Em live promovida pelo Congresso em Foco, associações que representam os peritos criminais em nível nacional apontaram a investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco para demonstrar a necessidade de se garantir, na forma da lei, a autonomia para as polícias científicas. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), Marcos Antonio Secco, uma perícia independente no Rio de Janeiro teria evitado uma série de erros que resultaram no atraso e na federalização da investigação.
Um dos elementos citados na decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), para fundamentar a tese de sabotagem interna na Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro na apuração do assassinato de Marielle foi a demora para que o veículo onde ela foi executada fosse enviado para a análise pericial. Marcos Secco atribui essa demora à falta de autonomia concedida aos peritos, que dependem de autorização da corporação para realizar seu trabalho.
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Confira a íntegra do debate:
“Se tivesse uma perícia autônoma no Rio de Janeiro, nunca aquele carro ficaria 41 dias parado no pátio de uma delegacia aguardando algum encaminhamento baseado na investigação. O carro já teria sido coletado do local do crime, enviado a um laboratório e teria sido feito todo o levantamento dos vestígios presentes naquele carro”, apontou o representante da associação.
Apesar de não ser possível saber exatamente o que poderia ser identificado no veículo caso a perícia fosse realizada com brevidade, o perito criminal ressalta não haver dúvida sobre o impacto da demora. “A gente sabe, com base na experiência com o passar do tempo e nos estudos, que o tempo é o maior inimigo da perícia. Se ele [carro de Marielle] tivesse ido para um local correto, tivesse os laboratórios e os profissionais capacitados para fazer aquele levantamento, muita coisa poderia ter sido levantada, e com aquele elemento nortear a investigação, e não o contrário”, apontou.
Willy Hauffe, presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), citou um outro caso histórico de interferência em investigação que poderia ter sido evitada se, na época, as polícias científicas pudessem atuar de forma autônoma: o assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura militar, em 1975. O anúncio oficial do Serviço Nacional de Informações (SNI) foi de que sua morte aconteceu por suicídio no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), enquanto as investigações posteriores demonstraram que ele foi executado.
“Nós vimos o laudo dele, e o laudo dele deu suicídio. Qualquer perito hoje, saindo de qualquer academia de polícia científica, ao ver as fotos, vai dizer que foi um homicídio. É isso a gente tem que coibir: casos esdrúxulos de interferência na investigação, na perícia”, explicou. O caso, ao seu ver, demonstra a necessidade de construção de uma legislação que garanta à perícia a autonomia para não sofrer vinculação com os interesses de outros órgãos.
A autonomia da polícia científica está prevista na PEC 79/2019, que tramita no Senado, e foi o principal tópico do debate. Em vídeo gravado para o Congresso em Foco, a relatora da proposta, Professora Dorinha (União-TO), ressaltou que a PEC não retira poderes das polícias civis, mas reflete uma questão de “amadurecimento” do olhar sobre a segurança pública.
A parlamentar ainda relembrou que as experiências internacionais de autonomia à polícia científica até então trouxeram resultados promissores. “A própria literatura internacional fala dessa importância. Vários países têm destacado a importância da independência da polícia científica”. O mesmo se observou nos mais de 20 estados brasileiros que concederam localmente a autonomia, conseguindo assim avançar em investigações que até então estavam paradas.
Entenda a PEC 76/2019
A PEC 76 foi aprovada, na última quarta-feira (17), na Comissão de Constituição e Justiça e será analisada em seguida pelo Plenário. Para que o texto avance para a Câmara, será necessário o apoio de 49 dos 81 senadores, em dois turnos. A proposta insere na Constituição a Polícia Científica como órgão autônomo de segurança pública nos estados. As polícias científicas ainda estão subordinadas às Polícias Civis em seis estados e no Distrito Federal.
Entidades que representam a categoria argumentam que uma perícia criminal autônoma e independente é o pilar fundamental para o combate à criminalidade, para a promoção dos direitos humanos e para a garantia de julgamentos justos.
A proposta foi apresentada em 2019 pelo então senador Antonio Anastasia (PSD-MG), hoje ministro do Tribunal de Contas da União.
Veja os principais argumentos apresentados pelo autor para justificar a proposição:
• a constitucionalização da perícia criminal brasileira é condição fundamental para a modernização do sistema de segurança pública no país e requisito indispensável ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito;
• a perícia auxilia o Judiciário e traz a verdade dos fatos por meio da prova material;
• a prova pericial, baseada em métodos científicos, requer isenção, sendo desejável afastar o órgão de perícia do órgão investigador;
• há uma lacuna normativa quanto à perícia, pois não há dispositivo constitucional; e
• a maioria dos Estados já possui órgão de perícia separado da polícia civil e que é necessária a padronização e o fortalecimento da perícia criminal.
O argumento central da proposta é que a mudança constitucional fortalece o papel social da polícia científica no enfrentamento à tortura e aos tratamentos cruéis e desumanos praticados por forças de segurança pública.
Condenação internacional
Em 2017 o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no “Caso Nova Brasília” por violência policial. A Corte sentenciou o governo brasileiro, na ocasião, que garantisse autonomia à perícia criminal.
Em outubro de 1994, uma incursão policial na Favela Nova Brasília, localizada no Complexo do Alemão, no Rio, terminou com a morte de 13 homens da comunidade, quatro deles menores de idade. Além disso, três mulheres, duas delas menores de idade, sofreram atos de violência sexual por parte das forças policiais.
Meses depois, em maio de 1995, nova operação policial, na mesma localidade, resultou novamente na morte de 13 homens, sendo dois deles menores de idade. O Brasil foi condenado internacionalmente por não ter dado andamento às investigações e à responsabilização pelos crimes.
A corte considera que um dos principais problemas constatados no caso foi a ausência de um corpo pericial independente, uma vez que a própria Polícia Civil realizou a investigação dos casos em que um de seus membros era apontado como autor da violação de direitos humanos.
Em seu relatório, a senadora Professora Dorinha ressalta que a aprovação da PEC contribuirá para o desenvolvimento e o fortalecimento das investigações criminais e da Justiça. “A autonomia do perito é fundamental para a garantia dos direitos humanos, pois a subordinação pode fazer com que ele seja obrigado por um superior a elaborar laudo com falsas conclusões e isso acarrete a condenação de um inocente ou a absolvição de um criminoso”, afirma a relatora.