Confira trecho do discurso:
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Ontem, depois de duas horas de loas entre discurso e apartes, Sarney falou ao Congresso em Foco – que desde 2004, ano de sua fundação, acompanhou de perto a trajetória muitas vezes atribulada do senador pelo Amapá, que fez do Maranhão, desde 1955, seu fiel reduto eleitoral.
“O Congresso em Foco é um site que tem um prestígio muito grande em relação à classe política, uma vez que está sempre presente. Cobre todas as nossas atividades. Aquele episódio anual acontece no fim do ano, mas percorre todo o ano acompanhando as atividades de cada um dos parlamentares. Parabéns a todos vocês que o fazem”, disse o cacique peemedebista, referindo-se também ao Prêmio Congresso em Foco – excepcionalmente não realizado neste ano em razão das eleições gerais.
Instantes antes, Sarney havia feito uma longa explanação sobre suas vidas privada e pública – quando ressaltou o gosto pela literatura, que tem como a verdadeira vocação. Calculou em 20% o tempo dispensado à leitura em seus 86 anos. Na tribuna onde também passou tantas horas, defendeu o parlamentarismo, apontando as mazelas do presidencialismo de coalizão, e admitiu estar arrependido depois de ter retornado à vida pública, ao final de 1990, depois de comandar o país.
“Eu também tenho um arrependimento – até fazendo um mea-culpa — de que é preciso proibir que os ex-presidentes ocupem qualquer cargo público, mesmo que seja cargo eletivo. Nos Estados Unidos é assim, e eles passam a ter uma função que serve ao país. Então, eu me arrependo, acho que foi um erro que eu cometi ter voltado, depois de presidente, à vida pública. Esse arrependimento me trouxe a convicção de que isso [a proibição] é uma das coisas necessárias”, disse Sarney, que agora poderá se dedicar com exclusividade à vida de “imortal” da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Antes de ler a íntegra, assista a mais um trecho do pronunciamento, o final:
E, agora, releia algumas reportagens publicadas sobre Sarney por este site:
Sarney é o campeão de faltas não justificadas
Sarney diz ser ‘farsa’ vídeo de voto em Aécio
Sarney se defende: ‘Por que mereço punição’?
‘Sarney ilustrador’ viraliza na internet
Confira a íntegra do último discurso de Sarney no Senado:
“Sr. Presidente, Mozarildo Cavalcanti, que tenho grande prazer de ver presidindo esta sessão; Senador Anibal Diniz, a quem quero agradecer também a gentileza de ter me cedido esta precedência; Srªs e Srs. Senadores; ouvintes da TV Senado; eu quero dizer que esta é a última vez que ocupo a tribuna parlamentar, que frequentei desde 1955.
Eu sou meio supersticioso e avesso às despedidas e não gosto de dizer adeus, mas não posso fugir ao dever e sentimento da alma, de que nos falava Bérgson, de deixar, nos Anais do Senado, a natural emoção que tenho neste momento. É esta emoção me leva a dizer que não estou fazendo um discurso de despedida, mas quero dizer que a motivação de estar aqui é apenas uma palavra: a palavra de gratidão.
Ela me obriga a não seguir o meu desejo de sair como entrei aqui que foi, pálida e modestamente, na Câmara dos Deputados, com um discurso meio pequenininho sobre o fechamento da Ação Católica na Argentina.
Gratidão ao povo do Amapá, que me deu três mandatos de Senador. Gente boa, generosa, humana, trabalhadora, que vai cumprir o destino de construir – não tenho dúvida disto – um dos maiores Estados da Amazônia.
Gratidão ao povo do Maranhão, minha terra, minha paixão, onde meus olhos se abriram para o mundo.
Gratidão ao povo brasileiro, que me deu oportunidade de ser Presidente da República, de contribuir para melhorar a vida de nossa gente e de fazer a transição para a democracia — com os tempos de maior liberdade, plenos direitos civis, verdadeira cidadania. E deixei, para grande satisfação minha, uma sociedade democrática. Só Deus é testemunha do que isso me custou e das cicatrizes que, até hoje, sangram.
