Por Anna Beatriz Anjos, da Agência Pública
Doze anos depois da morte de Dorothy Stang, a região de Anapu, no Pará, continua imersa em conflitos por terra. A missionária norte-americana foi assassinada quando defendia o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança – e o modelo de assentamento de reforma agrária com aproveitamento econômico das riquezas oferecidas pela floresta – que permanece preservada. Hoje, diante da inércia do Incra, gestor dos assentamentos, outro PDS do município, conhecido como Virola-Jatobá, sofre com invasões e ameaças, como denuncia nessa entrevista o engenheiro agrônomo e antropólogo Roberto Porro, pesquisador Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que desde 2014 trabalha com os agricultores desse PDS.
No dia 15 de novembro, segundo Porro, cerca de duzentas pessoas entraram na reserva legal do PDS demarcando lotes para a retirada de madeira e posterior abertura de pastagens. “[Ele vieram] A partir da afirmação de que haveria ali terras a serem distribuídas a quem quisesse se estabelecer por lá”, explica. Ainda de acordo com ele, as famílias que vivem legalmente no local estão sob ameaça e enfrentando dificuldades para desenvolver as práticas de manejo florestal comunitário que mantêm desde 2006. “É uma situação de completo terror”, diz Porro.
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Porro também critica a “omissão” do Estado, sobretudo do Incra. “O grande problema tem sido, principalmente a partir de 2015, a falta de uma gestão efetiva por parte do Incra, inclusive relacionada a essa questão da ocupação.”
Como surgiu o PDS Virola-Jatobá?
O movimento social em Anapu no final da década de 1990 era muito forte e organizado a partir do trabalho da CPT [Comissão Pastoral da Terra], da Irmã Dorothy [Stang, assassinada em 2005 a mando de fazendeiros da região]. Ali, naquela região, a CPT e outros movimentos sociais identificaram uma grande quantidade de terras que se enquadravam naquilo que era chamado de CAPP – contratos de alienação de terras públicas.
Nas décadas de 1970 e 80, o governo havia cedido essas terras para investidores e produtores que recebiam 3 mil hectares sob certas condições: por exemplo, após cinco anos, essa terra deveria estar produtiva – isso, inclusive, é um tema controverso, porque o próprio governo associava produtividade a desmatamento. Caso essas pessoas não cumprissem com as cláusulas desse contrato, essa terra deveria voltar para a União.
Ali na região, dezenas desses lotes foram entregues, mas poucos efetivamente foram utilizados, tinha muita especulação. O trabalho da CPT foi no sentido de que essas terras fossem devolvidas à União e transformadas em algo que revertesse benefício para famílias em busca de terra – já havia ali um contingente de famílias buscando acesso à terra. No final, em negociações entre a CPT e o governo chegou-se à conclusão de que essa modalidade seria o PDS.
Em 2002, foram então criados dois PDSs em Anapu: o I e II, que se chamou depois de PDS Esperança [onde morreu Dorothy], na parte sul do município, e na parte norte, na chamada gleba Belo Monte, o PDS III e IV, duas áreas descontínuas que se convencionou chamar de PDS Virola-Jatobá e que somam 39.385 hectares. No total, são 161 lotes onde vivem famílias de assentados, mas é importante mencionar que, há pelo menos dez anos, existem lá por volta de 50 a 60 famílias que nunca foram assentadas pelo Incra e não aceitam a modalidade PDS, contestam toda a sua questão ambiental diferenciada, e o Incra nunca conseguiu agir no sentido de fazê-las aceitar essa modalidade ou removê-las. São pessoas que infelizmente têm causado desmatamento na reserva legal.
O Incra é o órgão gestor do PDS. O grande problema tem sido, principalmente a partir de 2015, a falta de uma gestão efetiva por parte do Incra, inclusive relacionada a essa questão da ocupação. Infelizmente, sempre houve uma mobilidade muito grande de famílias no PDS; muitas famílias saem depois de se deparar com esse isolamento, com essa falta de ação do Estado. Nossa pesquisa chegou a um número de mais de 600 famílias que passaram por esses 161 lotes nesses 15 anos e isso tem se agravado nos últimos três em função do Incra ter perdido qualquer controle.
Até 2014, havia maior rigidez de critérios para a entrada de famílias do PDS, mas, de lá para cá, isso deixou de acontecer e há realmente uma falta de governança. Há pessoas entrando sem conhecimento das regras ambientais e com o objetivo explícito de transformar a floresta em áreas de pastagens, numa dimensão muito maior do que o permitido pelas normas do PDS. O Incra, que deveria estar fazendo essa revisão ocupacional e controlando mais os critérios de entrada, não tem feito isso.
Quais são os critérios de entrada que não estão sendo respeitados?
Toda família precisa se cadastrar no Incra para ter direito a um lote de reforma agrária. Inclusive, a comercialização dessas terras não é permitida. O processo de acesso à terra via reforma agrária indica que é necessário esse cadastro, e aí o próprio órgão estabelece critérios de força de trabalho, econômicos etc. E, além desses critérios gerais para assentamentos, no caso do PDS existe a concordância com a modalidade.
