Roxana Tabakman *
As etapas iniciais de um surto epidêmico oferecem excelentes oportunidades aos jornalistas encarregados da cobertura de saúde pública. Há muitos cientistas que aceitam deixar entrar as câmaras em ambientes habitualmente vedados, o Ministério de Saúde oferece informação o tempo todo, as famílias afetadas procuram a imprensa porque sabem da importância dela para melhorar a situação, há muito interesse do público e os índices de leitura/visualização dos produtos informativos alcançam níveis invejáveis. O nosso trabalho chama a atenção, dá cliques, gera conversa. Em resumo, quando o contexto geral é de intranquilidade, o jornalista pode dormir tranquilo porque não falta trabalho.
A vida boa, porém, está prestes a acabar. O período em que não é preciso nem parar para pensar como convencer os editores a publicar matérias de saúde produzidas aqui e não simplesmente traduzidas, está com os dias contados. Agora que o vírus zika já foi registrado em 32 países (e logo serão mais) e que a emergência internacional da microcefalia é oficial, chegou a nossa hora: a concorrência com a imprensa internacional é para valer. A mídia brasileira deve sair às pressas da zona de conforto, os jornalistas têm que se preparar para o que vem pela frente. Falando direto. Chegou o momento de desviar a atenção dos porta-vozes oficiais e das telas de televisão, e se perguntar: o que será que não está chegando de maneira automática no meu email? O que está acontecendo de importante e que deve ser investigado?
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Novas perguntas ou novas respostas
Não dá para continuar repetindo o tempo todo apenas a recomendação de pôr areia no vaso da sacada. Isso todo mundo já sabe, faça ou não faça. Ou publicar números em constante aumento, seja de vírus, pessoas ou países. O público e a imprensa vão exigir novidades, novas perguntas ou novas respostas.
A lista de pautas possíveis já é significativa. Vai desde cientistas infectando mosquitos para proteger a saúde humana, testando o zika em mini cérebros criados no laboratório, fabricando vacinas Frankenstein com pedaços dos vírus do dengue e a febre amarela, preparando radiação não letal ou avaliando repelentes de última geração que utilizam os últimos avanços das nanotecnologias. Há também fatos bem distantes destas disciplinas. Nos bancos de sangue do mundo nosso liquido vital está virando sangue de segunda categoria e na suspeita de possível transmissão sexual, nas viagens pelo exterior, amantes brasileiros só serão aceitos com dupla camisinha.
Mas no final, a pergunta que todo mundo quer saber é a seguinte: um mosquito é mais forte que um país inteiro? Vamos ou não ganhar essa guerra? “O Aedes aegypti e’ o problema de saúde pública mais grave do século e você e responsável de termos uma epidemia”, é a mensagem oficial difundida massivamente. A criação na população, da consciência de que estamos diante de um problema de gravidade extraordinária facilita a necessária mobilização. E aos saudosos do militarismo, a mobilização de 220 mil militares e brigadas conformadas por 300.000 agentes públicos lhes dá tranquilidade. Mas será que é mesmo uma guerra? Será que o mosquito é o principal obstáculo para ter saúde? Será que a estratégia de acabar com os criadouros é 100% efetiva? Será que podemos todos juntos erradicar o mosquito listrado? Ou tudo se trata, apenas, de uma utopia compartilhada?
A luta corpo a corpo e casa a casa é necessária; porém, insistem os especialistas, é insuficiente. Se os responsáveis pelo marketing estão oferecendo uma resposta rápida e simples à sociedade é porque acham que disso é o que o povo está precisando. É também a hora da imprensa dizer não. Não basta ser rápida. Tem que ser também uma resposta eficiente, possível e sustentável a longo prazo. E na hora que o jornalista mudar a sua forma de ver o problema, surgirão centenas de novas perguntas, dúvidas e pautas.
Para resolver o problema de vez são necessárias medidas urbanísticas e sociais que estão ficando fora do foco. A nossa angústia atual é em grande parte consequência do crescimento desordenado das cidades e ausência do saneamento básico. O que nos diz esse fato sobre nosso futuro?
