Aldemario Araujo Castro*
A Resolução TSE número 23.406, que dispõe sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos, candidatos e comitês financeiros e, ainda, sobre a prestação de contas nas Eleições de 2014, estabelece em seu art. 33 (destaques inexistentes no original):
“Deverão prestar contas à Justiça Eleitoral:
I – o candidato;
II – os diretórios partidários, nacional e estaduais, em conjunto com seus respectivos comitês financeiros, se constituídos (…)
§ 4º O candidato e o profissional de contabilidade responsável deverão assinar a prestação de contas, sendo obrigatória a constituição de advogado”.
Na prestação de contas da senhora Dilma Rousseff, candidata à presidente em 2014 e atual ocupante do posto, está indicada a sua advogada. Trata-se da Dra. Marcia Pelegrini, inscrita sob o número 91.342 na OAB/SP .
Ocorre que o atual advogado-geral da União, o senhor Luís Inácio Adams, fez nos meios de comunicação uma clara defesa das contas eleitorais da Presidente da República, candidata à reeleição.
As atribuições do advogado-geral da União estão elencadas no art. 4º da Lei Complementar número 73, de 1993 (Lei Orgânica da AGU). São as funções do dirigente maior de uma instituição de Estado responsável pela representação judicial e extrajudicial da União e pelas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos ao Poder Executivo Federal (art. 1 º da Lei Complementar n. 73/1993, repetição do art. 131 da Constituição).
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Assim, não se consegue identificar a que título, nos marcos da atuação do advogado-geral da União, o senhor Luís Inácio Adams realizou a defesa das contas eleitorais da candidata.
Não seria possível invocar sequer a defesa de autoridades federais, a ser realizada pela AGU, prevista no artigo 22 da Lei 9.028, de 1995. Com efeito, o dispositivo legal referido autoriza a AGU a representar judicialmente os titulares e os membros dos Poderes da República, das instituições federais referidas no título IV, capítulo IV, da Constituição, bem como os titulares dos ministérios e demais órgãos da Presidência da República, de autarquias e fundações públicas federais, e de cargos de natureza especial, de direção e assessoramento superiores e daqueles efetivos, quanto a atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais, legais ou regulamentares, no interesse público, especialmente da União, suas respectivas autarquias e fundações, ou das Instituições aludidas.
Ora, a senhora Dilma Rousseff, mesmo ocupando a condição de Presidente da República, não pratica atos institucionais constitucionais, legais ou regulamentares na condição de candidata na disputa eleitoral. Essa afirmação é tão correta que a Dra. Marcia Pelegrini, advogada, foi devidamente constituída para representar a candidata junto à Justiça Eleitoral.
O episódio demonstra uma das faces mais tristes das deturpações impostas à advocacia pública federal na atual quadra histórica da sociedade brasileira impedindo o escorreito exercício de suas missões constitucionais na defesa e construção do Estado Democrático de Direito, notadamente no combate à corrupção e na efetivação das políticas públicas. Afinal, observa-se no âmbito da AGU e seus órgãos vinculados: a) remunerações aviltadas; b) condições de trabalho indignas; c) independência técnica manietada; d) autonomia inexistente e e) advocacia de governo presente.
O comportamento do advogado-geral da União, o senhor Luís Inácio Adams, insere-se no último dos “capítulos” das deturpações. Está claro como água cristalina que o cliente do atual advogado-geral da União é o governo e seus integrantes, inclusive na perspectiva de seus interesses pessoais completamente dissociados das atuações como agentes públicos. Esse tipo de atitude, profundamente censurável, fragiliza a atuação da AGU e de seus membros na defesa do patrimônio público e das decisões públicas. Ninguém mais, ninguém menos do que o chefe da instituição sinaliza para os gestores e autoridades, em particular as judiciárias, quais as motivações mais fortes das ações realizadas no âmbito da advocacia pública federal.
Não custa lembrar que o atual advogado-geral da União também protagonizou, entre outros:
a) o PLP 205/2012 (projeto de nova Lei Orgânica da AGU), com abertura de espaço na cúpula da instituição para não-concursados, restrições à independência técnica dos advogados públicos, centralização antidemocrática da gestão administrativa e outras definições nessa linha;
b) a “Operação Porto Seguro”, o maior escândalo de corrupção e tráfico de influência da história da AGU;
c) a defesa dos “jetons” dos Ministros de Estado acima do teto remuneratória previsto na Constituição e
d) o retardamento indevido das providências voltadas para resguardar o patrimônio público em relação à Ação Penal n. 470 (o famoso “mensalão”).
Na advocacia de governo (ou dos governantes), patrocinada e protagonizada pelo atual AGU, o advogado público é chamado para atestar a constitucionalidade e legalidade de decisões prontas e acabadas (não há espaço para o exercício da necessária independência técnica) e para chancelar os interesses do gestor, mesmo aqueles de cunho estritamente pessoal e divorciados do interesse público.
É por isso que a advocacia de governo é tão indesejável e repulsiva. Só pode ser caracterizada como ilícita justamente por se constituir numa corrupção (no sentido aristotélico) da advocacia de Estado, a única compatível com a ordem jurídica em vigor. Numa afirmação, o padrão de comportamento ínsito à advocacia de governo não se coaduna com a construção de um Estado Democrático de Direito informado pelo princípio da supremacia do interesse público (primário).
Importa destacar que o importante papel institucional reservado à advocacia pública, como uma advocacia de Estado forte, autônoma, altiva, respeitada e construtiva, vocacionada para o combate às malversações do patrimônio público e para a realização das políticas públicas, reclama um conjunto de medidas e providências urgentes que passam:
a) pela paridade remuneratória com as demais carreiras que dão vida às funções essenciais à Justiça, inclusive pela via da percepção de honorários advocatícios;
b) pelas condições adequadas de trabalho, em especial com a organização de carreiras de apoio especializadas;
c) pela modernização da Lei Orgânica da AGU com a definição das pertinentes garantias e prerrogativas, em particular a independência técnica dos advogados públicos;
d) pela aprovação da PEC 82, com a afirmação das autonomias administrativa e financeira da advocacia pública em todos os níveis da federação;
e) pela afirmação e concretização de uma verdadeira advocacia de Estado, em consonância com os ditames constitucionais.
O episódio comentado nessas breves linhas está relacionado com a última das medidas ou providências. É tarefa inadiável dos advogados públicos e de todos os setores republicanos da sociedade brasileira combater o bom combate contra a odiosa e perniciosa advocacia de governo que teima em se instalar nos espaços da advocacia pública e destilar seu veneno avesso à democracia, à moralidade e aos valores republicanos.
*Aldemario Araujo Castro é procurador da Fazenda Nacional e professor da Universidade Católica de Brasília
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