Apesar das dificuldades econômicas intensificadas pela covid-19 e a possibilidade de uma segunda onda da pandemia também no Brasil, o governo Bolsonaro vem dando sinais claros de que não pretende manter a assistência à população por meio do auxílio emergencial, já reduzido de R$ 600 para R$ 300 e com prazo para terminar em dezembro. O plano — em formatação pelos ministérios da Economia e da Cidadania e o Banco Central — é substituir o auxílio por programas de concessão de crédito a juros. A medida pode deixar mais de 54 milhões de pessoas sem qualquer suporte financeiro a partir do próximo mês.
“Este contingente de brasileiros corre o risco real de chegar em janeiro e ficar à míngua, sem qualquer suporte para enfrentar uma crise que não tem horizonte para terminar”, ressalta o presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), Sergio Takemoto. Ele observa que a entidade sempre defendeu a manutenção do auxílio emergencial no valor de R$ 600 por mês (R$ 1,2 mil para mães provedoras) e enquanto durarem os efeitos da pandemia.
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Conforme explica Takemoto, os 54,2 milhões de prováveis desassistidos a partir de janeiro correspondem aos beneficiários do grupo do Cadastro Único, trabalhadores informais, desempregados, autônomos, microempreendedores individuais e contribuintes individuais do INSS. Só terão a garantia de apoio do governo as 13,6 milhões de famílias que recebem o Bolsa Família e compõem o total de 67,8 milhões de brasileiros que recebem o benefício.
“Como estamos vendo há meses, dificilmente estas mais de 54 milhões de pessoas terão acesso fácil e rápido a financiamentos”, analisa Takemoto. “Por isso, esta ‘estratégia’ do governo de substituir coisas que são insubstituíveis, que são diferentes, é mais uma aposta em medidas socioeconômicas equivocadas. É mais um engodo”, afirma o presidente da Fenae.
A “justificativa” usada pelo governo para acabar com o auxílio emergencial e ampliar a oferta de crédito é a de aquecer a atividade econômica a partir de linhas de financiamento voltadas ao empreendedorismo, o que resultaria na volta do emprego.
Porém, há menos de um mês, durante audiência pública realizada pela comissão mista do Congresso Nacional que acompanha as ações do governo para o combate à covid-19, o presidente do Sebrae, Carlos Melles, revelou que pelo menos 50% dos micro e pequenos empresários nem tentaram recorrer ao crédito por conta de dificuldades burocráticas. Da outra metade que recorreu a linhas de financiamento, apenas 22% obtiveram sucesso; ou seja, 15% do total.
PublicidadeNesta quinta-feira (12), o jornal O Estado de São Paulo confirmou que o fim do auxílio emergencial “é uma convicção no Ministério da Economia”. A avaliação do governo, segundo o Estadão, é que “não há espaço fiscal para dar mais dinheiro a fundo perdido aos informais”. Sob este risco imediato, estão pelo menos 38,1 milhões de pessoas.
De acordo com fontes ouvidas pelo jornal, a Caixa — responsável pelo pagamento do auxílio — deverá participar com R$ 10 bilhões nesta nova linha de crédito. O montante poderá chegar a R$ 25 bilhões a partir do aumento dos chamados “depósitos compulsórios” feitos pelas instituições financeiras ao Banco Central. Os financiamentos para os trabalhadores — cuja maioria ainda precisará se formalizar para poder obter o crédito — ficarão entre R$ 1,5 mil e R$ 5 mil.
“A que taxas de juros e sob quais condições e exigências burocráticas? Como ficará a situação do pipoqueiro, da costureira e de tantos outros brasileiros?”, questiona o presidente da Fenae. “Não somos contrários à ampliação do crédito. Mas, as duas frentes têm que andar juntas e em um processo de transição factível. Assistência social para quem não tem outra forma de sobreviver é totalmente diferente de crédito a juros. Portanto, uma coisa não pode ser trocada pela outra”, reforça Takemoto.