Governador do Maranhão em 1966, eu vejo o Estado, hoje, como o 16º PIB do Brasil, acima de Mato Grosso do Sul. Vejo o Maranhão como o segundo complexo portuário do Brasil, o do Itaqui; como o Estado que mais cresceu, 10,3%, índice chinês; com o 13º lugar na criação de empregos e grande atração de investimentos; com a segunda melhor relação dívida-receita do País, 0,41, absoluto controle de contas públicas e responsabilidade fiscal; com as despesas com saúde tendo crescido 138% diante dos 39% que cresceu o Brasil; com educação tendo crescido 75% contra 22% do Brasil; e com segurança pública tendo crescido 53% contra 16% do Brasil.
Esses números, sem dúvida, chocam, porque a nossa mídia escolhe, sempre, o Maranhão como um Estado que é exemplo para o Brasil de crescimento menor, quando, na realidade, ele está numa vanguarda bastante avançada.
A Ferrovia Norte-Sul, velho sonho, o integra ao Planalto Central.
Deixo o Amapá — que encontrei com a economia dependendo do cheque dos funcionários públicos e com a energia racionada —, com Zona de Livre Comércio consolidada e grande dinamismo mercantil. Criei a Zona Franca Verde de aproveitamento de produtos regionais; três hidrelétricas, uma já em funcionamento, a de Santo Antônio, e duas em construção, a de Caldeirão e Ferreira Gomes; o Linhão do Tucuruí, chegando até Macapá.
Essa é uma obra gigantesca que devo ressaltar que, de certo modo, nós devemos, quando era Ministra das Minas e Energia, à Presidente Dilma, que atendeu que o Linhão não passasse pela margem direita do Amazonas e, sim, pela margem esquerda, possibilitando que fosse até Macapá, onde já está energizado todo o Linhão, atravessando a selva com aquelas torres gigantescas de 235m. Esse Linhão também tem a vantagem de estar levando a fibra ótica, que vai possibilitar a banda larga.
Hoje, o Amapá, que era um Estado que racionava energia, é exportador de energia elétrica; a Usina de Santo Antônio já está exportando, ligada ao sistema elétrico nacional; a ponte sobre o Rio Oiapoque, que liga o Estado do Amapá à Guiana Francesa; iniciei a BR-156, quando era Presidente, do Oiapoque a Macapá, com quase 900km, hoje em fase final; instalei o Porto de Contêineres e promovi sua independência de Belém com a criação da Companhia Docas de Santana. Criei a Universidade Federal do Amapá; levei um Hospital da Rede Sarah; consegui a transferência das terras da União para o Estado, que não tinha terras, falha que vem da Constituição de 1988 – acho que o mesmo acontece com Roraima.
Evitei por duas vezes o fechamento do Projeto Jari, o grande Projeto Jari. E levei investidores para a área mineral do Amapá. Hoje, o Estado é vocacionado para esse ramo.
Sem ser nenhuma vez executivo no Amapá, consegui estas conquistas, além de terem passado por minhas mãos quase todos os benefícios, verbas e melhorias do funcionalismo.
Gratidão ao Senado, por sua História — poderosa História! —, responsável pela unidade nacional, cujos Anais foram objeto de longas noites de leitura e de aprendizagem com seus homens públicos, verdadeiros fundadores do País, que é uma construção do Poder Civil.
Deixo minha participação na construção e modernização dos nossos sistemas de comunicação e informática, e nas reformas administrativas que fazem da Casa exemplo de eficiência e inovação. Renovei, em vários concursos — dos mais difíceis do País —, o nosso quadro de pessoal.
Minha gratidão aos funcionários. Com eles estabeleci uma relação de empatia, admiração, carinho e orgulho de conviver. Dos mais humildes aos dos mais altos escalões.
Devo ressaltar o quanto me alegraram — porque espontâneas, simples e carinhosas — as homenagens que me foram feitas pela área de comunicação e pela Biblioteca do Senado, que posso chamar de “casa querida”, pelo seu extraordinário trabalho a favor de um grande amigo meu, o livro, e onde o Coral do Senado, também fundado aqui por mim, me comoveu, surgindo de repente entre os assistentes.
A eles agradeço do fundo do coração, repetindo o que já disse centenas de vezes: o quadro de funcionários do Senado é um dos melhores do País.
Quero agradecer também, já antecipadamente, a homenagem espontânea, até contra a minha vontade – insisti para que não fizessem –, dos funcionários da Casa, que me farão amanhã de manhã.
Gratidão a Deus, pela graça da longa vida que me deu, por meio de minha mãe e de meu pai, e das estrelas com que Ele encheu as minhas mãos.
