Antônio Carlos de Medeiros *
Passadas as primeiras semanas – de pressas, imprevistos e desajustes no timing político –, já se convencionou perceber e aceitar que não se pode perder de vista o caráter ainda de interinidade do governo Temer. Isso faz diferença. Significa, pelo menos, que o presidente em exercício convive com a “sombra” da presidente afastada. Essa dualidade cria incerteza e instabilidade. Sem falar que, no segundo e terceiro escalões, as equipes ainda têm a presença do governo Dilma. Como gerar sinergia e espírito de equipe e compromisso com a nova agenda? O Leviatã demora para se locomover.
Se o Senado aprovar o impeachment, o que parece provável, aí sim o governo Temer se inicia. Aí, sim, há uma troca de guarda. Mas será um governo de transição. Transição de ciclo político e de ciclo econômico. Essa característica de governo de transição também não pode ser perdida de vista. Ela significa que, num ambiente de múltiplas crises, a legitimidade e a representatividade do governo precisam ser conquistadas ao longo da própria caminhada, com atos, medidas, atitudes, opções simbólicas, escolhas e, sobretudo, entregas. Não é pouco. Não é trivial. Há um deficit de capital político, capital social e capital simbólico no sistema político.
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Caminhar, caminhando. Ajustar e reajustar o caminho. Buscar os atalhos. Trilhar o rumo. Mas o rumo é complexo, multifacetado, contraditório. Destino em mutação. A intrincada sintonia fina entre os dois grandes objetivos, o do ajuste fiscal estrutural e o das medidas de crescimento econômico. Ajuste que enfrentará resistências e que vai mexer no coração do conflito distributivo. Medidas de crescimento que precisam despertar o espírito animal, numa selva de interesses conflitantes, e de criar formas de financiamento do desenvolvimento. A tarefa gigantesca de pavimentar o caminho para a mudança de ciclo e para a mudança da agenda do país, depois de uma longue durée da Constituição de 1988, da estabilidade do Plano Real e do lulopetismo. Alicerces em mutação.
A construção dessa nova agenda é a essência da transição. Que só poderá resultar em início real de novo ciclo a partir do escrutínio das urnas, em 2018. Só em 2018 poderão se dar o encontro e o embate das visões e projetos de sociedade e de país. Lá, sim, uma nova síntese, legitimada, dirá qual será a agenda e o projeto de país. Até lá, não tem jeito: caminhar, caminhando.
Primeiro, o governo Temer está cuidando da costura e da conquista da governança: é fundamental governar o governo, “domar” o Leviatã e, ao mesmo tempo, ter respaldo no Congresso. Isso, está claro, é necessário, mas não é suficiente. Passados os primeiros 30, 60 dias de trégua e de benefício da dúvida, o governo terá que conquistar a governabilidade da aceitação e a aprovação da sociedade. Com entregas. Ou seja, tem um Rubicão para ser atravessado. Vai entregar o quê? Como modificar, mesmo que gradualmente, a mistura de patrimonialismo e corporativismo encrustada no Leviatã?
PublicidadeA equipe econômica tem credibilidade. É de alto nível. A equipe como um todo é adequada para a busca do apoio congressual. Mas a dualidade da interinidade e, depois, eventualmente a transitoriedade, criam a necessidade de um senso de urgência. Uma espécie de dissonância de timing: o tempo político do governo precisa ser mais “rápido” do que o seu tempo regulamentar. Por isso, o nome do jogo deverá ser credibilidade e capacidade de entrega.
“À urgência precisam ser adicionados coragem, tirocínio e busca incessante de lastro político, no Congresso e na sociedade. Sabendo-se que no meio do caminho tem uma pedra: a Operação Lava Jato”
As condições e limitações estão postas. As especificidades, neste dado momento histórico, da fortuna e da virtú. A balizarem o jogo a ser jogado. Nesse contexto, com quem o governo contará? De onde vai tirar força política na nova correlação de forças? À urgência precisam ser adicionados coragem, tirocínio e busca incessante de lastro político, no Congresso e na sociedade. Sabendo-se que no meio do caminho tem uma pedra: a Operação Lava Jato e os seus efeitos políticos, jurídicos e econômicos. Temperando cada vez mais a incerteza, turvando o cenário.
