Cloroquina contra a covid-19 “não ajuda nada” porque, ao menos por ora, tratamento precoce para a doença é “sonho de uma noite de verão”. A proclamada autonomia do médico, preconizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), não o autoriza a seguir procedimentos em desacordo com “a medicina baseada em evidências”. O Brasil enfrenta “dificuldade maior” no enfrentamento da pandemia por não ter feito, como outras nações, uma política nacional e centralizada de controle do SARS-CoV-2.
Essas são algumas das lições que Raul Cutait, 71 anos, ensina nesta entrevista ao Congresso em Foco (veja o vídeo acima com os principais trechos).
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Sempre cuidadoso com o que declara, Cutait observa que não é especialista da área, mais afeta a médicos infectologistas. Mas fala com a autoridade de quem conheceu a doença de três perspectivas diferentes. Primeiro, como médico atuante do hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, onde se tornou um dos mais reconhecidos cirurgiões gástricos do país. Segundo, como pesquisador obsessivo, com vários livros e mais de uma centena de trabalhos científicos publicados no Brasil e no exterior, além de professor livre-docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Terceiro, como paciente grave de covid.
Raul Cutait infectou-se há mais de um ano, nas primeiras semanas da epidemia no país, e diz se lembrar de pouca coisa do tempo em que permaneceu internado, tão grave era o seu quadro infeccioso. Mas se recorda do momento fundamental em que teve a nítida sensação de que iria morrer e se recusou a jogar a toalha. “Não posso morrer”, disse a si mesmo, concentrando o pensamento na família, nos amigos, em seus projetos profissionais e nos “pequenos prazeres” que ainda pretende desfrutar em vida. Além dos cuidados dos colegas e funcionários do Sírio, ele credita a essa sua reação e à “sorte” o fato de ter se recuperado plenamente, sem nenhuma sequela da doença.
Na entrevista, ele enfrenta alguns mitos bastante populares no Brasil, inclusive entre médicos. Afirma que o tratamento precoce “não tem o aval da grande literatura médica”. “Nada disso funciona”, resume. “E o grande problema é as pessoas acharem que estão protegidas e não tomarem as corretas medidas de proteção”, acrescenta, referindo-se ao uso de máscaras, à limpeza constante das mãos e à necessidade de evitar aglomerações e de ter cuidados redobrados nos contatos interpessoais, entre outros procedimentos.
PublicidadeTambém relativiza a “autonomia do médico”, invocada pelo CFM e pelos conselhos regionais para permitirem a livre prescrição de medicamentos, incluindo o famigerado tratamento precoce. “A autoridade do médico não é bem ampla, como se poderia pensar”, esclarece.
“O que os médicos não podem” – prossegue – “é falar ‘eu acho que’. ‘Eu acho que’ é coisa do passado, é coisa de meados do século 20. Essa é a medicina que se fazia antigamente. Hoje não. Hoje, você tem que usar a medicina baseada em evidências”.
Apesar de reconhecer que ainda se sabe “muito pouco” sobre a covid-19, observa que o conhecimento científico disponível não pode ser desprezado: “As pessoas precisam acreditar que o achismo não funciona. Tem que seguir o que a ciência já descobriu”.
Lamenta ainda que o Brasil não tenha planejado e executado uma política nacional para enfrentar a SARS-CoV-2, nome científico do vírus causador da covid-19: “A grande maioria dos países seguiu políticas centralizadas, nacionais. No Brasil, tivemos uma dificuldade maior, que foi a falta de uma coordenação central que interagisse com os governadores, os prefeitos e tomasse as decisões que permitissem entender que o país tem que se comportar como um país”.
Veja os principais trechos da entrevista em vídeo:
> Acompanhe em tempo real os números de óbitos e casos de covid em seu município
> Associação Médica Brasileira defende interrupção imediata do tratamento precoce contra a covid