Gratidão aos meus colegas Senadores e Senadoras pela consideração com que sempre me tratam e pelo apoio que me deram. A política tem estas virtudes: a convivência, a convergência de ideias, o nosso convívio aqui na Casa criam certa intimidade que nos liga no dia a dia e nos faz amigos.
Sempre cultivei o diálogo, a paz – é do meu temperamento –, a solução consensual e o encontro de caminhos que respeitassem os pontos de vista comuns.
Deus me poupou do sentimento do ódio e do ressentimento, da inveja e do desejo de vingança. Nunca tive inimigos e mesmo com os adversários tive sempre um convívio em que os tratei com cordialidade e amizade.
Eu também achei que deveria terminar com essas poucas palavras, não quis fazer um discurso de despedida jamais – porque, como eu disse, assistimos àquelas sessões longas de despedida, e eu não quis fazê-lo –, mas levo o fato de ser o Parlamentar mais longevo da história política do País. São 60 anos! Depois, em segundo lugar, vem o Visconde do Abaeté, com 58 anos de vida parlamentar. E aí a relação que vou fazer publicar.
Quero deixar também alguns pontos de vista que considero importantes.
A minha causa parlamentar, aquela causa que todos nós desejamos ter como principal – vamos lembrar o maior de todos os Parlamentares que tinham causa parlamentar, o Nabuco, com a causa da abolição, e, recentemente, nos meus tempos, com quem convivi aqui, o Nelson Carneiro, com a sua obsessão pela causa do divórcio –, a causa que sempre busquei aqui foi a cultura. Por ela lutei e para ela deixei alguns instrumentos.
Quando me afastei para ocupar a Vice-Presidência da República, quis sair daqui não fazendo também discursos, mas reapresentando o projeto de lei de incentivos à cultura – de que fui pioneiro no Brasil, e hoje quase toda a parte cultural é voltada para os incentivos à cultura –, que vinha de longe. Eu apresentei cinco vezes esse projeto, e, na última vez, ele tornou-se, aprovado pelo Senado, a Lei Sarney, de que tanto me orgulho.
Esperei, para relatar, a nova proposta de lei de incentivos à cultura. Infelizmente não houve tempo. Passo esta bandeira à Senadora Marta Suplicy, que tão bem conhece o assunto e tomou a iniciativa, aqui, de lutar por ele. No Ministério da Cultura, também, dedicou-se muito a ele.
Quero lhes dizer que passei muitos anos lutando pela ideia de que é importante que o Estado viabilize o investimento na atividade cultural. As consequências são individuais, pois cada obra de arte é uma criação única que, materializada, assume vida própria e exprime a essência dos sentimentos do povo. E são coletivas, pois o caminho para um país manter sua identidade, tornar-se forte, é a cultura. Não há grande nação que não tenha uma grande cultura. Uma grande potência não pode ser uma potência militar, uma potência econômica, não pode ser uma potência política, se não for uma potência cultural.
E – já assinalava, quando apresentei meu primeiro projeto em 1972 – a cultura pode ser, também, uma importantíssima fonte de renda para os países. Vejam os Estados Unidos, a Europa, a participação direta e indireta da cultura nos PNBs desses países. Assim, o incentivo à cultura tem um retorno, que não é somente material – o que o justificaria –, mas é também econômico.
Muitos outros problemas da cultura me ocuparam na minha vida política. Criei o próprio Ministério da Cultura. Mas tenho me preocupado muito, nos últimos anos, com a política do livro e da leitura. Propus, e foi aprovada a Política Nacional do Livro, e foi mandada para a Câmara dos Deputados minha proposta do Fundo Nacional Pró-Leitura. A leitura é uma das peças chaves, importantes, da formação dos jovens, do conhecimento dos adultos. É lendo que se abrem as portas, os horizontes da imaginação, a capacidade de compreender e a esperança de transformar o mundo.
Acredito que passei 20% da minha vida lendo e acredito que, realmente, tenha um grande prazer pela leitura. Não tenho outro hobbie, não tenho outra dedicação para encher o meu ócio, senão o prazer de ler.
De muitas outras coisas desejaria falar hoje.
Já lhes disse que me preocupa o problema da educação no Brasil. Recursos nós já temos. Nós já atingimos a meta que as Nações Unidas determina do que os países devem destinar para a educação.