Em segundo lugar, vale a pena aprofundar mais nas alternativas biotecnológicas que começam a ser testadas. Algumas nascem envoltas em polêmicas e a depender do tratamento jornalístico, o repórter pode ser de muita ajuda, ou fazer muito dano.
No Brasil está sendo desenvolvido, por exemplo, o projeto Wolbachia, que consiste em inocular no Aedes aegypti uma bactéria com o objetivo de torná-lo incapaz de transmitir os vírus (da dengue, zika e chikungunya). O micróbio é, na sequência, transmitido da fêmea para os ovos, e no cenário final uma população de mosquitos incapazes de fazer o mal vai substituir os atuais, que ninguém quer de perto. O desfecho do tipo “viveram felizes para sempre” seria obtido sem matar ninguém, nem sequer um mosquito. Será que uma estratégia assim é verdadeiramente eficiente e compatível com a saúde do meio ambiente? É uma pergunta que muitos se fazem e que vale a pena responder.
Outra tática de alta tecnologia, com pesquisas já bem avançadas, é a do mosquito transgênico que esteriliza a fêmea e, no longo prazo, permite sonhar em acabar com a espécie (o que não é de lamentar porque o Aedes aegypti é invasor aqui na América Latina, é preciso dizer). O projeto todo parece roteiro de filme. Começa no laboratório de engenharia genética e, na cena final, a população de mosquitos sobreviventes não é suficiente para transmitir o vírus. Outro caminho paralelo que os cientistas avaliam hoje é alterar o DNA dos mosquitos para que sejam incapazes de levar o vírus zika na barriga, uma característica que logo seria transmitida aos seus descendentes (processo tecnicamente conhecido como gene drive). Hoje ainda há muita oposição a liberar animais transgênicos ao ambiente natural. Será que o medo mundial a microcefalia muda a percepção pública sobre a necessidade de contar com ajuda dos organismo modificados geneticamente? Tal vez. Isso é desejável? Achamos que sim mas cada jornalista tem que produzir noticias capazes de levar o público, a desenvolver suas próprias conclusões.
O foco destas estratégias está no bandido de patas listadas, que os cientistas querem, seja aniquilar, seja converter em Aedes do bem. No final da estrada, um cenário maravilhoso de um mundo sem mosquitos malvados. Na teoria é possível, mas o Brasil precisa de repórteres bem formados capazes de ouvir estas maravilhas com suficiente ceticismo profissional para checar as informações recebidas. A história contada apenas pelos protagonistas, com autoridade e interesses próprios, em jargão preciso e incompreensível, e sem possibilidade de questionamento, constituiria um ato de fé. Depois de todo anúncio ribombante o repórter precisa ir atrás, saber o que opinam outros cientistas trabalhando na mesma área, se avaliam a metodologia, se o investimento faz sentido. Também deve evitar a crítica infundada baseada nas distopias literárias que começam num laboratório de paredes brilhantes e acaba já sabemos como. A mídia brasileira pode dar um show de bola se conseguir difundir o que se faz no país sem “comprar” as informações técnicas de olhos fechados nem fugir delas como se fosse um pecado. A ciência demanda evidências, o jornalismo também.
O diagnóstico da síndrome de microcefalia e o teste do vírus em fluidos humanos é um outro assunto que vai gerar muitas notícias nos próximos meses. Também neste assunto é essencial que se deixe de repetir a importância de um anúncio apenas porque os próprios autores disseram que ele é genial. É bom saber que um método de identificação da doença não é maravilhoso unicamente por ser rápido e barato. Tem que ser avaliado pela sensibilidade (capacidade de identificar a afecção), especificidade (capacidade de identificar quem não tem a afecção) e valor preditivo (proporção dos exames positivos de pessoas que realmente ficam doentes), isso é indispensável para saber o que significam os casos confirmados ou descartados. Não ouvi jornalistas fazendo perguntas com essa profundidade, a grande maioria deles apenas está transcrevendo números oficiais.
