O ex-ministro da Saúde e senador José Serra (PSDB-SP) comentou em entrevista ao Congresso em Foco a atuação do governo federal na crise do coronavírus. Para ele o presidente Jair Bolsonaro erra ao minimizar a doença e ao propor medidas como “isolamento vertical”, onde só idosos e doentes ficariam em isolamento.
“Conjuntamente, estas atitudes criaram uma narrativa ruim para o presidente, algo que o colocou em confronto com seus ministros, com a OMS [Organização Mundial da Saúde], com o Estado das artes da ciência e, ao fim e ao cabo, com a realidade, exponencial, do surto, que teimará em se impor”.
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O tucano elogia a atuação do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que ao contrário do presidente, tem sido claro sobre os riscos do aumento das infecções e defendido restrições como o isolamento social.
No entanto, o senador declarou que falta ao ministro dar celeridade nos diagnósticos apontados em pronunciamentos do Ministério da Saúde a ações concretas no combate à doença.
Publicidade“Em suas manifestações parece estar consciente do problema e das ações urgentes necessárias, porém tenho sentido certa letargia em transformar o diagnóstico e as intenções em ações efetivas. Fala-se em testes em massa, mas eles não chegam. Fala-se em reforço orçamentário aos centros de saúde locais, mas eles não chegam. O ministro precisam ganhar musculatura e ter ascensão sobre as demais pastas nesta fase, crítica, inicial e aguda deste surto”.
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Serra também criticou Bolsonaro pela demora em sancionar o projeto de lei que dá uma renda mínima emergencial de R$ 600 para trabalhadores informais. A iniciativa foi aprovada pelo Congresso na segunda-feira (30) e somente foi sancionada pelo governo federal na noite de quinta-feira (2).
“O governo nunca apoiou um limite para o endividamento, previsto na Constituição Federal e na Lei de Responsabilidade Fiscal. Agora, no meio de uma grave crise, cria dificuldade para gastar com a renda básica, se escondendo atrás de regras fiscais que já foram flexibilizadas pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal”.
José Serra tem 78 anos e foi ministro da Saúde do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) de 1998 a 2002. Foi candidato a presidente da República duas vezes, em 2002 e 2010. Também foi ministro do Planejamento de 1995 a 1998 e ministro das Relações Exteriores de 2016 a 2017. Já exerceu os mandatos de deputado, prefeito de São Paulo e governador de São Paulo.
Leia a seguir a entrevista completa:
Congresso em Foco: como o senhor avalia a atuação do ministro Mandetta durante a crise do coronavírus?
José Serra: tem sido positiva a atuação do Mandetta e de sua equipe, não obstante todas as resistências dentro do governo. Ministério da Saúde tem se pautado na ciência e na transparência. Isso é muito importante.
Nota-se que o Ministério tem atuado de forma coordenada com as secretarias de saúde locais e tem buscado ampla integração, sobretudo das informações epidemiológicas e dos principais gargalos do sistema de saúde, para promover ações efetivas do Ministério. Em suas manifestações parece estar consciente do problema e das ações urgentes necessárias, porém tenho sentido certa letargia em transformar o diagnóstico e as intenções em ações efetivas. Fala-se em testes em massa, mas eles não chegam. Fala-se em reforço orçamentário aos centros de saúde locais, mas eles não chegam. O ministro precisam ganhar musculatura e ter ascensão sobre as demais pastas nesta fase, crítica, inicial e aguda deste surto.
Para colaborar, apresentei e o Senado já aprovou um projeto de reforço orçamentário de R$ 2 bilhões, sem condicionantes, às Santas Casas, que respondem por 50% do número de atendimentos do SUS e serão fundamentais para absorver o volume de situações emergenciais de saúde com que nos defrontamos neste momento.
E a atuação do presidente Jair Bolsonaro?
Creio que o presidente foi mal assessorado ao interpretar os dados números iniciais da doença causada pelo novo coronavírus, o que o fez subestimar seus efeitos. Em um processo de contágio exponencial como este, é natural que o número de casos suba muito mais rapidamente do que o número de óbitos, levando a crer que se trata de uma doença branda. Os óbitos vêm apenas depois, também em escala exponencial. Se formos levados ao equívoco de calcularmos a taxa de mortalidade usando duas curvas exponenciais deslocadas no tempo, vamos subestimar a doença.
