Um ex-deputado federal foi denunciado pelo Ministério Público Federal por contratar um cantor sertanejo como funcionário fantasma em seu gabinete quando ainda era deputado. Raymundo Veloso (PMDB-BA) assinou a nomeação e atestou a frequência de Zenon Vaz da Silva, o Igor da dupla Igor e Breno, mas o próprio sertanejo admitiu que nunca apareceu na Câmara para trabalhar, em mais uma vertente do chamado “golpe da creche”, revelado pelo Congresso em Foco a partir de 2009. Por causa dessa contratação, o ex-parlamentar responde a processo agora por desvio de dinheiro público.
Enquanto a Câmara desembolsou R$ 65 mil, em valores atualizados, durante 15 meses para bancar os salários e benefícios para Igor, ele cantava pelos bares e boates de Taguatinga, tradicional pólo sertanejo da capital federal, que revelou artistas como Rick e Renner. Zenon e seu parceiro lançaram um disco em 2009, no qual uma das músicas, composta pelo próprio fantasma, tem o refrão “Beijou a minha boca / Beijou por quê? / Agora me encontra e finge nem me conhecer”. Ouça:
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De acordo com a acusação, o chamado “golpe da creche” foi montado por um ex-motorista do deputado Sandro Mabel (PMDB-GO). O esquema era formado por várias fraudes como contratação de fantasmas no Congresso e desvios do auxílio-creche – o que chamou a atenção dos investigadores inicialmente – e do vale-transporte.
A denúncia foi apresentada pelo Ministério Público à 10ª Vara Federal de Brasília no final de fevereiro, e agora está nas mãos do juiz Vallisney Oliveira, que vai julgar se Veloso e Igor cometeram crime de peculato. Mabel não está denunciado até porque, por ter foro privilegiado, sua participação ou não no caso só pode ser analisada pela ministra Cármen Lúcia, relatora do inquérito 3421 no Supremo Tribunal Federal.
Lá, ele é investigado por causa da contratação de um pasteleiro fantasma em seu gabinete. Mabel tem dito ser vítima de seu ex-motorista, também investigado. O deputado usa como arma laudo policial apontando falsificação de quase todas suas assinaturas.
Se condenados pela 10ª Vara, o ex-deputado Raymundo Veloso e o sertanejo Zenon “Igor” Vaz podem pegar, cada um, de dois a doze anos de prisão mais multa, pena que pode ser aumentada caso o juiz considere que houve peculato de forma continuada, como sustenta o Ministério Público.
Mas, em entrevista ao Congresso em Foco, o ex-deputado disse acreditar que o processo não terminará antes de sua morte, já que, aos 77 anos, sua saúde está debilitada. Veloso diz ser inocente, que foi mal assessorado e que tudo aconteceu porque “confia em todo mundo”. “Quando esse processo chegar ao fim, às vezes eu até já morri. Em 2013 e 2014, foi só doença, internação…”, afirmou ele à reportagem.
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Assinaturas confirmadas
De acordo com a denúncia do Ministério Público, o ex-motorista de Mabel Francisco José Feijão, o “Franzé”, e sua esposa, Abigail Pereira da Silva, ex-servidora do gabinete de Veloso, combinaram com o cantor Igor que ele seria registrado na Câmara sem precisar trabalhar. Receberia R$ 800 e um plano de saúde. O cartão do banco ficaria com a dupla, que repartiria o restante do dinheiro. Com salários, auxílio-creche e vale-transporte, o sertanejo recebia cerca de R$ 3.400 por mês em média, em valores da época apurados pelo site.
Igor foi registrado no gabinete de Veloso. A sua nomeação foi assinada pelo próprio deputado conforme laudo da Polícia Federal, segundo o procurador da República Bruno Calabrich. No papel, o suposto servidor trabalhou de fevereiro de 2008 a maio de 2009. As folhas de frequência eram assinadas por Abigail, mas, Veloso “atestava a frequência do ‘funcionário fantasma’ Zenon”, o nome civil do cantor.
Laudo de exame grafotécnico da PF confirmou serem do então deputado as assinaturas de atos que mudaram os salários de Igor. Para Calabrich, esse fato “reforça sua participação [do ex-deputado] na manutenção do vínculo ilícito”.
A denúncia ainda narra que Franzé e Abigail registraram filhos de Igor em creches das escolas particulares DNA e Criarte. Mas tudo de maneira forjada, usando recibos falsos, feitos com a ajuda de funcionárias das escolas que participavam do esquema. O objetivo era aumentar a remuneração do sertanejo fantasma e aumentar os lucros.
Nem o cantor sabia dessa parte do esquema, assim como Raymundo Veloso. Por causa disso, Calabrich pede à Justiça que Franzé e Abigail, sejam condenados por peculato e também por estelionato, crime para o qual também são acusadas duas funcionárias de escolas. A direção das instituições de ensino também não tinha conhecimento da fraude.
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“Deus vai ser por mim”
Raymundo Veloso, 77 anos, aposentou-se da política e vive em Ilhéus (BA). De lá, ele afirmou ao Congresso em Foco que sequer conhece o cantor sertanejo Igor, nem mesmo pelo nome civil Zenon Vaz da Silva. “ Nunca vi. Não conheço nem por nome”, disse ele. “Eu vou apresentar defesa. Acredito na minha inocência, na Justiça, na Justiça divina”, afirmou o ex-deputado. “Deus vai ser por mim.”
Veloso reafirmou não ter culpa alguma na contratação do fantasma. “Eu fui mal assessorado”, repetiu várias vezes. Ele preferiu não apontar se Abigail ou outras funcionárias seriam culpadas. “Sou uma pessoa que confia em todo mundo. Meu mal é esse.”
O ex-deputado disse crer que o dinheiro dos salários do sertanejo ficou com “alguém que não gosta de mim” ou com “outra pessoa” ligada a “eles”, ou seja pessoas que trabalhavam em seu gabinete.
À parte
Na ação do Ministério Público, são denunciados apenas os desvios de dinheiro referentes a salários e auxílios-creche, o chamado Programa de Assistência Pré-Escolar (PAE), do sertanejo e de outros servidores inexistentes. Os rombos no vale-transporte são apurados em outra investigação.
Nos cálculos do MPF, os desvios só com salários e PAE do sertanejo fantasma chegam a pelo menos R$ 48 mil.
Continuação desta reportagem: Cantor interpreta música de ex-deputado acusado de desvio
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