No âmbito do Inquérito 4.483, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, ofereceu denúncia, por corrupção passiva, em face de Michel Miguel Lulia, atual presidente da República, e Rodrigo Santos da Rocha Loures, ex- assessor, ex-secretário e ex-amigo (?) do primeiro. Não se tem notícia, na história republicana, de um presidente da República denunciado pelo chefe do Ministério Público, por corrupção, em pleno exercício do cargo.
Os advogados de defesa do senhor Michel Miguel divulgaram nota onde afirmam: “1. São 60 páginas de ilações, repetições, suposições, hipóteses, deduções subjetivas. Uma peça longa, porém carente de conteúdo acusatório. Trata-se, na verdade, de uma obra de ficção e não uma peça acusatória, objetiva e descritiva que dê ampla possibilidade de defesa. 2. A peça acusatória chega às raias da leviandade quando afirma, como fato constitutivo do crime, o recebimento pelo presidente da República de determinada importância sem dizer quando, onde, como, que horas. É uma afirmação lançada ao léu sem base em fatos, provas, objetividade. 3. Estranha-se estar presente na peça acusatória o fato de o presidente Michel Temer receber o interlocutor em horário noturno e fora da agenda. Isso não é crime. É sabido que o presidente recebe, corriqueiramente, várias autoridades do cenário jurídico e político do país em horário além do expediente e sem estarem previstos na pauta do dia”.
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A cuidadosa leitura da peça de acusação, apresentada pelo Ministério Público, suscita algumas importantes questões. Duas merecem especial atenção. São elas: a) o nível de comprometimento do chefe do Poder Executivo Federal com práticas políticas escusas e inseridas, até mesmo, no campo da efetivação de ilícitos penais e b) a formação da convicção jurídica sobre a prática de crimes de corrupção envolvendo as mais altas autoridades integrantes do Poder Público.
Não parece que exista alguém tão ingênuo e desavisado no Brasil que não tenha conhecimento das peripécias do senhor Temer e seu grupo nas últimas décadas na política brasileira. Nomes como Eliseu Padilha, Moreira Franco, Geddel Vieira, Henrique Eduardo Alves, Eduardo Cunha e Rocha Loures, entre outros menos cotados, atuavam (e atuam) em conjunto na arena política. Esse grupo, invariavelmente, esteve vinculado a negociatas de cargos e verbas, definições legislativas enviesadas, contribuições de campanha suspeitas (via caixas 1, 2 e 3), operações “estranhas” junto à máquina pública, etc, etc, etc. Sintomaticamente, quase todas as figuras referidas estão presas ou foram presas recentemente.
As declarações do meliante (confesso) Joesley Batista, acerca das ações escusas de Temer e sua turma, não destoam de outras revelações anteriores, como aqueles realizadas pelos executivos da Odebrecht. Nessa linha, Claudio Melo Filho afirmou em delação premiada: “O núcleo político organizado do PMDB na Câmara dos Deputados é historicamente liderado por Michel Temer, atual Presidente da República. À semelhança do que ocorre no Senado Federal, esse grupo é capitaneado por três nomes: Michel Temer, Eliseu Padilha (atual Ministro-chefe da Casa Civil) e Moreira Franco (Ministro de Estado do atual Governo). Dedico a cada um deles anexo próprio, em que relato detalhadamente os relacionamentos que mantive com todos. Pelo que pude perceber ao longo dos anos, a pessoa mais destacada desse grupo para falar com agentes privados e centralizar as arrecadações financeiras é Eliseu Padilha. Ele atua como verdadeiro preposto de Michel Temer e deixa claro que muitas vezes fala em seu nome. Eliseu Padilha concentra as arrecadações financeiras desse núcleo político do PMDB para posteriores repasses internos. Michel Temer atua de forma muito mais indireta, não sendo seu papel, em regra, pedir contribuições financeiras para o partido, embora isso tenha ocorrido de maneira relevante no ano de 2014, conforme detalharei adiante. Esse papel de ‘arrecadador’ cabe primordialmente a Eliseu Padilha e, em menor escala, a Moreira Franco. Tanto Moreira Franco como Eliseu Padilha, contudo, valem-se enormemente da relação de representação/preposição que possuem de Michel Temer, o que confere peso aos pedidos formulados por eles, pois se sabe que o pleito solicitado em contrapartida será atendido também por Michel Temer. Geddel Vieira Lima também possui influência dentro do grupo, interagindo com agentes privados para atender seus pleitos em troca de pagamentos. De forma mais recente, Eduardo Cunha ganhou bastante espaço dentro desse núcleo do PMDB, muito em razão do poder que tinha de influenciar seus pares (entre eles alguns deputados que assumiram papel relevante, como Henrique Eduardo Alves), o que era uma poderosa moeda de troca na hora de negociar a sua atuação como parlamentar. Essa, portanto, é a minha visão macro sobre o funcionamento orgânico do PMDB, que possui duas grandes células de atuação com relativa independência entre si”.