Ao Estadão, o economista-chefe da Confederação Nacional de Comércio (CNC), Carlos Thadeu de Freitas, também analisou que o crédito é essencial para a retomada da economia. Mas, no entendimento de Freitas, “é preciso algo mais” para sustentar este processo.
Cálculos divulgados esta semana pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) mostram que a redução do auxílio emergencial para R$ 300 já provocou o avanço da taxa de pobreza em 19,4%, o que representa 41,1 milhões de pessoas. Conforme o estudo do Ibre, em agosto, ainda sob o efeito do auxílio emergencial de R$ 600, o percentual de pessoas vivendo nesta condição era de 18,4% (38,9 milhões de brasileiros). Essa parcela tem renda inferior a US$ 5,50 por dia — linha de corte adotada pelo Banco Mundial.
Segunda onda
Nesta terça-feira (10), o ministro da Economia, Paulo Guedes, reforçou que o governo só considera a continuidade do auxílio emergencial se o país for atingido por um novo pico de contaminações por covid-19. “Deixamos bem claro para todo mundo. Se houver uma segunda onda no Brasil, temos já os mecanismos”, cravou Guedes, durante teleconferência com a agência Bloomberg.
Hoje (12), em evento virtual organizado pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras), o ministro repetiu a afirmação e acrescentou que, “se for necessária” a prorrogação do auxílio, a ideia é que o governo gaste menos do que no primeiro enfrentamento à pandemia: “Ao invés de gastar 10% do PIB, talvez gastemos 4%”.
Segundo Guedes, a equipe econômica trata a questão como uma contingência. “O plano ‘A’ para o auxílio emergencial é acabar em 31 de dezembro e voltar para o Bolsa Família. A renovação de auxílio emergencial não é nossa hipótese de trabalho, é contingência”, emendou.
Para sustentar os planos de troca do auxílio por linhas de crédito, outra medida desenhada pelo Executivo para o fim do benefício é tornar permanente o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe). Contudo, com diminuição da garantia dada pelo governo e a juros maiores, entre entre 6% e 8% ao ano.
Os dados mais recentes informados pela Federação Brasileira de Bancos apontam que, de março (início da pandemia) até 23 de outubro, foi oferecido um total de R$ 2,6 trilhões em crédito, no país, incluindo bancos públicos e privados e abrangendo novas operações, renovações e prorrogações de contratos. De acordo com a Febraban, os financiamentos chegaram “em especial às empresas”.
“Além do crédito ser muito mais acessível aos grandes empresários, que conseguem dar mais garantias de pagamento do empréstimo, os negócios demandam um certo tempo de ‘maturação’ para produzirem resultados, gerarem empregos. Não é um processo imediato, de uma hora para outra”, observa Sérgio Lisboa, economista do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). “Não se pode acabar com o auxílio emergencial de maneira abrupta e deixar sem qualquer renda milhares de pessoas, inclusive os empreendedores”, completa o economista.
O presidente da Fenae compara os recursos disponíveis para empréstimos — R$ 2,6 trilhões — com os R$ 284 bilhões pagos em auxílio emergencial para a sobrevivência de 401,1 milhões de brasileiros. “Parece evidente que o governo Bolsonaro quer lavar as mãos para as necessidades da população que mais precisa e transferir esta ‘responsabilidade’ para as instituições financeiras; especialmente, as privadas, que sempre vão mirar o lucro”, alerta Sergio Takemoto, ao destacar o papel decisivo dos bancos públicos brasileiros no enfrentamento da crise de 2008.
Naquela ocasião, conforme lembra o presidente da Fenae, o governo determinou que Caixa Econômica, Banco do Brasil e BNDES dessem fluidez à concessão de crédito com juros diferenciados e sem entraves burocráticos. Política semelhante vem sendo adotada por países como Alemanha e China, onde os bancos públicos e de desenvolvimento estão no centro das respostas à atual crise provocada pelo coronavírus.
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