André Rehbein Sathler e Malena Rehbein Sathler *
Comemoram-se, este mês, os 150 anos do folclórico “cortem suas cabeças”, ordem dada pela Rainha Vermelha do Alice no país das maravilhas. Em 1865, Lewis Carrol já se sentia suficientemente livre para brincar (e eternizar artisticamente) com o que, durante milênios, havia sido uma realidade brutal em seu país e em muitos lugares do mundo, que passaram por experiências ditatoriais, como as monarquias absolutistas. Na China, por exemplo, era comum que petições ao imperador fossem encerradas com um pedido para que o requerente fosse executado por sua presunção. O pedido foi atendido ao ponto de que o ato de fazer uma petição tornou-se símbolo de grande coragem moral.
Na Inglaterra, o processo histórico representou uma lenta transformação do “Parlamento do Rei” para o “Rei no Parlamento”. Em seus primórdios, o “Parlamento” era uma casa de conselhos – o rei recebia petições, respondidas por costume, o mesmo que ordenava que seus vassalos o aconselhassem quanto às respostas. Nos Estados Gerais franceses houve experiência semelhante: os convocados percorriam suas comunidades, com cadernos nos quais anotavam os desejos e as reclamações do povo; depois seguiam para o famoso Palácio de Versailles com o propósito de os lerem perante o rei e seus ministros, de quem aguardavam alguma manifestação em resposta.
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A soberania do rei e a contrapontual submissão do parlamento se expressavam de forma singular nas falas parlamentares, geralmente abertas pelo orador com um pedido de perdão real por qualquer frase que o pudesse perturbar. Não existia, no sentido moderno, oposição ao rei. Poderia haver um conselho um pouco diferente, ou uma reclamação um pouco mais ousada. Sempre com a cabeça a prêmio. E a essa altura, você deve estar se perguntando: mas o que isso tem a ver com im(p)unidade? Bom, até aqui o que conseguimos vislumbrar era o grande medo de punição que os parlamentares tinham ao se expressarem. E isso explica tudo que vem a seguir.
O primeiro passo para tentar garantir, sem medo, o direito de liberdade de expressão foi indicar um “speaker”, alguém que falasse em nome do corpo de parlamentares reunidos. O speaker assumia todos os riscos e, para o rei, era mais fácil ser tolerante com um, ainda que simbolicamente o fosse para com todo o parlamento. De certa forma, essa prática dava pelo menos uma aparente imunidade ao restante do corpo, protegido.
Finalmente, em1523, Thomas More fez seu famoso pronunciamento em defesa da liberdade de discurso, a partir do qual os membros do Parlamento se sentiram no direito de se opor a propostas governamentais: ressalve-se que nascia certa liberdade de discurso, mas não licenciosidade, e muitos parlamentares ainda foram punidos pela monarquia antes que houvesse a consolidação da noção do direito de imunidade parlamentar. Tal só viria a acontecer quando o parlamento se tornou o único árbitro sobre a conduta de seus membros. Ou seja, para se consolidar como instituição autônoma e fundamental do Estado, o Parlamento precisou salvaguardar seus membros quanto às suas posições e ações políticas, ameaçadas no passado. É esse tipo de garantia que se reflete exatamente no acontecido com o senador Delcídio do Amaral – quem decidiu sobre sua manutenção na prisão foi o Senado Federal.
Os parlamentos encarnam uma linguagem política, uma gramática segundo a qual os conflitos podem ser resolvidos, e a oposição expressa, de modo controlável. O uso arbitrário da força desequilibra fatalmente o saudável jogo político. Para que possam participar livremente da cena política, é indispensável que seus membros sintam-se plenamente livres para expressar o que pensam. Em um local no qual se digladiam argumentos, é justo que todos possam recorrer a quaisquer argumentos que desejarem ou puderem, sem a preocupação de serem condenados ou sofrerem retaliações por isso. E… somente por isso.
É exatamente esse o espírito constitucional brasileiro, quando se afirma que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Esse dispositivo é o caput do art. 53, ou seja, seu teor principal. Os parágrafos que o desdobram trazem a questão do foro privilegiado (Supremo Tribunal Federal), do tipo de crime que pode suscitar a prisão, e dos procedimentos a ser adotados em caso de prisão, inclusive, a atribuição da competência à Casa Legislativa respectiva para manifestação sobre a continuidade ou relaxamento da prisão.
Questionados por alguns como manto de impunidade, esses dispositivos, relativos à imunidade, são corretos, pois preservam o parlamentar do uso de subterfúgios para o silenciar (acusações falsas por outros crimes, por exemplo). Ressalte-se que a mais importante prerrogativa do parlamentar o “parlar”, a palavra, o discurso, o argumento.
Contudo, obviamente desvirtuada está a imunidade utilizada para livrar privilegiadamente de crimes conflagrados e que nada têm de relação com a política parlamentar. Não cala o parlamentar, como pretende a imunidade; mas a Justiça e a sociedade, no que se configura como impunidade. A imunidade não pode e não deve, de fato, se tornar sinônimo de impunidade, sob pena de termos no parlamento supercriminosos – criminosos com o dom de não serem atingidos por farpas de seus inimigos. Ou, pior ainda, o crime organizado, que encontra no nicho parlamentar a trincheira perfeita no submundo da violência.
Os tempos são perturbadores e as notícias aflitivas. Há um quê de fantasia, de fábula surrealista. Se há algum sinal positivo em tudo é o correto funcionamento das instituições, que mostram que as “regras do jogo” ainda são suficientes para lidar com a situação. O que convenientemente refrega a ânsia dos que desejam mudanças por meio da ruptura institucional. Até porque toda boa fábula termina com uma boa conclusão de ordem moral. Mas a garantia do final só com uma boa pressão aos autores da trama.
* André Rehbein Sathler é doutor em Filosofia e Malena Rehbein Sathler é doutora em Ciência Política. Ambos são docentes do Mestrado Profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
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