Portanto, a narrativa ofertada pelo Procurador-Geral da República na denúncia em relação aos senhores Lulia e Loures é algo perfeitamente ajustado ao comportamento observado durante décadas por essas tristes figuras do cenário político nacional.
Resta saber se é consistente a conclusão jurídica pela prática de corrupção passiva, em conjunto, por Lulia e Loures. Afinal, como antes destacado, a defesa técnica do presidente da República insiste na presença de ilações, suposições, hipóteses e deduções subjetivas. Fatos, provas e objetividade não integrariam a acusação, sustenta a defesa.
O caminho exigido pela defesa técnico-jurídica do senhor Michel Miguel reclama a presença de elementos demonstrativos, com altíssima, quase inequívoca, convicção, da prática de ilícito de corrupção passiva pelo agente acusado. Exige algo como: a) um recibo com ateste da percepção dos valores; b) uma imagem com o agente recebendo as quantias; c) uma testemunha da entrega do numerário ou d) a apreensão das cédulas, pela autoridade policial, em recintos domiciliares ou funcionais vinculados ao agente. Esse percurso indica uma opção jurídica: a) pelo excesso de formalismo; b) pela dificuldade de punir transgressões com ampla repercussão social e c) pela desconsideração da realidade de atuação dos agentes políticos graduados na seara da criminalidade.
O rumo alternativo adota premissas diversas, entre elas: a) comprometimento com a identificação efetiva dos fatos ocorridos (verdade material em detrimento da verdade formal); b) desnecessidade de convicções a partir de certezas (ou quase certezas); c) admissão que a existência de forte probabilidade, baseada em indícios e elementos objetivos mediatos, é aceitável na repressão à criminalidade generalizada com forte reprovação social (premissas amplamente aceitas na jurisprudência criminal, sem necessidade de se recorrer a máxima in dubio pro societate) e d) consideração como se organizam e se processam efetivamente as relações entre corruptores e corrompidos nas altas esferas de exercício do Poder Público.
É pouquíssimo provável que o presidente da República se apresentasse para receber direta e imediatamente valores decorrentes de uma negociação subterrânea. Para tanto, existem dezenas de assessores, ajudantes e operadores. Assim, não seria esperada a prova direta e imediata (a imagem, a testemunha, a apreensão, etc). É justamente isso que precisa ser ponderado.A estarrecedora imagem do recebimento do dinheiro sujo ficou, como era de se imaginar, para um assessor, um operador. Esse sujeito é que foi flagrado correndo pelas ruas de São Paulo com uma mala recheada de dinheiro (pagamento relacionado com uma negociação ilícita).
E não é um assessor, um operador, qualquer. Trata-se de alguém com longa trajetória de proximidade visceral com o presidente da República. Ocupou vários cargos de assessoria direta e imediata ao senhor Miguel Michel, inclusive a Assessoria Especial da Presidência da República.
O mais importante é a existência de elemento concreto e objetivo de ligação da corrida com a mala recheada e o senhor Miguel Lulia. Em reunião à sorrelfa com um senhor Joesley Batista (um bandido, segundo o próprio Temer), o presidente acusado de corrupção passiva pelo Procurador-Geral da República afirmou: “Ou você vem com o RODRIGO [para encontro escondido no Jaburu]”, “ah você não deu nome? Ótimo [para entrar no Jaburu]”, “pode passar por meio dele [Rodrigo Loures], viu? (…) da minha mais estrita confiança [quem passa, passa algo]” e “Sempre pela garagem, viu? [para encontros noturnos e secretos no Jaburu]”.
Vale anotar a existência, na denúncia, de inúmeras transcrições de conversas de Loures com Joesley Batista e Ricardo Saud (executivo do grupo JBS) onde o presidente Michel Miguel é referido inúmeras vezes, inclusive como “chefe”. Num desses encontros, Loures indaga à Joesley: “A conversa com ele foi boa, lá naquele dia? [referência à furtiva reunião com Temer no Jaburu]”.
Ora, do que tratava o senhor Michel Miguel, às escondidas com um bandido (na visão do próprio), em termos de algo a ser entregue ao senhor Loures? Seria uma doação para caridade? Seria uma entrega de recursos a serem usados em alguma ação de assistência social? Seria uma quantia a ser utilizada no desenvolvimento de atividades culturais? Seria um empréstimo, assim como alega Aécio? Seria uma aposta? Esse, aliás, é um importante caminho de construção do raciocínio jurídico para o caso. Afaste a possibilidade de ser propina, no âmbito de uma operação envolvendo corrupção passiva, e tente, com os contornos apresentados, uma explicação razoável e consistente no campo da licitude. Sintomaticamente, essa hipótese não ocorre.
Portanto, tudo indica e aponta, salvo uma visão estritamente formal, leniente com o ilícito e deslocada da realidade do fenômeno da corrupção nas altas esferas da política nacional, para a necessidade de efetiva instauração do processo penal por corrupção passiva, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em face dos senhores Lulia e Loures.
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