Cresci aprendendo que a portuguesa saudade era a palavra mais difícil de ser traduzida e compreendia por aqueles que não dominam a língua de Camões. Afinal, como definir em única palavra o que o genial Raul Seixas disse ser “um parafuso que quando a rosca cai só entra se for torcendo porque batendo não vai. Mas quando enferruja dentro nem distorcendo não sai”?
Como enquadrar em apenas um monótono vocábulo o inspirado conceito de Patativa do Assaré, quando, divinamente, aponta que “Saudade é canto magoado no coração de quem sente. É como voz do passado ecoando no presente”? Nem mesmo Fernando Pessoa, o poeta português mais admirado no Brasil, conseguiu um sinônimo apropriado para a sua definição, embora brindasse a todos com a lembrança de que “A saudade é a luz viva que ilumina a estrada do passado”.
Mas eis que, para surpresa minha, descubro que a palavra saudade não é a de mais difícil tradução no mundo. É que, há alguns anos, estudo realizado por mais de mil e quinhentos tradutores de várias nacionalidades fez da saudade uma palavra de sétima dificuldade interpretativa. No topo estavam Ilunga (tshiluba), Shlimazl (ídiche), Radioukacz (polonês), Naa (japonês), Altahmam (árabe) e Gezellig (holandês).
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Para os que têm saudade do tempo em que a saudade era a nossa querida vencedora, recomendo ler a pesquisa publicada no site Today Translation.
E foi exatamente o que fiz! Não podia deixar barato o charme de falar, declamar e escrever a mais difícil e poética das palavras portuguesas. Eu tinha que saber o significado da palavra que integra e língua bantu, utilizada no Congo e no Zaire. Aí compreendi a dificuldade em se traduzir a africana palavra que fez ter saudade da época em que eu achava ocupar primeiro lugar no campeonato vocabular. É que ilunga é “pessoa capaz de perdoar qualquer abuso na primeira vez, tolerar na segunda, mas não na terceira”.
Ainda não vencido, tentei encontrar exemplos que desmontassem a tese de que ilunga era de difícil enquadramento factual. Deixei, então, a tarefa para o meu livre pensamento de pesquisador. E por vários dias fiquei em busca. E nada! E não encontrei nada que pudesse ser enquadrado na tolerante palavra. E já estava desistindo. Até que recebi um longo WhatsApp de um amigo, em que tentava me justificar a razão pela qual, agora, não mais defende a permanência do presidente plantonista Michel Temer no comando do Poder Executivo.
– Ilunga! – explodiu em êxtase o meu pensamento. Meu amigo era o exemplo perfeito e tanto buscado para explicar o que se fala na língua bantu. Ele havia sido um dos mais apaixonados defensores do impeachment da presidenta Dilma, exímio “batedor de panelas” e que portava o amarelo em todas as suas gravatas de puro linho. Ele rompera o silêncio ensurdecedor de quem se cala, envergonhado, ao se descobrir errado, enganado e ludibriado pelo falso moralismo que dizia apenas agora saber.
Então o uso da expressão Ilunga, pois meu amigo perdoara aqueles que golpearam a democracia brasileira, não considerando grave abuso o afastamento da presidenta eleita. Depois, tolerou a Emenda Constitucional que suspendeu a Constituição Federal por vinte anos congelando investimentos em saúde e educação, aceitou a venda do petróleo, da água, dos aeroportos e das terras brasileiras para grupos estrangeiros e ainda foi permissivo diante das propostas de Reforma Previdenciária e Trabalhista. Apenas agora, quando o Brasil real se apresenta, pela terceira vez, diante do seu olhar é que não mais perdoa o governo plantonista que se apossou do seu país.
Pois bem! Reveladas as conversas presidenciais de porão, o poder das malas despachadas na corrida e sem pudor, as especulações imobiliárias da corrupção e as premiadíssimas delações dos capi de tuti capi, humildemente, meu amigo passou a exigir a renúncia do presidente que a sua voz ajudou a empossar. Ele agora integra a imensa multidão de brasileiros e brasileiras que dizem, em claro batu, que a fase do perdão acabou: – Ilunga!
E como não terei saudade da quadra temporal em que vivemos, prefiro voltar a usar a expressão portuguesa que inspira a poesia e me faz orgulhoso da língua que falo. A deixarei guardadinha na memória do tempo e servirá como uma “luva” se meu amigo tiver uma recaída e volte a tolerar. Neste dia, lembrarei a ele do seu pedaço ilógico e, citando Chico Buarque, direi que “A saudade é o pior tormento. É pior do que o esquecimento. É pior do que se entrevar”.
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