A deusa grega Themis, também chamada de Justitia pelos romanos, era filha de Urano e Gaia, sendo considerada a personificação da Ordem e do Direito Divino, ratificados pelo Costume e pela Lei. No Olimpo, ocupava o destacado cargo de conselheira de todos os deuses, sentava-se ao lado do poderoso Zeus, selava o destino da sociedade, determinava as regras morais, sociais e religiosas e, enfim, julgava a todos com o dom da infalibilidade. Tornou-se, com este currículo, a deusa da Justiça, ainda mais quando impressionava o seu austero exemplo divino, bem representado no fato de que se apresentava com os olhos vendados, segurando uma balança e uma tábua de leis.
E para quem não está familiarizado com o jeito de ser da badalada deusa, esclarece-se que ela não vendava os seus próprios olhos por capricho, marketing religioso ou assumido prazer masoquista. Ao contrário, assim agia por deliberado querer funcional, pois, não enxergando a classe social, o poder econômico, a aparência física ou o aspecto intelectual dos suplicantes, poderia melhor julgar e aplicar a Justiça requerida.
As tábuas de leis que acompanham a sua indumentária, significam que todos devem seguir, universalmente, as mesmas regras e os mesmos princípios preestabelecidos, independentemente da condição humana ou divina do julgado. A balança que porta simboliza o equilíbrio que deveria pautar o mundo, observando-se que os deuses, as pessoas e os seus atos têm seus pesos quantificados, igualitariamente, tanto em relação aos seus respectivos erros e acertos, quanto aos prêmios e os castigos. É escrever em outras palavras: não olhando “o quem” postulava, seria mais justa e sensível para escutar e julgar “o que” se buscava.
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Assim, não poderia surpreender a constatação de que a deusa Themis tivesse se tornado uma verdadeira popstar entre gregos, troianos, romanos e todos aqueles que acreditavam na divindade dos que habitavam o Olimpo. Ela era invocada por todos aqueles que se sentiam injustiçados, oprimidos ou indefesos diante dos poderosos deuses, das pessoas que se diziam deuses e dos que endeusavam a arbitrariedade.
Os seus devotos sabiam que poderiam contar com a sua voz defensiva nas reuniões dos deuses, especialmente quando violados os ordenamentos impositivos inscritos em suas famosas tábuas, desequilibrando a balança da vida. E, segundo consta dos livros sagrados divulgados pelas sacerdotisas de seus templos, ela sempre atendia as súplicas mais justas. Sobrevivendo aos caprichos implacáveis do tempo, assistindo de camarote a derrocada da própria mitologia grega que a revelou para o mundo, o deslumbrante charme de Themis continuou conquistando a atenção de todos os povos do planeta, inclusive os ateus e os que professam o monoteísmo, fundamentalista ou não.
Basta constatar que Themis foi presença cativa em vários episódios que deixaram marcas profundas na História, até porque não se pode falar em igualdade, liberdade e fraternidade sem clamar por Justitia. E não se pode esquecer que a sua imagem, desde o início do seu culto, está edificada em vários prédios públicos, escritórios privados de advocacia e museus, além de impressa em incomensuráveis cartazes, convites, papéis timbrados, diplomas, cartões profissionais e milhares de peças publicitárias que pregam a prática da equidade, da ética, do direito e da justiça entre todos e para todos.
E toda esta imortal popularidade ocorre em razão de Themis ter se adaptado ao mundo contemporâneo na sua caminhada pelo tempo. É que, não mais contando com os deuses do Olimpo para exigir o cumprimento de suas deliberações, adotou novas práticas, abriu incontáveis templos e empossou sacerdotes em vários cantos do planeta. Além da tábua de leis e da sua impenetrável venda, a eterna deusa passou a portar em seu traje uma reluzente espada, símbolo maior da força do Estado e do seu poder de polícia para exigir o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Também passou a compartilhar com os mortais seres humanos a tarefa de inscrever na tábua das leis o ordenamento jurídico que vigoraria em cada país.
Da mesma forma, descentralizou para o mesmo grupo de mortais a tarefa de julgar, permitindo que os próprios seres humanos cuidassem das acusações, das defesas e das decisões judicias. A virtude da democratização legislativa e judicial que permitiu a imortalidade de Themis, paradoxalmente, provocou um grave risco para a sobrevivência da própria humanidade. É que os seres humanos não foram aquinhoados com os dons da onisciência, da onipotência e da onipresença.
