Principal interlocutor de Marcelo Odebrecht sobre projetos da Copa e Olimpíada, o executivo Benedito Junior encerrou a carreira de três décadas na maior construtora do Brasil quando a Polícia Federal bateu à sua porta, em fevereiro deste ano, em meio às investigações da Lava Jato. Centenas de documentos foram apreendidos com ele. Entre planilhas com repasses a políticos, há um documento que não traz cifras. No entanto, trata de um negócio bilionário envolvendo o palco principal dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro.
É uma pauta de reunião na qual a Construtora Norberto Odebrecht, a Andrade Gutierrez (AG) e a Carvalho Hosken (CH) aparecem como as empresas responsáveis pelo consórcio do Parque Olímpico da Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio. A data é 11 de fevereiro de 2011. Demoraria mais de um ano para elas serem anunciadas oficialmente como vencedoras da licitação – após disputarem sozinhas uma “concorrência” que elas mesmas conceberam. E mais: favorecendo as empresas, a prefeitura ignorou o próprio prazo para entrega de estudos de viabilidade do empreendimento, impossibilitando a participação de outras concorrentes e direcionando a licitação ao trio vencedor.
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Para Paulo Furquim, ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o documento analisado pela Pública (veja abaixo) é um indício de colaboração entre concorrentes que merece ser investigado. “Há um papel de uma empresa que antecipa o que ocorreu depois. Ele não é como uma Mãe Dináh, não está especulando sobre o futuro. Está dizendo coisas sobre o futuro como quem tem segurança do que está acontecendo”, aponta. Professor de direito econômico pela Fundação Getulio Vargas, Mario Schapiro concorda: “Há indicadores que sustentariam uma investigação em várias instâncias, como no âmbito criminal, administrativo através do Cade, de improbidade, enfim, várias investigações deveriam ser feitas com uma pergunta em comum: esta licitação foi dirigida ou não?”.
O Ministério Público do Rio de Janeiro anexou os fatos apontados pela reportagem a um inquérito em andamento sobre os contratos da Olimpíada, afirmando que “em tese, há indícios de possíveis irregularidades”.
De acordo com a pauta da reunião, era preciso “entender o ‘convênio’” entre a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ) – a “cliente” – e o Ministério dos Esportes (ME), além de “acompanhar o posicionamento” deste órgão sobre o modelo a ser adotado no empreendimento. Já em abril de 2011, enquanto o ministério avaliava a proposta da prefeitura para entrada de capital privado no negócio sob pretexto de redução de gastos, Benedito Junior e executivos da Carvalho Hosken e Andrade Gutierrez uniram-se e solicitaram formalmente autorização ao município para elaborar o estudo de viabilidade da parceria público-privada. Conhecida como PPP, essa modalidade de contratação é usada em grandes projetos e prevê, em tese, dividir benefícios, custos e riscos de um empreendimento entre o poder público e a parte privada.
Ao acatar o pedido, em maio, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, abriu a oportunidade de outros interessados apresentarem estudos de viabilidade em até oito meses, tendo assim 5 de janeiro de 2012 como prazo final. Mas o consórcio se adiantou. O trio entregou o estudo de viabilidade e a “modelagem jurídico-financeira” da PPP já no final de outubro de 2011. Logo em seguida, com base nessa proposta – desconsiderando a possibilidade de outras empresas se apresentarem nos dois meses seguintes –, a Casa Civil da prefeitura iniciou o trâmite interno da minuta do edital.
“No mínimo, isso é muito estranho. O prefeito não era obrigado a impor este prazo, mas, ao ignorá-lo depois, ele fere a segurança jurídica e uma expectativa legítima de outras empresas que viram o chamamento. Tem um claro problema aí. Não respeitar os termos definidos no ato administrativo que abriu prazo para os demais interessados é indício de desrespeito aos princípios da moralidade e impessoalidade”, analisa Marcus Bacellar. Para o professor de direito administrativo na UFRJ, o estudo apresentado pelas empresas “basicamente direciona todo o edital, pois a modalidade de concessão [PPP Administrativa] foi definida pelas empresas, a forma de remuneração também, o objeto da concessão também, e assim por diante”.
