Em 2008, o então deputado petista Antonio Palocci não previa o turbilhão que o acometeria anos depois. Na atual legislatura, em junho 2011, o ex-ministro seria demitido do posto de ministro-chefe da Casa Civil do governo Dilma, sob a acusação de tráfico de influência – com ares de escândalo, esse e outros episódios da trajetória do médico-cirurgião de 53 anos, ministro da Fazenda no governo Lula, seriam tempero saboroso para biógrafos. Com a aprovação do projeto na CCJ, teria de aceitar a publicação de um material sobre si em quaisquer termos – e, caso discordasse de algum deles, que recorresse aos direitos de reparação previstos no Código Civil.
Deputados rejeitam intervenção em biografias
O que motivou Palocci a apresentar o projeto foi o caso da biografia não autorizada sobre Roberto Carlos – Roberto Carlos em detalhes (2006), de Paulo Cesar de Araújo –, que resultou em recolhimento, em maio de 2007, de 11 mil exemplares. A primeira edição, de 30 mil livros, foi rapidamente esgotada. Sob protestos do biógrafo, um acordo foi feito em 2007 entre o “Rei”, que abriu mão de indenização, e a editora, que se comprometeu a interromper a publicação. Paulo Cesar ainda recorreu à Justiça, mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve, em decisão de março de 2009, a proibição e venda do livro.
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Biógrafo de Garrincha, Ruy Castro teve a publicação de sua obra Estrela solitária – Um brasileiro chamado Garrincha, publicada em 1995, contestada pelos herdeiros do ex-jogador, que conseguiram indenizações na Justiça. Ao Congresso em Foco, ele disse que, se a CCJ acatasse a sugestão de interferência prévia, o Congresso ficaria marcado como “o mais cretino de toda a história do Brasil”. “Um deputado que propõe isso não merece o mandato que tem”, resumiu o escritor, que recebeu o Prêmio Jabuti de melhor ensaio e biografia em 1996.
Também autor de O anjo pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues (1992), biografia sobre o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, Ruy Castro reclamou da postura de deputados que manifestaram contrariedade à determinação de liberdade irrestrita para biografia de personalidades. Para ele, a hipótese de leitura prévia pelo biografado, que acabou não vingando, seria “um retrocesso”.
Trauma financeiro
Já para a jornalista Eliane Cantanhêde, autora da biografia José Alencar – Amor à vida (2011), sobre o vice-presidente da República do governo Lula, “quem não deve, não teme”. Em outras palavras, não pode pedir para mexer no texto alheio. “As editoras estão muito traumatizadas, porque o prejuízo é imenso – para fazer uma biografia, gasta-se rios de dinheiro, há toda uma produção. Eu viajei muito, conversei com um monte de gente. Há também a impressão [gráfica]. E depois [a publicação da obra] é embargada porque alguém não gostou do milésimo quinto parágrafo”, declarou à reportagem Eliane, colunista do jornal Folha de S.Paulo.
Ela lembra ter feito um acordo com a editora, que consistiu em conversar com Alencar antes de publicar o livro. “Eu tive muita sorte, porque ele era um homem de muito caráter, e combinou comigo o seguinte: ele leria antes, mas com a condição de não interferir no conteúdo. Ele só poderia interferir em informações factuais que, eventualmente, estivessem erradas – por exemplo, uma data, um nome, uma história que eu tivesse citado erroneamente”, acrescentou Eliane. “Ele cumpriu rigorosamente o combinado, mas era uma pessoa particular. Acho que a lei deve ser irrestrita, porque nem todos são como José Alencar, nem todos têm a boa fé que ele teve.”
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Marcos Wachowicz disse à reportagem que o Brasil ainda é muito atrasado em termos de liberdade de expressão. “Na Europa e em países como Estados Unidos, os biógrafos possuem absoluta liberdade de escrita. Agora, acompanha a absoluta liberdade de escrita a responsabilidade pelos fatos que narram sobre o biografado”, lembrou o acadêmico, para quem a interferência prévia de biografados se assemelharia ao processo das biografias autorizadas.
Coordenador do Grupo de Estudos de Direito Autoral da Universidade Federal de Santa Catarina, Marcos aponta o caráter de obra literária das biografias, em que a liberdade de criação do autor está em jogo. Para o acadêmico, a possibilidade de intervenção por parte do biografado “não seria nem uma censura prévia”, e sim desrespeito pela produção intelectual. “Seria uma censura de criação, um literal retrocesso. A biografia é uma obra literária que apresenta, como todas as obras, conteúdo de expressão estética”, explicou.
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