Patric Krahl *
Em 2009, o Brasil foi “eleito” (apesar de ser candidato único…) a sediar a Copa do Mundo Fifa 2014. Desde o momento dessa escolha, tenho visto no país sentimentos distintos. Há os que acham que a Copa 2014 será uma catástrofe, o próprio juízo final à moda tupiniquim – os estádios não ficarão prontos, os aeroportos e rodoviárias continuarão caindo aos pedaços, as pessoas não conseguirão chegar nem se locomover e os que conseguirem não encontrão hotéis ou pagarão valores astronômicos por sua estada. Sem contar que serão assaltados ou até assassinados, tudo sob os olhos ávidos da mídia internacional. Em resumo, os anunciantes dessa corrente “pensamental” apregoam que teremos vergonha de nos dizermos brasileiros depois disso.
Não sou muito adepto dessa linha, que acho exagerada, mas veremos.
A segunda corrente acha que a Copa do Mundo vem para resolver todas das mazelas do nosso país. Já esta me parece uma linha mais preocupante.
Quanto à opinião catastrófica, tem-se a argumentar que a Copa do Mundo é um evento esportivo organizado pela Fifa. Mais do que isso, pertence à Fifa. Os estádios estarão prontos, ou quase prontos, mas estarão em condições de jogo. Na África do Sul e na Alemanha também tivemos casos de obras dos estádios que ficaram inacabadas ou não funcionaram como deveriam. A Copa é um negócio milionário gerenciado por essa poderosa entidade que já promoveu outras 18 sem grandes problemas aos olhos do mundo e não deve ser diferente por aqui. Afinal, numa visão simplificada, uma Copa não é muito mais do que a organização de uma série de jogos de futebol, o que não é assim tão complicado mesmo sabendo de todo o cuidado que um evento de tal repercussão requer.
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Então, fica a pergunta: como o Brasil entra nessa? Cabe ao nosso país pagar a maior parte dessa conta – isenções fiscais, investimentos em estádios, infraestrutura e mobilidade urbana -, mas também a ele incumbe aproveitar a visibilidade internacional que eventos dessa envergadura geralmente proporcionam para dinamizar seu desenvolvimento e se mostrar para o mundo. É justamente nesse ponto que reside meu pessimismo. Não vejo este megaevento de 2014 e tampouco os Jogos Olímpicos de 2016 como projetos de país. O governo brasileiro não os tem abraçado como, por exemplo, foi feito pela África do Sul na Copa do Mundo de 2010. Ou pela China, pela Austrália e pela Espanha nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, Sidney, em 2000, ou Barcelona, em 1992, respectivamente. Esses países fizeram dos eventos oportunidades de emergir para o mundo em termos de divulgação da cultura, do turismo e da sociedade, da ampliação dos negócios e de fortalecimento como nação no cenário mundial.
No Brasil, o governo instituiu um comitê que reúne os mais diversos órgãos que têm alguma relação com a Copa, com uma matriz de responsabilidade do que cabe a cada um. Mas, na realidade, tudo é muito desconexo, cada órgão trabalha em sua área de atuação, salvo raras exceções, fato que demonstra não existir uma estratégia real de como aproveitar as oportunidades. O Brasil está preocupado em fazer um bom evento, mas dedica pouco esforço em relação ao que o evento pode fazer pelo Brasil.
Em suma, a Copa vai acontecer, as seleções entrarão em campo, alguém será campeão, significativa parcela da população do planeta vai assistir pela TV com qualidade digital, tudo às mil maravilhas. E depois desse mundial, o que sobrará para o Brasil? A depender da importância que o governo tem dado ao legado da Copa, acredito que muito pouco.
Ocorre que o governo brasileiro nem compreende direito como realmente funciona a organização da Fifa para o evento. Muitos falam de problemas com hospedagem ou conectividade aérea, mas desconhecem o fato de que só a Fifa ou seus agentes credenciados é que podem vender os pacotes para os jogos e que, em tais pacotes, já estão contemplados todos os leitos de hotel de que necessitam; que a maioria desses turistas virá em voos fretados que permitem a utilização de aeroportos secundários. Desconhecem que a maioria dos pacotes vendidos para a Copa do Mundo é de caráter coorporativo, ou seja, tais viagens são compradas por empresas que presenteiam seus clientes ou seus funcionários.