O ritmo da ciência é lento. A mídia vai ser chamada muitas vezes a noticiar pequenos avanços na busca de um soro ou uma vacina contra dengue, zika, chickungunya entre as muitas fórmulas que estão sendo pesquisadas. A urgência e publicidade podem alavancar o dinheiro necessário e organizar o sistema científico para que o processo não demore mais do que o necessário. Os laboratórios e as instituições precisam da imprensa para que estas pesquisas continuem sendo uma prioridade do Estado. Mas a mídia não pode cometer o erro, como fez no tristemente célebre caso da fosfoetanolamina – de exigir o atropelo de fases clínicas. O método científico exige esperas longas porem extremamente importantes.
Falsas polêmicas
As discrepâncias entre os cientistas são reais e positivas, assim é como avança o conhecimento. Outro ponto importantíssimo é refletir sobre o que chega ao público como polêmica sem base na realidade. Os ecologistas não gostam de mexer no ambiente natural? Vamos então perguntar para eles sobre o mosquito transgênico. Pedir a avaliação dos contrários, ou seja, se jornalista tem a certeza que as fontes oferecem distintos pontos de vista e não simplesmente editam a informação à luz da suas paixões pessoais. Nos tempos de epidemia é a hora de fugir de militantes desinformados. Caso contrário, um repórter pode acabar propondo encher o Parque do Ibirapuera de anfíbios que comam os mosquitos ou recomendar velas de citronela, estratégias similares na sua falta de eficácia contra o Aedes. A militância bem informada pode, porém, ser de grande ajuda para mostrar como os agravos ambientais impactam na saúde das populações humanas.
A correta avaliação das fontes pode parecer uma recomendação desnecessária, mas a disseminação dos erros é tão marcante hoje em dia que é difícil saber o que é verdade ou não. Será que o leitor, provavelmente bem informado, sabe responder sem erros quais destes métodos são eficientes para protegê-lo de picadas do mosquito? Spray doméstico – raquete elétrica – repelentes a base de icaridina – repelentes a base de DEET – repelentes eletrônicos – lavar o chão com citronela – plantar crotalaria – velas repelentes – limão com cravo – areia nos pratos – sal grosso – borra de café – carros com fumacê (lista incompleta devido à extraordinária inocência e criatividade do brasileiro). A cobertura de assuntos que impactam na saúde não significa dar as costas às fontes não oficiais, mas é preciso avaliá-las com rigor porque o dano fica para as próximas gerações.
Controle do mosquito ou erradicação?
A gente acredita que está em um período de tolerância zero, mas não é bem assim. O país abandonou oficialmente a meta de erradicar o Aedes egypti no mês de julho de 2001. O propósito é controlá-lo. Mas isso não significa que não existam especialistas que apontem a erradicação como único caminho. É o Fla-Flu da Copa Aedes aegypti.
Se o jornalista procura olhares de fora do mainstream, pode encontrar aqueles que acreditam que é de nossa responsabilidade humana preocupar-nos que o mosquito não esteja contaminado com o vírus. São especialistas em modelos matemáticos que insistem que deveria se proteger mais os mosquitos do contato com os infectados do que se faz hoje. Em outras palavras, eles põem o foco no isolamento dos que já estão infectados. A lógica é fácil de entender. Os vírus se reproduzem mais rapidamente nos seres humanos do que no mosquito. O inseto é uma espécie de “disque-virus’ que faz entrega casa por casa, mas o animal que o transporta a grandes distâncias é o humano. A fonte do vírus não é o mosquito, é o homem. Essa mudança de perspectivas é interessante, mas pode ter consequências. A história da medicina brasileira tem uma frase célebre de Oswaldo Cruz: “deem-me liberdade que eu erradico a febre amarela”. Naquela época (1904), o mosquito foi mesmo erradicado. A estratégia incluía, entre outras medidas, isolamento rigoroso do doente em ambiente protegido por telas metálicas.