Cada dia com sua agonia. Assim está sendo. Assim vai continuar sendo. Agonia que requer a opção de vencer pela ética do trabalho e pelo despertar da sociedade para a propensão a cooperar e arregaçar as mangas, desde que os exemplos de rigor com os gastos públicos venham de cima, das elites políticas. No plano econômico, a agonia pode estar chegando um pouco mais perto do fim, no sentido de que o ciclo prenuncia sintomas de retomada das atividades e do crescimento, lá por volta de 2017. Mas é preciso trabalhar, vale dizer, despertar o espírito animal do empresariado. O Brasil tem energias sociais, econômicas, institucionais e estruturais para um novo ciclo (virtuoso) de crescimento. Desde que sejam superados, ao longo da caminhada, os impasses e bloqueios que vêm da política.
Superados os impasses, restabelecida a confiança, a reversão das expectativas poderá retroalimentar a retomada do ciclo e a manifestação concreta do espírito animal: investimentos, produtividade, crescimento. Não é pouca coisa. Exige capacidade de direção política do desenvolvimento, com centro de poder pacificado e reconhecido como tal. Onde estará o poder político? Qual será o novo arranjo/pacto de poder, isto é, o novo bloco no poder?
E aí é inevitável voltar a olhar para a esfera da política. Para além da retomada do ciclo econômico, é preciso, no plano propriamente político, retomar com foco e senso de prioridade e urgência as agendas das reformas políticas. Criar condições, na sociedade e no Congresso, para superar os entraves políticos à governança e governabilidade, modificando o sistema político-eleitoral e partidário. Questões chave como a cláusula de barreira; a proibição das coligações proporcionais; o voto distrital misto; o pacto federativo; e, quiçá, o semipresidencialismo. A sociedade precisa estar sintonizada e mobilizada para pressionar por essas reformas. Sem elas, as mazelas e a instabilidade do presidencialismo de coalizão não passarão, não serão superadas. E os efeitos perversos da mistura de patrimonialismo e de corporativismo permanecerão.
Tudo somado, o nó da questão é nó dobrado: conjuga a necessidade de enfrentamento e superação do conflito distributivo, com a tendência à formação e recorrência de um poder moderador no Brasil, capaz de funcionar como “árbitro dos conflitos da elite” (na feliz expressão de José Murilo de Carvalho). No momento, há sinais de que o governo transitório de Temer poderá ser circunscrito por um novo poder moderador, agora “exercido coletivamente pelos juízes da corte suprema”, o Supremo Tribunal Federal (Demétrio Magnoli, Folha de S.Paulo, 07/05/2016).
Com efeito, historicamente, desde os idos de 1824, o sistema político brasileiro tem convivido recorrentemente com a presença intrínseca ou explícita de um poder moderador, seja ele uma autoridade estabelecida e legitimada ou uma instituição: do imperador ao STF. Se fecundar, como está anunciando, as condições para a reinvenção do federalismo no Brasil, o governo Temer poderia recriar alicerces para que o papel de poder moderador volte a ser desempenhado por uma política de governadores, como já foi um dia, talvez temperada por uma opção semipresidencialista. Na transição para um novo ciclo político, o caminho da sístole para a diástole…
Enquanto isso, dada a necessidade da urgência e do senso de urgência, o governo precisa continuar na toada de aprovação de medidas econômicas que possam reverter as expectativas, recuperar a confiança e apontar para a retomada do crescimento e da geração de empregos. Destravar as concessões para investimentos em infraestrutura. Continuar os ajustes na Petrobras, no setor elétrico e no setor de construção civil. Equacionar o problema dos débitos das empresas brasileiras no exterior e o problema da dívida e do desequilíbrio fiscal dos estados. Cuidar de marcos regulatórios, como o da mineração. E aprofundar a política fiscal, com ajuste da política monetária. A agenda está posta e há um razoável consenso em torno dela e da sua necessidade histórica.
* PhD em Ciência Política pela London School of Economics and Political Science.
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