Afonso Morais, especial para o Congresso em Foco
“Impertinência”. “Demanda temerária”. “Atitude maliciosa ou, no mínimo, ingênua”. “Descabimento”. Foi assim, com essas expressões, que o desembargador Celso Ferreira, da 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, julgou o pedido de apelação do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), presidido por Carlos Arthur Nuzman, no processo em que a entidade move contra os Supermercados Guanabara há quase dois anos e localizado por levantamento do Congresso em Foco. A ação judicial pretendia vetar a veiculação da campanha publicitária “Olimpíadas Premiadas”, criada pela agência de comunicação Fullpack, contratada pela rede carioca, durante os Jogos O límpicos de Pequim, em 2008. O comercial tinha uma tocha como logomarca e apresentava os irmãos Diego e Danielle Hipólito – da seleção brasileira de ginástica olímpica – como protagonistas.
Veja o vídeo com a propaganda do supermercado:
O processo (de número 0252357-87.2008.8.19.0001) demonstra com clareza o poder absoluto que Nuzman queria ter sobre os símbolos e palavras relacionadas com os Jogos Olímpicos e até onde ele pretendia estender o domínio sobre eles. Na ação, o COB questionou o uso da palavra “Olimpíadas” na propaganda e alegou que “a utilização de qualquer desses símbolos (neste caso, a tocha) depende de prévia e expressa autorização sua (do COB)”. A defesa do supermercado argumentou que “o termo ‘Olimpíada’ integra a história da humanidade há milênios” e não retirou o comercial do ar. A entidade pedia também indenização ao supermercado no valor de R$ 25 mil. O comitê perdeu a ação em primeira instância. O COB foi condenado a pagar 10% sobre o valor da causa (R$ 2,5 mil corrigidos) referente às custas processuais e honorários advocatícios.
Em outubro de 2009, o relator da ação, Celso Ferreira, votou contra o recurso e foi acompanhado, por unanimidade, pelos magistrados. No mês seguinte, ratificou sua posição ao negar impedimento judicial apresentado pelo COB contestando a decisão anterior. Insatisfeito com o resultado, o comitê ainda tentou conseguir recurso especial para encaminhar o processo ao Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, mas também foi indeferido. Em março deste ano, o desembargador Antônio José Azevedo Pinto, terceiro vice-presidente do TJRJ, não admitiu o pleito alegando falta de razoabilidade por parte do COB e que “o exame das razões de recurso revela que o recorrente pretende, por via transversa, rever matéria de fato discutida na causa e decidida com base nas provas dos autos”. Ainda cabe um último recurso ao Comitê Olímpico Brasileiro. Enquanto recorria, Nuzman tratava também de obter no Congresso as modificações nas leis referentes à organização dos Jogos Olímpicos, como noticiou com exclusividade o Congresso em Foco.
Presidente do COB quer ser o ‘dono’ do Rio
Processo contra blog
Em outra ação Judicial, o COB tenta impedir que o advogado paulista Alberto Murray Neto utilize o termo “olímpico” como título de seu blog sobre esporte e hospedado no site da ESPN Brasil. Membro da Corte Arbitral do Esporte – instância máxima da jurisdição desportiva mundial – Murray Neto também foi membro do COB durante 12 anos (1996-2008), até entrar em confronto direto com Arthur Nuzman por discordar da política exercida pelo dirigente. O processo está em andamento, mas Nuzman também já sofreu um revés nessa ação.
Em janeiro deste ano, o Comitê Organizador Rio 2016 (CO Rio), também presidido por Nuzman, tentou tirar das prateleiras, por meio de notificação extrajudicial, o livro “Educação, Esporte e Valores Olímpicos”, da escritora e professora Katia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, alegando o uso indevido da expressão “olímpicos”. Pela forte repercussão que ganhou o caso, Nuzman declinou e se retratou à professora. Depois de três derrotas na Justiça, o cartola resolveu apelar ao Legislativo. Uma vez derrotado pela lei, confiou que teria prestígio suficiente para alterá-la e, assim, legitimar futuras causas judiciais e, principalmente, garantir os argumentos e dispositivos legais para vencê-las.
Esses episódios demonstram claramente o que poderia ocorrer em larga escala caso a sugestão de Carlos Nuzman fosse aprovada pelo Senado Federal. Como antecipou o Congresso em Foco há duas semanas, o dirigente enviou documento ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), de maneira discreta e fora dos procedimentos legislativos, para alterar duas leis federais que regulamentam a proteção aos símbolos olímpicos e assegurar direitos de exclusividade para todas as expressões diretamente relacionadas com as Olimpíadas 2016. Mas a proposta foi rejeitada – e ironizada – por unanimidade no plenário da Comissão de Educação, Cultura e Esporte da Casa.
Em caso de vitória do COB, a ação contra a rede de supermercados carioca poderia abrir um precedente arriscado para a entidade aumentar de forma exagerada a lista de restrições de termos relacionados aos Jogos Olímpicos. E até mesmo palavras prosaicas e que não têm relação direta com as Olimpíadas como “patrocinador”, “jogos”, “medalhas” e até o numeral “2016”. Mais do que isso: poderia ser necessária a aprovação de Nuzman para usar o nome da cidade do Rio de Janeiro – sob pena de responder a processo judicial por perdas e danos e concorrência desleal –, já que a palavra “Rio” também constava na lista de restrições proposta pelo COB.
Coincidência?