Cingapura contempla multas de alto valor e até cadeia para quem tiver criadouros com larvas de Aedes em casa. Hoje, na Bahia, usuários anônimos fotografam e informam aos órgãos municipais os locais com possíveis criadouros de mosquito através do aplicativo Caça Mosquito (para o sistema Android). A sociedade ainda deve discutir – e mídia tem um papel crucial neste debate – sobre o que deve ser feito ou não para resolver a difícil convivência das pessoas com os mosquitos. Mas para fazer isso, precisamos dar a conhecer a real efetividade de cada uma das estratégias que podem ser executadas. Os números existem, estão nos discos duros dos computadores dos cientistas. E só saber perguntar, e ter a coragem de divulgar.
Quantos casos são?
Os repórteres vão continuar buscando respostas a essa pergunta por muito tempo e com muita pressão dos editores que procuram manchetes impactantes. Os cientistas também. E os dois sabem que o campo dos números está cheio de armadilhas. Pernambuco tem muitos casos de microcefalia. Será simplesmente uma super notificação? Os casos mais graves estão no Ceará. Há alguma outra causa contaminando os dados?
O repórter pode fazer uma mudança de foco indo na contramão: perguntar quantos casos de microcefalia se devem mesmo ao Zika vírus e colocar seu interesse noutras possíveis causas da enfermidade. Se não for o Zika, qual pode ser outra causa? Há sem dúvida outras questões a serem estudadas, desde redes de atenção básica ineficientes a causas ambientais desconhecidas. Toda substância química ou radiação que interfira em mecanismos essenciais do desenvolvimento do feto pode levar a malformações, a lista de contaminantes parece infinita e provavelmente ainda é incompleta.
Procurar o lado oculto da informação não significa porém alimentar as teorias conspiratórias. Sempre onde a grande maioria enxerga um problema, outros veem um negócio oculto. O maldito capitalismo lucrando com as nossas doenças é um clássico dos boatos de internet. A afirmação de que o vírus Zika foi criado pelos Rockefeller está sendo amplamente difundida, ao ponto que o site e-farsas.com, que investiga rumores da web, decidiu esclarecer o assunto. (É mentira, lógico, mas de fato o nome do milionário norte-americano e a saúde pública brasileira estão realmente interligados. Poucos sabem que entre os anos 1923-1940 o Departamento Nacional de Saúde Pública do Brasil passou à Fundação Rockefeller a responsabilidade exclusiva pela eliminação do Aedes aegypti). As teorias conspiratórias abarcam todas as bandeiras. Antes que a OMS declarasse a emergência, muitos se perguntavam (geralmente em inglês: What must be heavy lobbing from Brazil not to declare emergency? (Quão forte deve ser o lobby do Brasil para que não se declare a emergência?) Mas a imprensa que tem a responsabilidade de informar sem censurar verdades, deve tomar cuidados extremos para não cair na armadilha de misturar fatos reais não relacionados.
Com as lições aprendidas com a gripe suína, a prestigiosa plataforma de informação científica scidev.net quis oferecer aos jornalistas de países com poucos recursos e grandes desafios, as suas recomendações. “Para informar com responsabilidade sobre o brote de uma doença, não é apenas necessário dar sentido aos primeiros informes. Também deve ser feito um acompanhamento exaustivo da evolução da doença a longo prazo…Há necessidade de voltar às fontes para ver se elas mudaram de opinião e levar isto ao conhecimento do público.”
O Zika pode servir para um bom aprendizado no jornalismo científico. Saibam apenas que a contagem regressiva da dengue já começou. Os especialistas aguardam uma epidemia forte do dengue tipo IV, o dengue neonatal e encefalite por Chikungunya. Aliás, também temos possibilidades de outras doenças chegando. O Zika pode ser o desafio que precisávamos para conseguir estar no patamar de nossos colegas dos EUA e da Europa fazendo que as matérias de saúde sejam baseadas em evidências, assim com deveria acontecer na política, economia ou as notícias da cidade.
* Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de A saúde na mídia. Medicina para jornalistas, jornalismo para médicos. Ed. Summus.
Artigo publicado originalmente no site Observatório da Imprensa.
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