políticos e aos interesses econômicos das empresas que financiaram as suas campanhas eleitorais”, rebate. “O Cimi atua na perspectiva de que os povos originários tenham condições de vida plena. Para tanto, entendemos que os seus usos, costumes crenças e tradições precisam ser respeitados e que suas terras devem ser devidamente reconhecidas e demarcadas pelo Estado Brasileiro, uma vez que esta é condição fundamental para sua sobrevivência física e cultural.”
Buzatto não acredita que haja denúncias específicas contra a instituição, mas uma manobra pra deslegitimar a luta pelas causas indígenas. “O que está em curso no país é um ataque deliberado, generalizado e violento contra os povos e seus direitos, desferidos pelos ruralistas diretamente contra as comunidades e lideranças indígenas, contra os seus direitos, contra os aliados dos povos na sociedade brasileira – como evidencia a CPI do Cimi na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul –, contra os órgãos do Estado que têm responsabilidades constitucionais quanto à demarcação de terras indígenas, bem como quanto à titulação de terras quilombolas e à realização da reforma agrária no país”, analisa o secretário-executivo do Cimi. Para ele, “o modelo de governança baseado num ‘pacto de classes’, representado com a eleição de Lula, mostrou-se fraudulento e não se sustenta mais nem no discurso”, pois “o capital não aceita fronteiras para sua expansão e acúmulo”.
Instituições
Em nota, a Funai acusa parlamentares de tentarem “sobrepor argumentos políticos, ideológicos e baseados em interesses pessoais ao que determinam os ordenamentos legais que regulam a demarcação de territórios indígenas e quilombolas no país”. “Ainda, buscam desqualificar o trabalho técnico de antropólogos, historiadores, biólogos e outros profissionais, que cumprem com critérios científicos em seus relatórios”, diz o texto. “A Funai entende que a instalação de tal CPI é parte de uma ofensiva desigual, violenta e inconstitucional contra os povos indígenas e quilombolas, representada também pela recente aprovação da PEC 215 na comissão especial da Câmara Federal. Com o apoio dos povos indígenas, a Funai enfrentará todas as investidas que se apresentem contrárias aos direitos dos povos originários com a convicção de que sairemos desse processo mais fortalecidos e confiantes nos rumos do nosso país.”
O Incra, por sua vez, informou à Agência Pública que acompanha com “especial atenção” os trabalhos da CPI. “Reafirmamos nosso respeito ao trabalho da comissão e a autonomia do Poder Legislativo. Ao mesmo tempo, defendemos, por meio de nosso trabalho e ações, a demarcação dos territórios quilombolas em todo o Brasil como forma de resgatar a cidadania e reconhecer o direito dessas comunidades de acesso à terra. Aguardamos o desdobramento dos trabalhos da CPI, dispostos a defender o direito das comunidades quilombolas e abertos a apresentar as informações e esclarecimentos que forem da alçada do Incra”, diz nota enviada à reportagem.
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