É importante notar que, diferente dos assentamentos, onde há a expectativa de receber um título individual da terra, no PDS não há essa característica; as famílias que estão no PDS recebem contratos de concessão de direito de uso – que, inclusive, somente agora, após quinze anos da criação do assentamento, começam a ser entregues – nos quais há cláusulas que delimitam a forma de uso da terra.
Elas recebem os chamados lotes de uso alternativo: 20 hectares para que cada família possa trabalhar na agricultura (o restante da área é uma reserva legal coletiva). O plano de utilização do PDS define, por exemplo, que os assentados não podem desmatar mais de 3 hectares por ano para agricultura. As famílias que estão entrando no PDS ignoram tudo isso, simplesmente praticam o comércio, adquirindo as terras de quem sai à revelia do Incra e da associação local que existe desde 2004 [Associação Virola-Jatobá, AVJ]. Então, cria-se um potencial de conflito muito grande.
Como funciona o manejo florestal? Qual a importância dele para a preservação da floresta amazônica?
O manejo florestal comunitário tem uma importância muito grande exatamente por conta dessas restrições impostas pelo PDS e outros projetos ambientalmente diferenciados que impedem uma agricultura mais intensiva. O projeto de desenvolvimento sustentável inclui a possibilidade de geração de renda a partir do manejo da floresta, mas com a preocupação do baixo impacto através de técnicas que extraem pequenas quantidades de árvores da floresta como um todo.
Para citar um exemplo, as normas do manejo florestal sustentável limitam [a retirada de madeira] a no máximo 30 metros cúbicos de madeira por hectare, o que equivale a três, quatro, cinco árvores. A intenção é que essa madeira proveniente da floresta possa trazer renda financeira para as famílias, mas isso precisa ser feito com base em um plano que conte com licenciamento ambiental. A associação local é a detentora do plano de manejo – um plano de manejo, para ser aprovado, precisa ser protocolado na secretaria estadual de meio ambiente e encaminhado por um produtor ou uma organização.
Quais são as principais ameaças à existência do PDS Virola-Jatobá?
O PDS ocupa uma área muito extensa, são quase 40 mil hectares, então existe uma dificuldade grande de controle, de vigilância. A ameaça é de grileiros – alguns, inclusive, são proprietários de lotes grandes próximos ao PDS e têm a ambição de ocupar essas terras. Já são mais de 300 hectares desmatados a partir desses grileiros que têm o interesse financeiro de comercializar terras.
Eles vão entrando e repassando os lotes a pessoas que vêm de regiões distantes, não conhecem [o PDS] e promovem o desmatamento. Desde o começo de 2016 há denúncias sobre isso, no ano passado o Incra autuou alguns deles, mas infelizmente não houve continuidade no trabalho. O fato é que existem muitas entradas de terceiros desmatando e se apossando de terras nessas áreas mais distantes do PDS.
Outra situação é o processo de regularidade ambiental, que o próprio Estado defende muito – o Cadastro Ambiental Rural [CAR] –, mecanismo que visa à redução do desmatamento mas que, nessa região, tem sido usado para legitimar a usurpação de áreas públicas, de floresta. É evidente o registro de terras que são florestas da União em áreas vizinhas ao PDS por pessoas que praticam desmatamento e tiram madeira ilegal. Ou seja, há a integração de interesses de madeireiros ilegais e especuladores de terra.
Há ainda uma terceira situação que, como mencionei, vem ocorrendo há anos, que são pessoas comprando lotes do PDS e afrontando as normas do assentamento ambientalmente diferenciado. Essa entrada descontrolada cria uma tensão muito forte e, com a ausência completa do Estado, esse grupo vai se fortalecendo – esse fortalecimento chegou, inclusive, a consolidar uma segunda associação dentro do PDS. Esse grupo tem, em sua maioria, ocupantes ilegais que não estão oficialmente assentados pelo Incra e acaba sendo uma fonte de ameaças. Isso culminou agora na ocupação massiva de terras que aconteceu na semana passada. São pessoas abertamente contra o projeto de manejo, que consideram que ele é negativo para seu foco – o desmatamento e uso da terra para pastagens.
Qual é a situação do PDS Virola-Jatobá hoje?
Já há algumas semanas, desde o final de setembro, haviam boatos de que haveria ocupações na área da reserva legal do PDS, de que famílias invadiriam a área do plano de manejo. Isso não se concretizou e em outubro já havia sido feita uma denúncia sobre a situação por parte da associação ao Incra. Isso veio se consolidar a partir de 15 de novembro, quando ocorreu a chegada de dezenas e dezenas de pessoas que vêm de Anapu a partir da afirmação de que haveria ali terras a serem distribuídas a quem quisesse se estabelecer por lá. O grupo que vive dentro do PDS e é contrário à proposta de manejo é que articula isso na cidade.