Penso que é necessário pensar com uma visão mais voltada para o futuro, sem esquecer as lições do passado. Os objetivos do Plano Nacional de Educação são ambiciosos, tecnicamente muito fundamentados, mas não são suficientemente ambiciosos. As palavras chaves são: tecnologia e inovação. O Brasil se encontra bastante atrasado, e é essa barreira que ele tem que vencer.
Os currículos são absolutamente antiquados e precisam de uma reformulação profunda. A infinidade de matérias constitui muitos atrasos. Temos que dedicar, também, à formação de professores, centros de treinamento.
Nós íamos passar aqui uma lei, o Plano Nacional da Educação, em que havia 20 itens, mas na qual não havia o item inovação e tecnologia, que é hoje o mais importante. Em vez de se pensar em oito anos, hoje os países podem reduzir para aprender em quatro, em cinco anos. Muitos países têm currículos e caminhos dessa natureza. Mas nós estamos em um grande atraso, e é sob o ponto de vista qualitativo que eu quero, justamente, deixar umas palavras aqui em termos de futuro.
A libertação do homem se fez pela educação: ela propiciou as oportunidades e, ao mesmo tempo, os instrumentos para se descobrirem as potencialidades da humanidade. Devemos abrir os olhos para o futuro e fazer uma revolução na educação. Repito, não se pode invocar falta de recursos. Já destinamos recursos consideráveis a ela. O que tem faltado é inovação. O mais importante é aprender a estudar, aprender a aprender, criar gosto pelo conhecimento, pela descoberta cultural.
Outra coisa que eu desejo colocar como ideias aqui rapidamente é que precisamos evitar… (Pausa.)
Perdoem a emoção de estar pela última vez na tribuna… Ela faz com que nos percamos aqui.
Não adianta a idolatria pelas máquinas, colocando-se computadores nas salas de aula, lousas digitais nas escolas, se não tivermos o pessoal qualificado que, preparado, possa operá-las. As escolas não devem ser depósitos de máquinas, mas, sim, contar com elas para utilizar novas metodologias.
O ensino à distância, o uso da televisão, de que fui precursor, criando a primeira televisão didática do Brasil, em 1967, é um caminho que precisa ser mais bem aproveitado. Lembro o nível de excelência com que, no século passado, surgiram aulas como Civilização, de Kenneth Clarck, e Cosmos, de Carlos Sagan. Assisti a esses programas que equivaliam a seguir aulas inteiras de aulas convencionais.
O desafio de encontrar outras linguagens que usem de forma atraente e eficiente o imenso repertório de novas tecnologias precisa ser respondido pelos nossos educadores. De sua resposta depende o nosso futuro.
Não podemos perder a visão do futuro. Estamos no mundo da ciência e da tecnologia. O Brasil está atrasado. Nossas últimas descobertas de ponta foram do tempo em que ocupei a Presidência da República: enriquecimento de urânio, fibra ótica, fabricação de satélites, semicondutores… Nossos avanços hoje ficam por conta da agroindústria.
A falta de reforma administrativa é responsável, em grande parte, por nosso emperramento.
Outro tema de que tenho tratado repetidamente nestes quase sessenta anos que se passaram desde que cheguei ao Parlamento é o da reforma política.
Já denunciei à exaustão que o nosso sistema eleitoral apodreceu. Já tentei de todas as maneiras despertar o Congresso Nacional para a necessidade de mudanças profundas. O voto proporcional uninominal é o pior sistema eleitoral possível. Com ele não há saída. Eu, pessoalmente, há muito defendo o voto distrital: metade majoritário; metade lista fechada.
Precisamos acabar com esse voto uninominal, proporcional, que só existe no Brasil. Ele é uma reminiscência do século XIX; uma reminiscência que vem das ideias lançadas por Assis Brasil. Este voto uninominal constitui um grande atraso político.
O Brasil avançou no terreno econômico, avançou no terreno cultural, avançou em todas as outras áreas. Ele avançou muito na área social, e, na área política, nós regredimos. E é esse o grande entrave que o País sofre até hoje. Então, chegou-se a um ponto em que não podemos tolerar mais esse impasse. Ah, mau Deus, não podemos tolerar mais o sistema político brasileiro, que é responsável por todo o resto do que acontece no nosso País.