Não podendo saber de tudo que ocorre, não tendo o poder de tudo fazer e sem condições de estar em todos os lugares os seres humanos podem errar em sua avaliação, desconhecer as circunstâncias em que os fatos ocorreram, ignorar as razões dos atos praticados, não sentir o sentimento em debate ou mesmo não compreender por nunca ter vivido a situação. Ademais, os seres humanos não estão isentos dos defeitos que podem viciar os atos decisórios e judicias, assim como não estão imunes à corrupção, às paixões políticas, às vaidades, às invejas e aos preconceitos sociais. Daí a razão da necessidade de se observar, como antídoto à possibilidade da falha humana, o equilíbrio democrático na representatividade parlamentar e o rígido cumprimento da norma processual que impeça o olhar parcial do julgador.
O Brasil vive um desses momentos em que a ação estratégica de Themis é questionada como legítima e eficaz. Afinal, as palavras insculpidas na tábua das leis brasileiras refletem o deliberado conteúdo de proteção ao poder econômico, aos defensores da propriedade enquanto valor absoluto e aos nascidos em terras e berços esplêndidos. E este furor atentatório ficou ainda mais encorpado nos dias comandados pelo personagem não-mitológico Temer-Eunício-Maia.O fervor fanático de sua legislação destruidora dos direitos sociais não encontra qualquer paradigma na História do Brasil. E não se parou na transformação da classe trabalhadora em serva eterna não aposentável do senhor Capital, pretende-se transformar o brasileiro em estrangeiro em sua própria terra natal. Entrega-se a exploração de óleo e gás na camada pré-sal para o capital estrangeiro, vende-se os aeroportos, os lotes de terra, as companhias aéreas e tudo que possa reluzir como ouro. E tudo isso sob suspeito manto batizado por Chico Buarque e Francis Hime como “tenebrosas transações”.
Confiscado o caráter de equilíbrio na tábua das leis, restaria a imparcialidade dos seres humanos que receberam a delegação de acusar, defender e julgar os seus semelhantes. Neste campo de atuação Themis teria uma experiência impecável, não permitindo que os julgamentos fossem fundamentados segundo critérios de classe social e poder econômico. Mas eis que, repentinamente, das tintas das sentenças judiciais se proíbe o direito de manifestação, a presunção de inocência, o princípio do contraditório, a ampla publicidade dos atos processuais e a igualdade de armas entre a acusação e a defesa. Tudo praticado sob a lógica de que “quem recebe a delegação divina também divino é”, especialmente no que se refere ao dom da infalibilidade, jamais poderia cometer erros graves ou falhas processuais gritantes.
O julgamento do ex-presidente Lula reflete a equivocada lógica da sacralidade na delegação implementada por Themis. Inicialmente, quando fora violada a Tábua Constitucional na parte em que refere ao princípio da segurança enquanto direito fundamental, expressamente previsto no caput do art. 5º e no caput do art. 6º.
A Tábua brasileira Republicana inverteu a lógica repressiva da investigação, substituindo o conceito de segurança nacional destinada a proteger o regime militar para o de segurança como direito fundamental protetor do cidadão contra o poder de polícia exercido de forma abusiva pelo Estado. Exatamente por isso criou competências específicas para os diversos atores da investigação, indicando um sistema que conjuga autonomia e controle em cada fase apurativa, do inquérito policial até o acatamento da denúncia. O objetivo era impedir que o Estado (polícia, Ministério Público e magistrado), controlasse de forma uniforme todas as fases da apuração criminal, não permitindo a fiscalização dos atos praticados.
A chamada Força Tarefa da Lava-Jato misturou todos em um só pacote, não mais se sabendo quem era policial, procurador da República ou magistrado. Os três, agindo como uma única e orquestrada voz, impediram que os freios e os contrapesos constitucionais fossem disparados, comprometendo a necessária imparcialidade do que seria depois julgado. Neste campo, como se sabe, tudo era decidido coletivamente, desde o vazamento estratégico de gravações ilegais, passando por coletivas de imprensa sensacionalistas, executando-se conduções coercitivas abusivas, forçando-se prisões para obtenção de liberatórias delações premiadas ou mesmo pelo induzimento como reais de fatos que sequer constavam dos autos.