A ocupação [do PDS por pessoas de fora] neste momento ainda está na fase de delimitação: as pessoas marcam a terra para, a partir daí, fazerem as picadas na florestas e retirar a madeira – principalmente de uma das espécies [o acapu], que tem mercado muito grande, apesar de ser uma espécie protegida – e consequentemente depois fazerem as aberturas para consolidar essa posse. É isso que está ocorrendo agora.
Há uma tensão muito grande, pois esse não é um fato isolado, já houve outros episódios menores de confronto entre os grupos [que habitam o PDS]. A omissão do Estado, e do próprio Ministério Público – que espero que agora comece a agir – cria um clima de ameaças que faz com que muitas famílias do grupo de assentados adeptos da proposta do PDS, observando o que está ocorrendo e não tendo mais esperanças de que o Estado atue, passem a adotar a prática contrária. Vendo que a floresta a que eles têm direito está sendo ocupada por terceiros sem reação do Estado, até mesmo num ato de desespero passam a se juntar a esse outro grupo.
Na verdade, hoje, existem famílias que estão reagindo, que acreditam no PDS e permanecem defendendo esse proposta e o plano de manejo, mas esse grupo está sendo fragilizado em função dessa omissão do Estado. Há ameaças à integridade física destes que resistem: eles estão na área que chamamos de sede, o alojamento do manejo florestal, mas sendo ameaçados. Na semana passada, quando estávamos lá, eram frequentes as ameaças de que não deveriam mais entrar lá, somente com proteção policial, de que incendiariam o alojamento e inclusive as toras de madeira que estão aguardando transporte. É uma situação de completo terror. Desde a semana passada temos buscado apoio do poder público mas infelizmente até hoje não houve reação.
Em que sentido ocorre essa omissão do Estado?
De início, esperávamos que houvesse uma atuação firme do próprio Incra, com a revisão da ocupação do PDS e de todos esses problemas relacionados à grilagem, à invasão de terras, a registros falsos no sistema do Cadastro Ambiental Rural. Ao longo dos últimos dois anos e meio, foram enviados cerca de trinta documentos pela associação, cooperativa, universidade e Embrapa com denúncias sobre essas irregularidades ambientais e fundiárias, mas sem resposta.
Há uma omissão no sentido de prevenir problemas, de fiscalizar. Temos o Ibama, a Secretaria de Meio Ambiente, o Incra, o próprio Ministério Público com problemas financeiros, de pessoal, de recursos humanos e múltiplas demandas, o que acaba inviabilizando qualquer ação. Nesse caso específico, que se trata de uma clara invasão de terras públicas da União por indivíduos com o objetivo de desmatar a floresta, o que é extremamente grave, não houve reação. Deveria ter sido organizada imediatamente uma missão conjunta dos órgãos e uma ação policial para remoção das pessoas que estão acampadas dentro do PDS.
Reunião de membros da Associação Virola-Jatobá nas dependências do Plano de Manejo Florestal do PDS (Foto: Roberto Porro)
Como conciliar reforma agrária, preservação ambiental e desenvolvimento social? Por que alternativas desse tipo contrariam tantos interesses?
O processo de ocupação da Amazônia é fortemente pautado por interesses de elites locais que economicamente se beneficiam do mercado de terras, ainda especulativo, que visa a abertura de pastagens, e também da madeira. Onde ainda há áreas com florestas, em que a madeira é valiosa, há muitos interesses. Essa coligação de forças entre madeireiros, pecuaristas e especuladores de terras predomina e é quem, de certa maneira, promove e financia as ações de agricultores que acabam sendo “usados” nesse processos, pois são quem fazem o trabalho de abertura da floresta, de retirada de madeira e desmatamento que depois resulta em pastagem.
Em muitos casos, isso causa conflitos entre agricultores, comunidades tradicionais, povos indígenas. É muito recorrente essa estratégia desses grupos economicamente interessados nos recursos da floresta em desvirtuar o conflito, fazendo com que apareçam conflitos entres os “pequenos”, quando, na verdade, há uma estratégia perversa de apropriação de bens através dessa ação. Claro que há imperfeições na legislação e até mesmo no Código Florestal – o PDS, por exemplo, limita a atividade agrícola legal.
Os assentados só podem trabalhar com a agricultura para o seu sustento em uma área limitada se praticarem a abertura da floresta para a instalação dos roçados tradicionais para subsistência, mas hoje são impedidos pela lei em relação a isso, mesmo na área limitada que lhes foi entregue. [Podem fazer isso] Somente se obtiverem uma licença de desmatamento, que o órgão ambiental não consegue emitir, então o camponês é colocado na ilegalidade. É muito complexo conciliar objetivos ambientais com os objetivos sociais, e essa falta de preparo do Estado – uma atuação realmente despreparada no sentido de não entender essa necessidade de conciliação – acirra ainda mais esses conflitos.
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