Precisamos evitar a proliferação de partidos, que hoje constituem verdadeiros registros eleitorais que só servem para negociações materiais. A maioria deles é dirigida por comissões provisórias, maneira encontrada para criar feudos pessoais. Oitenta por cento dos partidos, no Brasil, são dirigidos por comissões provisórias. Quer dizer, são dez ou onze pessoas que decidem em nome do partido, em nome de tudo, tomam decisões, decretam intervenção nos Estados, enfim, fazem com que seja um cartório, não seja verdadeiramente um partido. E por quê? Porque é muito mais vantajoso dez mandarem tomar conta do que terem atividade realmente partidária.
É preciso estabelecer obrigatoriedade de que se pratique democracia interna, de que os partidos existam, para que possamos, inclusive, fazer o voto misto. Porque, se a lista partidária que elege o voto misto for feita apenas pela comissão executiva que dirige o partido, ela não é uma lista legítima; ela passa a ser uma lista ilegítima, que vai escolher apenas as pessoas que estão ali, no partido, quando, na realidade, precisa-se da democracia interna.
As convenções devem escolher aqueles que participam da vida partidária, aqueles que, diariamente, lutam para que se possam criar lideranças. Acabaram as lideranças, no Brasil. Talvez o pior que a revolução tenha feito, no Brasil, tenha sido acabar com os partidos políticos.
O financiamento também das campanhas tem de ser resolvido de maneira que não haja cooptação de vontades. É preciso ter regras claras para doações de empresas privadas; estabelecer-se um teto.
Estabeleceu-se também uma promiscuidade entre cargos, empresas e setores da Administração que apodreceu o sistema em vigor. A solução desse problema não pode ser abordada tímida e isoladamente, mas deve ser feita em conjunto com a do sistema partidário.
Precisamos levar a sério o problema da reeleição, que precisa acabar, estabelecendo-se um mandato maior. Tocqueville, que escreveu o célebre tratado sobre a democracia americana, condena uma única coisa na democracia americana: a reeleição.
Eu confesso que sou partidário – desde quando votamos aqui – de que não tivéssemos a reeleição, mas também sou crente de que o mandato de quatro anos é muito pequeno; nós devemos ampliá-lo para cinco ou talvez até para seis anos, e devemos evitar a reeleição.
No tratado de Tocqueville, há apenas duas páginas condenando a reeleição, nas quais ele diz que a pior coisa da reeleição é que o Presidente já entra pensando na reeleição; então, todo o tempo, tudo o que ele faz, é pensando na reeleição, e, quase sempre, o que acumula do primeiro mandato repercute em um segundo mandato, que passa a ser, muitas das vezes, pior do que o primeiro.
Eu também tenho um arrependimento – até fazendo um mea-culpa — de que é preciso proibir que os ex-Presidentes ocupem qualquer cargo público, mesmo que seja cargo eletivo. Nos Estados Unidos é assim, e eles passam a ter uma função que serve ao país. Então, eu me arrependo, acho que foi um erro que eu cometi ter voltado, depois de Presidente, à vida pública. Esse arrependimento me trouxe a convicção de que isso é uma das coisas necessárias.
Já expressei minha convicção de que precisamos caminhar a passos mais largos para o Parlamentarismo. O Parlamentarismo é uma forma mais alta; nas crises que a democracia sempre tem, cai o Governo, mas não se cria a crise institucional de cair o Presidente. Apresentei aqui uma proposta para que caminhássemos para o parlamentarismo por etapas, começando com a introdução do ministro chefe do governo e terminando com a forma clássica do voto de confiança e a possibilidade de dissolução do Parlamento. O exemplo de como essa caminhada foi possível no Império é útil, mas eles levaram um tempo grande nessa transformação, do qual nós não dispomos mais.
A Presidente Dilma marcará a história do Brasil se fizer essa mudança de regime no País.
Ainda no espaço da reforma política, temos de ter a coragem de acabar com as medidas provisórias. Elas deformam o regime democrático: o Executivo legisla e o Parlamento fica no discurso. As leis são da pior qualidade, e as MPs recebem penduricalhos que nada têm a ver com elas, para possibilitar negociações feitas por pequenos grupos a serviço de lobistas. Se tivermos o parlamentarismo, elas não serão necessárias, pois o Congresso passará a agir com maiorias estáveis, unidas, que efetivamente governarão o País.
