Ainda na primeira metade do século XIX o pensador francês Alexis de Tocqueville chamava a atenção para a distinção que devia ser feita entre uma sociedade aristocrática,que definhava a olhos vistos por aquela época, e a democrática, que surgia com uma pujança irresistível (nas suas próprias palavras).
Para ele, um dos fatores que mais separavam os modelos de sociedade era o que poderíamos denominar de mobilidade social. No primeiro caso, numa “aristocracia de sangue”, as posições ocupadas pelos antecessores seriam naturalmente repetidas pelos sucessores, formando uma cadeia que ia do rei ao mais humilde dos servos (numa quase citação ao texto original do autor francês), de maneira tal que a estabilidade gera da nessa fórmula permitia a um avô pressupor a vida que teria seu neto; e o mesmo valia para as camadas inferiores, ou seja, a função desempenhada por um pai seria a mesma que seu filho e assim sucessivamente. Já em uma sociedade democrática o oposto se dava, a saber, as posições eram voláteis e a mobilidade social enorme e, com isso, a atividade desempenhada por uma geração teria poucas chances de se repetir na geração seguinte.
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Qual o motivo de tamanha diferença? Na medida em que os indivíduos passaram a vivenciar e experimentar as mais distintas posições sociais, seria natural que essa individualidade levasse cada um para um caminho particular daquele realizado por sua mãe ou pai. E o interessante é que podemos observar isso em diversos países quando colocamos lado a lado grupos sociais que vivem em grandes centros urbanos e grupos sociais que habitam áreas afastadas ou rurais: quanto maior for a cidade maior será a mobilidade social de seus moradores; quanto menos urbana for a vida cotidiana, maior será a chance da pouca ou nenhuma mobilidade social.
PublicidadeSe tal premissa for verdadeira ou ao menos crível, como pensar a sociedade brasileira?
A leitura de duas reportagens do jornalista Edson Sardinha no Congresso em Foco (“Congresso, um negócio de família” e “De pai pra filho”, ambas publicadas em 01 de agosto de 2017) nos leva a tecer comentários. De acordo com o autor, há a média de seis em cada dez parlamentares com parentes também na vida política, pouco importando se estão na própria Câmara dos Deputados ou em Assembleias estaduais, Câmaras de Vereadores, ou nos poderes Executivos respectivos. Se preferirem, na mesma matéria citada, 62% dos deputados federais e 59% dos senadores “têm laços de sangue com outros políticos”. O mais assombroso é que esses percentuais fazem com o Brasil supere a Índia no fenômeno da participação familiar na vida política – lembrando que a Índia é um país de castas!
Não fosse isso o suficiente, observa-se também que tal fenômeno se repete no Judiciário: oito dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm parentes na área do Direito e metade dos quatorze integrantes da não menos famosa força-tarefa da Operação Lava Jato possuem parentes que são magistrados ou procuradores. Nesse sentido, as imagens de nossa classe política e de nosso Judiciário demonstram que, para estes, o universo brasileiro do século XXI está mais para o século XVIII.
Alguns dirão que isso se dá pelo custo das campanhas políticas que facilitam a manutenção das famílias na medida em que um filho ou neto já encontrariam uma infraestrutura que permitisse sua eleição e algo semelhante ocorreria na área jurídica,visto que a convivência no próprio ambiente corroboraria para tal prática.
O problema, conforme afirmam Ricardo Costa Oliveira (UFPR) e José Marciano Monteiro (UFCG) citados na reportagem de Edson Sardinha, é que a repetição dos sobrenomes mantém a agenda política no mesmo patamar e com as mesmas demandas, privatizando os interesses que são discutidos no Congresso Nacional; e a própria renovação da classe política, quando há, se dá exclusivamente com membros das mesmas famílias. Problema verossimilhante ocorre no meio jurídico.
A reprodução dos sobrenomes coloca em xeque as decisões dos tribunais, tantas das vezes elaboradas por um magistrado que tem parente atuando num escritório de advocacia ou mesmo em outros tribunais: contemporaneamente, os casos mais conhecidos foram a indicação e posse de Marianna Fux, filha do ministro do STF Luiz Fux (e aos 35 anos de idade), como desembargadora no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro pelo denominado “Quinto Constitucional” (indicação feita por advogados e autorizada pelo governador do estado) e Guiomar Feitosa Lima Mendes, esposa do também ministro do STF Gilmar Mendes, que atuava no conhecido escritório de advocacia de Sérgio Bermudes, defensor de Eike Batista. Batista, réu em inúmeros processos, teve habeas corpus assinado por Gilmar Mendes e responde em liberdade.
Esses exemplos citados quando confrontados com a tese de Alexis de Tocqueville nos apresentam um problema: levando “ao pé da letra” o resultado indicaria que a sociedade brasileira, pelos menos em se tratando de sua classe política e sua área jurídica, não poderia ser enquadrada ou definida como democrática. A presença marcante das mesmas famílias nesses dois cenários determinam a ausência ou diminuição drástica de uma mobilidade possível, engessando qualquer avanço e, consequentemente, representatividade social nesses dois Poderes de Estado. Não é de se estranhar, portanto, que a legislação que atua por sobre esses grupos não seja utilizada para os demais membros da sociedade brasileira: do foro e fórum privilegiado aplicado a todo tipo de crime aos políticos (quando deveria ser restrita à determinadas ações) à Lei Orgânica da Magistratura (fruto da ditadura militar), que determina que a maior punição a um juiz seja a aposentadoria (parcial ou integral), políticos, juízes e promotores estão à margem do que se vive no restante do país.
Frente a isso, o problema que se dá pode ser acondicionado na seguinte pergunta: se a classe política e a área jurídica (aqueles que administram e produzem as leis e aqueles que julgam se as leis estão corretamente cumpridas) colaboram para uma estagnação, poderíamos afirmar que o Brasil vive minimamente uma democracia? Será que os interesses que são postos no Palácio do Planalto e no Congresso Nacional e julgados no STF, Superior Tribunal de Justiça (STJ) e demais tribunais são os que podem ser classificados como plenamente republicanos?
É algo para se pensar.
* Doutor em Ciência Política. Professor do Departamento de Educação e Tecnologias da Universidade Federal de Ouro Preto.
Leia as reportagens citadas no artigo:
De pai para filho: família que está há 196 anos no Congresso prepara dois sucessores
Congresso, um negócio de família: seis em cada dez parlamentares têm parentes na política
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