Esta postura o fez criar uma narrativa errada de partida. Mostrou também que ele desconhece a verdadeira realidade brasileira. Temos bolsões de miséria, fragilidades sanitárias chocantes e um arranjo geográfico e familiar onde os mais carentes habitam espaços minúsculos e onde os donos das moradias são justamente os mais idosos, responsáveis também pelo acompanhamento das crianças enquanto seus filhos trabalham.
Este desconhecimento o fez também embarcar em ideias utópicas da possibilidade de um “isolamento vertical” ordeiro no Brasil. Nem os países mais capacitados, com plena capacidade de realizar testes em massa e elevado número de respiradores livres ousam a percorrer esta rota, da forma como foi sugerida pelo presidente, de simplesmente abrir e deixar a cargo de cada núcleo familiar o isolamento de infectados e o afastamento e proteção dos idosos do convívio familiar e social.
Conjuntamente, estas atitudes criaram uma narrativa ruim para o presidente, algo que o colocou em confronto com seus ministros, com a OMS, com o Estado das artes da ciência e, ao fim e ao cabo, com a realidade, exponencial, do surto, que teimará em se impor.
Felizmente, ontem em seu pronunciamento [feita na terça-feira, dia 31] o presidente aparentou estar percebendo esta realidade, espero que de forma muito mais construtiva e cooperativa.
O senhor é a favor das medidas de isolamento social como forma de evitar o aumento das infecções?
Não se trata de ser a favor ou contra. A questão é que não tem alternativa. Porém, o governo precisa adotar medidas de proteção social e elas estão muito atrasadas
As atividades econômicas sofrem grande desaceleração por conta da crise. O Congresso aprovou uma renda básica de R$ 600 para trabalhadores informais. Quais outras medidas para aquecer a economia o senhor defende?
A principal medida de socorro que deve ser tomada é o Governo federal operacionalizar a renda básica aprovada pelo Congresso para fazer o dinheiro chegar nas mãos dos brasileiros que enfrentam os efeitos econômicos da pandemia e precisam de auxílios imediatos.mO Ministro da Economia vem condicionando a implementação desse pacote emergencial a uma PEC, mas trata-se de um equívoco: o planalto precisa apenas enviar uma medida provisória para liberar os recursos da renda básica. Só isso.
Nesta crise, demonstrações de falta de firmeza do governo federal acarretam perda de tempo, dinheiro e vidas.
O governo nunca apoiou um limite para o endividamento, previsto na CF e na LRF. Agora, no meio de uma grave crise, cria dificuldade para gastar com a renda básica, se escondendo atrás de regras fiscais que já foram flexibilizadas pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal.
Lembro que, no final do ano passado, o governo criou o décimo terceiro para o bolsa família sem preocupações com o rigor das regras fiscais. Agora, com as normas flexibilizadas pelo Congresso e STF, no centro de uma grave crise, cria dificuldades? Não faz sentido.
Tenhamos claro que a crise é grave. O país precisa se endividar para salvar as vidas que estão sendo afetadas pelo Coronavírus, pelo encerramento de atividades empresariais e pelo desemprego. É uma situação emergencial e atípica. O debate sobre quem vai pagar essa conta deve ocorrer em um segundo momento.
Nesse contexto, o aumento dos gastos públicos na área social e da saúde serve também para socorrer a economia do país. As pessoas precisam de saúde e renda para consumir.
O senhor foi governador de São Paulo, como avalia a atuação do atual governador João Doria e governadores de outros estados, que muitas vezes tem tomado posições unificadas em relação a crise?
Ainda bem que os governos estaduais tomaram as medidas necessárias, seguindo as recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde. Não fosse isso a situação estaria muito pior
Ainda que não tenha sido nas mesmas proporções, o senhor enfrentou situações similares a de hoje quando era ministro da Saúde?
Eu assumi o Ministério da Saúde em meio a uma grave epidemia nacional de dengue. Foi um grande desafio.
Também gostaria de destacar que tive outros dois grandes desafios: a regulamentação dos Planos de Saúde e a implantação do Sistema Nacional de transplantes, que hoje é um dos maiores e melhores do mundo. Em ambos os casos a lei tinha acabado de ser aprovada.