Confira a linha do tempo do caso no site da Pública
Não à toa, o edital chamou atenção dos órgãos de controle interno da prefeitura. A Controladoria-Geral do Município compilou diversos pareceres com questionamentos à parceria. Entre eles, o da Procuradoria do Município recomenda “avaliar com detalhe os pontos levantados” acerca da relação custo-benefício da PPP. São listados seis desequilíbrios potencialmente lesivos aos cofres públicos na proposta – entre eles, despesas com as remoções, custos cartoriais, gastos de regularização imobiliária e benefícios da concessionária omitidos dos cálculos da proposta.
Na mesma linha, a Secretaria Municipal de Fazenda enumerou quatro despesas assumidas pela prefeitura do Rio que não foram listadas e pediu maior “detalhamento de mecanismos para o pagamento a favor do município nos casos de reequilíbrio econômico financeiro”. Isso porque a prefeitura estava prestes a assumir gastos difíceis de quantificar previamente, como as desapropriações e indenizações na Vila Autódromo. O estudo de viabilidade das empreiteiras considerava a remoção da comunidade, que se tornou símbolo de resistência às remoções, como “fundamental para o desenvolvimento do projeto”.
Os alertas não bastaram. Após ter recebido as solicitações para uma revisão na parceria proposta, Eduardo Paes publicou o edital da PPP mesmo assim. “Os órgãos municipais já apontavam que a proposta adotada por Paes beneficiava muito mais a parte privada que a própria prefeitura. Mesmo assim, o processo administrativo interno da prefeitura passou por cima dessas recomendações. No fim, o Conselho Gestor de PPPs e o Tribunal de Contas do Município (TCM) decidiram pela necessidade urgente de aprovação do processo licitatório”, explica Mariana Medeiros, advogada e mestre em Direito da Cidade com uma pesquisa sobre o Parque Olímpico.
Crônicas de uma vitória anunciada
Lançado o edital, durante o período de inscrições, o TCM reforçou a existência de “indícios de que o consórcio [Odebrecht, Andrade Gutierrez e Carvalho Hosken] que fez o estudo [de viabilidade] terá vantagem sobre os demais concorrentes”. Dito e feito. Para completar, poucos dias antes do término do prazo, a prefeitura publicou uma errata em que, entre outros ajustes, remanejou valores de obra para consultoria e tornou obrigatória a apresentação de uma carta atestando a viabilidade do negócio assinada por uma instituição financeira com patrimônio de, no mínimo, R$ 1,2 bi – o que beneficiou o trio de gigantes do ramo da construção.
Logo após o término da “concorrência”, outra mudança. Dessa vez, a prefeitura alterou o plano geral (chamado de “master plan”) do Parque Olímpico, que constava no edital e foi elaborado pela empresa Aecom ao custo de R$ 2,9 milhões para os cofres municipais. Isso favoreceu a exploração imobiliária do terreno pelas empresas. Segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI), as mudanças foram resultado de “uma consulta com as empreiteiras da PPP e são motivadas por esforços de maximizar o valor dos terrenos e as oportunidades de desenvolvimento”.
A única diferença entre a pauta de 2011 apreendida com o executivo da Odebrecht, Benedito Junior, e o resultado de 2012 é a inclusão da Carvalho Hosken também no negócio de obras e manutenção da infraestrutura do Parque, e não apenas na parte de desenvolvimento imobiliário. “São vários elementos consistentes com uma tese de algum favorecimento, como a incorporação de um ator que poderia ser complicador no processo de concorrência, uma vez que detinha ativos importantes e poderia entrar sozinho na disputa”, afirma Paulo Furquim.
Renato Cosentino, pesquisador do projeto olímpico para a Barra da Tijuca, completa: “Articulando-se com empresários locais, como o grupo Carvalho Hosken, proprietário de milhões de metros quadrados de terra na região, as grandes empreiteiras perceberam que nenhum negócio imobiliário se efetivaria ali sem acordo com eles. E, ao mesmo tempo, o projeto olímpico não se realizaria apenas com estas empresas locais”. Segundo ele, os Jogos viabilizaram uma quantidade de recursos inédita para um projeto antigo: transformar a Barra no novo “centro” do Rio.
Eduardo Paes – que começou sua carreira política com 23 anos naquela mesma região, como subprefeito da Barra e Jacarepaguá – nega qualquer irregularidade. Para ele, é natural que em uma PPP as empresas queiram “maximizar o seu lucro” e, no caso do Parque Olímpico, há até mesmo “problemas que trazem até prejuízo para o [setor] privado”, pois “havia uma projeção de crescimento do mercado de imóveis no Brasil de 3% ao ano e tem dois anos que não cresce”.