O que realmente importava era a estratégia ter o apoio da opinião publicada para convencer a opinião pública, pouco importando a verdade real ou processual. Era como se estivessem recitando como “grito de guerra” o famoso chavão retirado do célebre livro “Os Três Mosqueteiros”, escrito pelo francês Alexandre Dumas: – Um por todos e todos por um!
Não custa lembrar que a acusação, centralizada na “onisciente convicção que dispensa prova”, fez do processo um debate que rendeu holofotes, autógrafos, palestras milionárias, livros autobiográficos ou de biografia autorizada. E neste pacote popular, o próprio julgador fazia do processo uma emocionante novela especial, comunicando no Facebook familiar as cenas dos próximos capítulos, algumas delas anunciadas em concorridas palestras, em viagens internacionais, em audiências parlamentares ou em badaladas entrevistas nas redes televisivas.
Tudo sem mencionar a autorização para que fossem produzidos filmes comerciais sobre o próprio processo, quando passariam a ser “vultos históricos” da passarela brasileira. E, sob as luzes dos holofotes, apresentaram uma inovação na milenar indumentária de Themis, agora ela se exibia sorridente, vaidosa e, sobretudo, sem a venda que a impedia de olhar “o quem”.
E como não esperar outro resultado além da condenação? Como acreditar que a acusação, repentinamente, perderia o apoio do julgador? Como se poderia pensar em julgamento imparcial quando acusador e julgador abandonam os autos para abraçarem, juntos, a escadaria da fama? Como esperar que dissessem que todo processo foi um grave erro, que eram falsos os fundamentos dos livros publicados, que deveriam ser rasgados os autógrafos concedidos e que não mais seriam convidados para palestras, entrevistas e viagens internacionais? Como extrair do acusador e do julgador a sua natureza humana, suas vaidades, paixões políticas ou compreensões ideológicas? As respostas foram dadas em forma de uma sentença inconsistente, não fundamentada nos autos e destinada a desaparecer do currículo de Themis.
Se poderia então concluir, que a deusa Themis resolveu abandonar o Brasil nesta quadra do tempo? Algum estudioso do tema talvez chegue à conclusão de que os templos brasileiros trabalham muito, mas os problemas são maiores do que a capacidade organizacional do Estado para resolvê-los. Poderia afirmar, ainda, que a deusa Themis nunca habitou ou construiu templos em terras tupiniquins, também eles vítimas de extermínio. É possível, também, que ele aponte os ferozes inimigos da Justitia como responsáveis diretos pela diária tentativa de se decretar a sua morte definitiva e sem direito à ressurreição. Ele dirá, quem sabe, que vândalos atacaram o seu culto, corromperam os sacerdotes, desmoralizam os templos, ameaçaram os devotos e espalharam que ela desistiu da própria santidade. Pode até dizer que ela fora “curada” da venda que a impedia de enxergar “o quem”, tornando-se uma simples mortal que, sem qualquer remorso, julga inaudível “o que” se postula.
Independentemente da resposta, é necessário dizer que a cidadania brasileira somente se tornará uma das grandes adoradoras da deusa Themis quando a Justitia for efetivamente destinada a todos. Neste dia, certamente para ela rezariam os trabalhadores, os desempregados e os aposentados, suplicando que se torne vitoriosa a compreensão de que nasceram para viver com dignidade, e não apenas considerados custos de produção, estatísticas sociais ou dispêndios orçamentários.
Orariam também os camponeses, os excluídos, os abandonados e os que não têm moradia e terra, todos esperançosos de que suas preces seriam ouvidas e, assim, poderiam ser considerados detentores de direitos. Rezariam os pobres, os “pretos” e as prostitutas – os desgastados 3P – para que não mais se tornassem os “compulsórios frequentadores” das delegacias e dos presídios brasileiros. Também por ela clamariam as mulheres, pedindo que não mais sejam vítimas do machismo que mata, violenta e suga qualquer possibilidade de serem tratadas com dignidade, igualdade e respeito. Rezaríamos todos nós, brasileiros e brasileiras que não se cansam de lutar.
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