Passo adiante. Estamos no final da tramitação do novo Código de Penal, que provoquei com a criação de uma comissão de juristas, como fiz também com outros códigos. Tenho denunciado a violência no Brasil e proposto algumas medidas para ajudar a combatê-las. Estou convencido de que o aumento de homicídios está diretamente relacionado com a Lei Fleury e com o excesso de possibilidade de defender-se estando solto. Há uma coisa no Brasil que é terrível: o criminoso de homicídio pode se defender estando solto. Critico também a suavidade das penas por homicídio, que ainda não é crime hediondo. Muitos são os crimes hediondos, mas tirar a vida – e o bem maior que Deus nos deu é a graça da vida – não é crime hediondo no Brasil. Eu solicitei, na última votação que houve aqui, que se considerasse o homicídio crime hediondo. O resultado é que nós temos a maior quantidade de homicídios do mundo.
Mas também há outra coisa a que assistimos todo dia: a condenação. Uma pessoa pode cometer vários crimes – vemos na mídia pessoas condenadas a 70 anos ou a mais de cem anos –, mas o Código Penal manda que as penas sejam consideradas em conjunto e reduzidas a trinta anos de prisão. E, nesses 30 anos, há a progressão, com a qual, na realidade, cumprem-se cinco anos. Isso é demais quando se trata da vida humana!
Temos o maior número absoluto de homicídios do mundo, que continua crescendo. O último número, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, para 2013, é 53.646 assassinatos. Nosso índice por 100 mil mortes é de 27, muito acima dos de nossos vizinhos, mais acima ainda do que os de países como China, Japão, Inglaterra, França…
Ainda existem, no Brasil, 80 mil inquéritos policiais sobre crimes de homicídio não concluídos, nas metas de solução daqueles abertos até 2007 e 2008. A elucidação dos homicídios — é oficial — é da ordem de 5%.
Outro caso que também é terrível é que não tenha o País compreendido até hoje como é que uma pessoa possa votar aos 15 anos e possa matar até os 18 anos. Cria-se uma escola de crime. Outro dia, vi um menino que tinha sido morto, e o outro foi preso e disse, como as televisões registraram: “Eu conheço os meus direitos.” Quer dizer, qual é o direito dele? O direito de matar, de matar até os 18 anos. Isso cria uma escola do crime, cria a consciência da falta de respeito pela vida humana, cria uma cultura que vem das crianças que são criadas com essa cultura de que eles têm essa irresponsabilidade. Esse é um problema que também deve ser pensado e deve ser colocado entre aqueles que determinam a violência, que, no Brasil, avança cada dia mais.
Há as drogas, o problema das drogas. Cada vez mais, elas devem ser encaradas como prioridade, pois são responsáveis por essa violência que existe e que atinge todos nós.
Não há nada pior do que se tirar a vida de uma pessoa. É o fim de tudo, de todas as esperanças, do presente e do futuro. E os assassinos confessos passam livres diante dos familiares das vítimas.
Há anos está parada na Câmara dos Deputados uma proposta minha, aprovada pelo Senado: regulamentação do artigo 245 da Constituição e criação do Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Violência. Os criminosos têm seus direitos declarados em muitos artigos da Constituição; as vítimas, só num. Os criminosos recebem apoio financeiro do Estado, o auxílio-reclusão previsto no artigo 201, cujo valor mínimo é, atualmente, de 724 reais. As vítimas, nada. Repito, nada, nenhum apoio, financeiro ou de outra natureza. São pessoas que sofreram ou que perderam a vida, que desapareceram, que tiveram seu destino cortado, o que se estende a famílias inteiras.
Hobbes já dizia que o que justifica o Estado é o medo da morte, é a possibilidade de as pessoas se reunirem para resistir à morte. Pois o Estado brasileiro não tem defendido as pessoas da morte e ainda por cima não apoia a família dos assassinados.
E eu aqui me dirijo às Senhoras Deputadas e aos Senhores Deputados, pedindo que não deixem que se cometa essa injustiça, não comigo, mas com a multidão das vítimas de violência.
Aprendi muito cedo a me preocupar com as causas sociais, recusando o marxismo, que seduzia pelo sonho belo e generoso da igualdade entre os homens. Sempre batalhei por uma sociedade mais justa. Jovem líder da UDN, promovi no Partido um grupo renovador que Carlos Castello Branco chamou de Bossa Nova, cujo lema, frente ao desenvolvimento de Juscelino – o lema de Juscelino era só “Desenvolvimento” –, era “Desenvolvimento com Justiça Social”, como acrescentei.