Pelas datas das decisões tomadas pelo TJRJ, é possível perceber a intenção de Carlos Nuzman e como ele tem agido nos bastidores. O primeiro voto contrário do relator do processo à apelação do COB foi no dia 6 de outubro de 2009. Pouco mais de um mês depois, no dia 10 de novembro, o impedimento judicial apresentado pelo COB contestando a decisão também foi recusado. Como percebeu que seria difícil convencer os magistrados, no dia 14 de dezembro, a oito dias do encerramento do ano legislativo de 2009, enviou carta ao senador Sarney com a polêmica sugestão.
Já o recurso especial pedido pelo COB foi julgado no dia 11 de março de 2010 e não foi admitido pela Terceira Vice-Presidência do TJRJ. Neste mesmo dia, o então constituído Comitê Organizador Rio 2016 – depois da conquista da sede olímpica – enviou outro ofício (550/2010) a Sarney reiterando os termos da primeira carta enviada meses antes. O documento propunha, em caráter de urgência, “alteração ao texto do Ato Olímpico Federal (Lei 12.035/09) para que seja ampliada a proteção e aprovar a alteração da Lei Pelé (Lei 9.615/98), tendo em vista que desde a eleição do Rio de Janeiro como sede olímpica de 2016, temos nos deparado com diversas ações de marketing de emboscada, assim denominada qualquer prática de empresas não patrocinadoras voltada para tirar proveito do destaque desses Jogos”.
É preciso lembrar que à época do início da ação indenizatória contra os Supermercados Guanabara, em 2008, o COB ainda não contava com o Ato Olímpico – lei federal que regula a realização dos jogos. Depois de publicado no Diário Oficial da União no dia 1º de outubro de 2009, o decreto proíbe o uso comercial de várias denominações, entre elas: “Jogos Olímpicos”, “Jogos Paraolímpicos”, “Rio 2016”, “Rio Olimpíadas” e outras.
O Ato Olímpico veda também qualquer variação relacionada a esses termos e a utilização do nome, do emblema, da bandeira, do hino, do lema, das marcas, das mascotes, da tocha e de outros símbolos relacionados aos Jogos Olímpicos do Rio. Portanto, caso a norma olímpica estivesse em vigor há dois anos, a defesa dos Supermercados Guanabara teria maior dificuldade para ganhar a causa pela utilização da tocha na campanha publicitária.
Por email, a Fullpack informou que a rede de supermercados Guanabara não tem interesse em comentar o processo movido pelo COB e que isso se trata de assunto já encerrado para a agência e para o cliente. A assessoria de imprensa do COB disse ao Congresso em Foco que o comitê não se pronunciará enquanto o processo ainda estiver em tramitação.
Estátua da Liberdade
Mesmo que já houvesse ato olímpico, a vitória do COB não estaria garantida. Basta observar o trecho do voto em que o desembargador Celso Ferreira menciona a tocha: “Não há violação tendo em vista que a apelada (Guanabara) não se utilizou da tocha olímpica em si, aquela adotada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) (…). Utilizou-se de uma tocha que nada guarda de semelhança com a tocha oficial (…). É uma criação artística independente”. E conclui: “a figura de uma tocha como elemento abstrato, tem formas únicas que ganham características subjetivas que a individualiza das demais, cada qual se valendo de proteção pelo direito da Propriedade Intelectual, como produção artística ou industrial. A argumentação reveste-se de tamanho absurdo que até a Estátua da Liberdade pode vir a ser objeto de contestação por parte do COI, pelo simples fato de ostentar uma tocha”.
Para fundamentar a ação, o COB alegou ser proprietário do direito de utilização do símbolo, da bandeira, do lema, da tocha, de expressões, da chama e do hino olímpicos para fins publicitários e que a rede de supermercados teria praticado marketing de emboscada, configurando concorrência desleal. Com isso, invocou a Carta Olímpica, o artigo 5º da Constituição Federal, o Tratado de Nairóbi, a Lei Pelé (9.615) e os artigos 124, 125 e 126 da Lei de Propriedade Industrial.
Mas Celso Ferreira refutou cada argumento. Sobre a Carta Olímpica, o relator afirmou que se trata de instrumento particular internacional, “não possuindo essência de tratado ou convenção internacional. Tal instrumento normativo não tem, portanto, força de lei”. Quanto ao Tratado de Nairóbi, o desembargador destacou que o documento protege exclusivamente os anéis olímpicos. E que, portanto, “a norma invocada não guarda pertinência com a demanda”, pois o COB cita na ação apenas a tocha e a expressão “Olimpíadas Premiadas”.
Nesse último item o magistrado identifica o que chamou de “um viés de temeridade”. Afirma que o comitê, ao mencionar símbolo olímpico e invocar o Tratado de Nairóbi, tenta fazer crer que a tocha é o mesmo símbolo protegido pelo contrato internacional. “É nítida a intenção do autor de induzir o julgador à conclusão de que teria havido violação a preceito legal. (…) A apelante (COB), simplesmente, recortou parte do texto do Tratado, aquele que melhor servia para lastrear sua demanda, sem deixar claro que a referência ao símbolo olímpico lá mencionado, se tratava dos anéis olímpicos. Assim agiu, por malícia ou excessiva ingenuidade”, apontou.
Segundo Celso Ferreira, também não se aplica ao caso a invocação da Lei de Propriedade Industrial. Para ele, os artigos enumerados pelo COB tratam especificamente das marcas de alto renome e notoriamente conhecidas, o que o comitê não conseguiu provar. “A autora não provou que o símbolo defendido tenha o registro de alto renome a ponto de invocar tais vias excepcionais de proteção previstas na legislação especial”, afirma. “A demanda é altamente temerária. Os argumentos apresentados pelo demandante (COB) e que fundamentam sua pretensão são infundados, chegando a tangenciar o campo da litigância de má-fé”, concluiu.
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