Por outro lado, tem-se que o Brasil recebe hoje pouco mais de 5 milhões de turistas estrangeiros por ano. A expectativa é que em 2014 cerca de 7,5 milhões de estrangeiros afluam à terra descoberta por Cabral para fins turísticos (tô pagando pra ver), e que mais 500 mil visitem o Brasil tendo como motivação a Copa do Mundo. Assumindo que as previsões estejam corretas (dobro a aposta), teríamos um incremento de 6,5% de turistas no ano da Copa atraídos pelo evento, o que não deveria gerar impacto significativo em relação à capacidade hoteleira e de acesso, pois se temos hotéis, aviões e respectivas estruturas de apoio para receber os mais de 7 milhões de turistas estimados que aqui viriam mesmo sem a Copa, então 500 mil a mais certamente não devem levar o sistema ao caos (agora é all in).
Mas o que realmente me preocupa é a segunda corrente “pensamental”, aquela que acha que a Copa vem para resolver todas as mazelas de nossa sociedade. Essa linha tão otimista tem impacto direto no cidadão comum, visto as mais diversas ideias e projetos de pessoas que pensam em ganhar dinheiro na Copa. Por exemplo: alguns estão investindo em comprar imóveis ou arrumar suas residências para alugá-las durante o evento, obviamente por valores muito acima do mercado, mesmo que suas residências estejam situadas na periferia das cidades. Você sairia daqui até a África do Sul e ficaria hospedado em uma casa na periferia de Johanesburgo? A não ser que você seja mochileiro, garanto que não. E se for mochileiro, não estará disposto a pagar muito caro pela hospedagem.
Vi outro dia uma propaganda de um órgão do governo incentivando quem quisesse abrir uma empresa de aluguel de bicicletas para a Copa. Acho até uma boa ideia aluguel de bicicletas, mas será que vai ter tanto público alugando bicicletas em Brasília ou em Manaus, ou qualquer outra, no tempo da Copa que valha o investimento? E depois da Copa, faz o quê? Ou o negócio é viável sempre, ou não é viável. Só para a Copa pode ser uma iniciativa traiçoeira.
O otimismo exagerado sobre a possibilidade de se ganhar dinheiro rápido durante a Copa do Mundo remete ao filme franco-uruguaio-brasileiro chamado O Banheiro do Papa (El Baño del Papa), baseado em um fato real – a visita do Papa João Paulo II a Melo, uma pequena cidade do Uruguai, no ano de 1988. A cidade, de população muito humilde fica perto da fronteira com o Brasil e muitos moradores ganham a vida transportando ilegalmente mercadorias do Brasil (mais baratas) para serem vendidas pelo pequeno comércio da cidade.
A visita do Papa mexe com a rotina dos habitantes que acreditam ser uma oportunidade de ganharem dinheiro e mudarem de vida. A imprensa corrobora em incitar tal expectativa propalando um número cada vez maior de prováveis visitantes ao lugarejo – começam a estimar 20 mil, 30 mil, 60 mil, até mais de 300 mil visitantes.
A população começa então a investir suas parcas economias (inclusive as que não têm) para montar negócios visando ganhar dinheiro durante a santa visita. A variedade dos negócios vai desde a venda de sanduíches, refrescos, churrascos, linguiças, tortilhas, lembranças, chegando até à construção de um banheiro a ser alugado por “tempo de uso”, pois se as pessoas vão comer e beber, em algum momento devem precisar de um banheiro.
O santíssimo evento realmente ocorre, mas conta com não mais de 8 mil pessoas, a maioria da própria cidade. Como resultado, em resumo, tudo o que as famílias investiram foi perdido e a miséria que já era muita ficou ainda pior. O grande evento que esperavam fosse resolver a vida da cidade decretou a ruína, o desalento, a revolta.
Tenho receio, sim, de que o Brasil não consiga organizar uma Copa memorável, um evento que tenhamos orgulho de haver realizado. Todavia, mais importante que isso, tenho muito mais receio de que o Brasil organize um excelente evento a qualquer custo, despendendo rios de dinheiro público em estádios e outras obras que não são nem de longe as essenciais que o país precisa, seja em termos de desenvolvimento ou para atender necessidades prementes da população. Tenho receio que esses megaeventos a serem sediados no Brasil, em vez de consolidar nossa posição mundial, acabem gerando uma mídia extremamente negativa e um endividamento desnecessário.
Tenho receio que nossa Copa do Mundo acabe se tornando um imenso “banheiro da Fifa”…
* Formado em Relações Internacionais e mestre em Marketing Internacional, foi coordenador do Departamento de Relações Internacionais do Ministério do Turismo nos últimos dez anos.
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