Presidente da República, adotei o lema “Tudo pelo Social”: Programa do Leite, Seguro Desemprego, Vale Transporte, Vale Refeição, Universalização da Saúde e Farmácia Básica.
Mas me orgulho especialmente de um projeto que eu apresentei aqui em 1996, aprovado muito rapidamente, que teve repercussões mundo afora, o da distribuição gratuita de medicamentos contra a AIDS. Assim que eu soube da comunicação dos cientistas que se reuniam em Vancouver de que o coquetel de medicamentos salvaria a vida dos contaminados com o vírus e dos portadores da Síndrome da Imunodeficiência, apresentei o projeto. Eu estava na Presidência, desci da Presidência e, nesse mesmo dia, apresentei esse projeto aqui. No Executivo, propuseram que ele fosse vetado. Fui ao Presidente Fernando Henrique, dizendo-lhe que eu não podia, como Presidente do Congresso, aceitar que isso ocorresse. Ele foi sensível à proposta e sancionou a lei. E ela foi replicada em muitos países e, aqui e lá, tem salvado muitas vidas.
Um repórter do The New York Times, que fez uma grande reportagem sobre essa solução, que, no mundo inteiro, estava sendo adotada, perguntou-me quais eram os grupos políticos de pressão que me tinham feito apresentar essa causa, esse projeto, que, no mundo inteiro, tinha solucionado ou pelo menos detido o avanço da AIDS. Eu respondi: foi o intelectual. A AIDS sempre me preocupou porque é uma doença que alia o amor à morte. Então, ela sempre me preocupou. Eu disse a ele: ninguém, eu não fui pressionado por ninguém, eu apenas o apresentei porque, como intelectual, eu achava que tínhamos de sempre combater essa doença, por esse fato fundamental, porque isso representava a própria existência da humanidade, a própria reprodução humana.
Pois bem, hoje, considero que, tendo feito isso, contribuí também, de certo modo, não somente para o povo brasileiro, para o povo do meu Estado, mas também um pouquinho para a humanidade no encontro de uma solução que tem melhorado muito o problema no mundo inteiro.
Muitos outros que vieram depois de mim, como ministros da Saúde, ampliaram isso, tornaram possível que os remédios fossem multiplicados, derrubaram patentes. Mas a ideia fundamental era aquela de que, na realidade, nós tínhamos de atender a população dessa maneira.
Os chineses dizem uma coisa muito certa, é um provérbio que eu já repeti aqui algumas vezes: “Quando vamos beber água em um poço, devemos nos lembrar de quem abriu o poço.” Eu sinto que abri um pouquinho esse poço que faz tão bem hoje para a humanidade.
Bati-me pela causa dos negros. Passados 15 anos, a proposta de cotas para acesso à universidade e ao serviço público que apresentei se tornou realidade. Outro dia, a Presidente mandou um projeto que foi aprovado, mas já existia um projeto meu aqui, que, há 15 anos, estava tramitando nesta Casa.
Apresentei o primeiro Estatuto da Pequena Empresa. Essas empresas são hoje uma das grandes impulsionadoras do projeto nacional. Defendi uma ideia que vi na China, ainda no tempo de Deng Xiaoping, quando visitei as Zonas de Exportação. Criei-as quando Presidente.
Propus aqui o Estatuto das Estatais. Se ele tivesse sido feito, nós não teríamos esse problema que hoje estamos tendo, que estamos lamentando e que, de certo modo, está envergonhando o Brasil, que é o problema da Petrobras. Propus aqui o Estatuto das Estatais, regulamentando os §§1º e 3º do art. 173 da Constituição. O projeto trazia algumas inovações. Primeiro, as empresas públicas passariam a adotar o regime da sociedade anônima de capital fechado, o qual exige a instituição do Conselho Fiscal, o cumprimento de normas contábeis rígidas e também o controle do Tribunal de Contas e outros.
Eu o reapresentei, deixando como última presença minha no Legislativo brasileiro, no Senado, esse projeto, que é o Estatuto das Empresas Estatais. Com ele feito, nós não teremos a repetição que estamos vendo dessas coisas que têm acontecido nas estatais.
Srªs Senadoras e Srs. Senadores, não quero deixar a tribuna com uma expressão de pessimismo. O País é outro: diminuiu muito a pobreza, aumentou a classe média, criamos recursos humanos, somos a 6ª economia do mundo. “O século XXI será também do Brasil”. Deng Xiaoping me afirmou isso.
