Celso Lungaretti *
Não conheço pessoalmente o Gilberto Carvalho, que, a exemplo de Lula, tem origem proletária: foi quando trabalhava como soldador em fábricas do Paraná e do ABC paulista que ingressou na Pastoral Operária, da qual se tornaria secretário-geral. Continua até agora à frente de uma Secretaria-Geral, no caso a da Presidência da República. E é alvejado dia e noite pela direita, como seu principal inimigo no governo depois da queda de Zé Dirceu.
Companheiros de Brasília me garantem ter ouvido dele, quando maior era a pressão orquestrada desde a Europa e tão bem secundada por figuras do Judiciário e da grande imprensa brasileira, que considerava “uma questão de honra” salvar o escritor Cesare Battisti da perseguição inquisitorial e vendetta italiana.
Até onde sei, foi GC o petista mais influente a empenhar todo seu prestígio para fazer com que a solidariedade revolucionária prevalecesse sobre a realpolitik na decisão do governo Lula.
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Havia, sim, quem pouco se importasse com o fato de existirem evidências mil de que Battisti, inocente das acusações mais graves que lhe faziam, estava servindo apenas como bode expiatório e como troféu político para os neofascistas de Silvio Berlusconi. Esses preferiam entregar um companheiro de ideais às feras do que arriscar-se a uma retaliação de governo do 1º mundo – que acabou não vindo, como eu sempre disse que não viria. É um motivo a mais para respeitarmos e admirarmos os que, mesmo no poder, continuaram mantendo sua integridade política e pessoal: eles foram raros!
A entrevista de GC na Folha de S.Paulo desta segunda-feira (23) novamente vem ao encontro das minhas posições, mesmo que ele provavelmente as desconheça. É que pessoas formadas nos mesmos valores tendem a analisar de maneira semelhante os acontecimentos.
Durante todo o julgamento do mensalão, fui reticente quanto à alegação de inocência dos réus petistas, pois os anos em que exerci meu ofício na imprensa do Palácio dos Bandeirantes me permitiram conhecer bem as entranhas putrefatas do poder. Tão bem que seria cínico se fingisse acreditar na ingenuidade de companheiros que são tudo, menos ingênuos. Via-os e os vejo não como anjinhos injustiçados por Satã Barbosa, mas sim como militantes que cometeram o erro de incidirem nas práticas usuais da politicalha porque as viam como necessárias para o PT poder governar. Acabaram sujando as mãos, não movidos pela ganância, mas sim sofrendo pessoalmente as consequências da opção do partido de não tentar mais mudar radicalmente a sociedade, preferindo concretizar alguns dos seus objetivos (abdicando de outros) sem uma franca ruptura com o status quo capitalista.
Então, eu pregava a denúncia do dois pesos, duas medidas ao invés da arguição de inocência. Cabia, sim, uma autocrítica pública do partido e dos seus dirigentes por terem se deixado conspurcar (e por terem conspurcado a pureza dos seus ideais) no contato com as práticas corriqueiras da política fisiológica e corrupta. Porque a obstinação em tapar o sol com a peneira apenas convenceria os melhores cidadãos de que os revolucionários de 1968 e seus herdeiros em nada diferiam da podridão característica dos rebentos da política oficial, sendo todos farinha do mesmo saco.
Eu, pelo contrário, sempre coloquei a defesa da integridade dos ideais revolucionários acima da defesa de pessoas. E, como homem de comunicação que sou, sabia muito bem que o povo não acreditaria nas balelas que lhe tentavam impingir. Há um ano estamos vendo, nas ruas e nos estádios, que o povo realmente não acreditou.
Foi uma agradável surpresa para mim encontrar num grão petista tal exercício da reflexão crítica, ao invés de tergiversações e triunfalismo. É algo tão raro que vale a pena reproduzir [abaixo] os principais trechos da entrevista de GC. Torço para que haja mais petistas como ele, conscientes do imperativo de se resgatar os valores originais do partido – aqueles que eu compartilhava fervorosamente três décadas atrás.
FSP: A afirmação de que o xingamento contra Dilma não partiu só da “elite branca” foi uma espécie de sincericídio?
Não. Foi muito consciente. Tenho feito esforço enorme para ter muita sintonia com as ruas e para não romper com aquilo que considero justo e honesto, mesmo que me custe. (…) Não nego atos de corrupção que tivemos. Infelizmente, eles aconteceram, têm de ser reprovados. Esses atos nos doem primeiro a nós mesmos. O problema é o tratamento que se dá a erros dos outros, como o mensalão tucano. (…) Precisamos ter clareza disso e combater, porque, do contrário, começa a ganhar corpo uma opinião cada vez mais ampla de que nós estamos prejudicando o país, de que inventamos a corrupção.
FSP: O senhor disse que a imagem de partido corrupto “pegou” em setores mais populares.
Tenho certeza de que o PT tem na sua imensa maioria uma gente muito séria, honesta. Agora, precisamos de fato ter um rigor interno ético muito grande. Lutar desesperadamente pela reforma política para mudar o indutor da corrupção, que é o financiamento empresarial de campanha. Sinto isso na carne. Porque vejo companheiros que acabam se enrolando muitas vezes nesses processos de corrupção, em grande parte induzidos por uma prática tradicional no país e que antes, insisto, não aparecia, porque não se investigava.
FSP: O senhor é responsável pela interlocução com os movimentos sociais, mas hoje o PT paga militância em campanhas.
Acho que, na justa medida em que nós nos tornamos uma grande instituição, fomos nos burocratizando. O PT trouxe inovações fundamentais para a ampliação da participação das pessoas na política e dar protagonismo a setores populares marginalizados. Mas o vírus da velha política também nos contaminou, em parte…precisamos reconquistar o sentido coletivo de fazer política. Reanimar a militância. Na medida em que a gente foi se verticalizando, fomos nos tornando mais pragmáticos, perdendo a nossa mística.
Os grifos são todos meus, obviamente.
* Jornalista e escritor, mantém o blog Náufrago da Utopia.
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