Porém, pesquisadores que acompanham o projeto ouvidos pela Pública refutam a possibilidade de qualquer prejuízo às construtoras. Com duração de 15 anos, a PPP inclui transferência de recursos para as empreiteiras em três níveis. A primeira consiste em mensalidades, que totalizam R$ 265 milhões. Há, ainda, pagamentos extras que somam R$ 250 milhões e o repasse de terras públicas avaliadas em mais de R$ 850 milhões. No local, as empreiteiras são responsáveis por realizar arruamento, iluminação pública, limpeza, sinalização, vigilância e outras obrigações outrora cumpridas pelo poder público. Depois dos Jogos, 75% das terras do Parque serão comercializadas pelas empreiteiras no mercado imobiliário. A venda dos condomínios de luxo ali construídos vai para o bolso das empreiteiras.
“Como uma PPP que está sendo integralmente remunerada pelo poder público pode causar prejuízo para a iniciativa privada? É impossível. É um ganho privado baseado em investimentos públicos em infraestrutura”, aponta Mariana. Para ela, a PPP faz a prefeitura gastar mais do que o consórcio teria direito se recebesse apenas pela execução da obra – e as empreiteiras, se beneficiarem mais que o poder público. Em suma, um excelente negócio para as empresas, um péssimo negócio para o bolso dos cariocas.
Ilha Pura: da vila dos atletas ao bairro dos reis
“Um bairro planejado, registrado como tal”; “um novo bairro, um novo destino, um novo estilo de vida”; “um bairro de alto padrão”; “o bairro do futuro”; “um bairro que nasce pronto” e com “compromisso com o bom gosto, o luxo e a sofisticação”. Os anúncios imobiliários do Condomínio Ilha Pura, na Barra da Tijuca, deixam claro que não se trata de um complexo imobiliário qualquer.
Com 823 mil metros quadrados, o novo bairro está ao lado do Parque Olímpico e das principais vias de transporte implementadas para os Jogos. Construídos e administrados pela Odebrecht Realizações (que aparece na pauta de Benedito como O’R) e a Carvalho Hosken (CH), seus condomínios possuem preço médio de quase R$ 10 mil o metro quadrado.
Ainda que renda às empresas mais de R$ 254 milhões, a hospedagem dos participantes dos Jogos na Vila dos Atletas é apenas um detalhe do empreendimento. “A Carvalho Hosken é dona de grandes porções de terras naquela região, não só do Ilha Pura e do Parque Olímpico, e o investimento público da PPP gera grande valorização nas terras do seu entorno”, analisa Mariana Medeiros. Descrevendo-o como o “dono da Barra”, a BBC publicou reportagem sobre o proprietário da Carvalho Hosken: “A Ilha Pura vai ter os Jardins do Rei. Nós vamos transformar todo mundo em rei”, anunciou Carlos Carvalho. Sobre a remoção da comunidade de Vila Autódromo, o magnata foi taxativo: “Ali tem muita área que não pode ser habitada, e tudo depende de como você organiza. Você só não consegue organizar com favela, até porque você não pode pensar em tirar um favelado de onde ele vive, do habitat dele, para que ele venha a pagar aluguel e condomínio”. E concluiu: “Você não pode ficar morando num apartamento e convivendo com índio do lado, por exemplo. Nós não temos nada contra o índio, mas tem certas coisas que não dá. Você está fedendo. O que eu vou fazer? Vou ficar perto de você?”.
O nobre negócio foi viabilizado com R$ 2,9 bilhões por meio de um empréstimo com juros preferenciais pela Caixa Econômica Federal. Além disso, a infraestrutura básica de urbanização da Vila dos Atletas será paga pela prefeitura através do PPP do Parque Olímpico.
Especialistas afirmam que isso pode ser uma forma de contornar custos obrigatórios para as empresa empreenderem na região. “De acordo com o Plano Diretor do Rio de Janeiro, para fazer um condomínio na Barra, é preciso cobrir diversos gastos em infraestrutura: trazer água, construir estação de tratamento de esgoto etc., pois lá é considerada uma área que não é prioritária para investimentos públicos. Quando a Vila dos Atletas é construída ali, a prefeitura já banca tudo isso, então muitas despesas que a empresa deveria ter já não são mais necessárias”, analisa a urbanista Giselle Tanaka.
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