Eu estava com o Presidente – antigamente era o Secretário-Geral —, na China. Comecei a conversar com ele e, no meio da conversa, eu lhe disse que o século XXI seria o século da China. Também disse a ele que o século XXI também seria o século da América Latina. Por quê? Porque nós tínhamos os anos dourados da Europa, os anos dourados da América, e a Ásia e a América do Sul eram as únicas partes do mundo que ainda não haviam tido o grande desenvolvimento mundial. Pois bem, quando eu disse isso, ele disse: “Mas falar da América do Sul é falar do Brasil. E o século XXI também será o século do Brasil.”
Avançamos nas áreas social e econômica, mas a democracia não se aprofundou como nós desejávamos. Avançou o corporativismo anárquico, beneficiando ilhas de interesses, gerando uma divisão no País que aflorou nas eleições.
Tenhamos coragem de enfrentar a solução do problema. O tempo acabou.
A Justiça também tem responsabilidade sobre o Estado. É o Poder moderador. Entregamos ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição. É a maior confiança e delegação dada pelo povo a um Poder. Ele não pode deixar que se judicialize a política e nem que seja feita a politização da Justiça. Não foi a outro Poder dada essa delegação. O Supremo Tribunal Federal deve usar essa responsabilidade. Sem Justiça não poder haver democracia.
A Justiça não pode ser o Estado espetáculo. Ela é quem decide sobre a nossa liberdade, sobre o nosso patrimônio, sobre os nossos direitos individuais, sobre os nossos direitos coletivos e sobre os direitos humanos. Essa responsabilidade é quase responsabilidade de deuses. Ela só tem uma limitação: a lei e o direito.
Tenho apreensões. O País está dividido, e cresce uma coisa nova na política que, durante esses 60 anos, eu nunca tinha visto: o ódio.
Esse não é da tradição brasileira. Vamos conjurá-lo. É hora de conciliar o País. Depois das eleições, tenho visto aqui dentro, em algumas sessões, uma manifestação exacerbada, e a política não deve ser uma guerra. A política é uma luta democrática.
Lenin sustentava a ideia de que a política deveria ser uma guerra: “Devíamos exterminar os inimigos. Devíamos matá-los, acabar com eles, para que não fique ninguém.” A ideologia determinava assim. Felizmente, esse período acabou. Nós não devemos considerar a política uma guerra. Passadas as eleições, nós devemos fazer com que o País siga o seu caminho, buscando um terreno comum, que é o terreno da conciliação, o terreno do bem público, que atinge todos os Partidos.
É uma exortação que eu faço a todos.
Vamos limpá-lo das práticas, dos malfeitos e dos maus administradores, irresponsáveis. Para isso, mais eficaz que a punição é a profilaxia: leis, controles, formação de pessoal e valores. Leis que evitem, em vez de, depois, terem que corrigir após custos imensos.
Exemplo: se tivéssemos feito o Estatuto das Estatais, projeto de minha autoria, morto na Câmara, esse problema da Petrobrás não teria acontecido. Não se pode raciocinar que o livre arbítrio de algumas pessoas tenha levado a tantos desmandos.
As estatais precisam de outra estrutura, acompanhamento e controle.
Mas a economia é transitória. As instituições são o permanentes. A democracia representativa está em crise. Marchamos, com a ajuda da ciência e da tecnologia da informação, para a democracia direta. Até lá é preciso tempo.
O mundo continuará melhorando, e o homem chegará à felicidade. Um pensador teria dito que a política é inimiga da felicidade. Mudemos essa equação. É preciso ter fé, acreditar em Deus, voltar a ter utopias, sonhar.
Quero terminar estas minhas palavras invocando as raízes da minha terra, e vou buscar nos folguedos populares do Maranhão, do Bumba Meu Boi, a minha toada de despedida no raiar do dia:
“O céu é o reinado das estrelas,
onde a lua faz sua morada,
e o orvalho é a lágrima da noite,
que chora pela madrugada.
Adeus, eu já vou-me embora.
É chegada a hora de me despedir.
Assim como o dia se despede da noite,eu me despeço de ti!”
Deixo no Senado uma palavra: gratidão. Saio feliz, sem nenhum ressentimento. Ai, meu Senado, tenho saudades do futuro!
Muito obrigado.”