Os remédios à base de Cannabis sativa voltaram ao centro dos debates no país. Os senadores acabam de aceitar uma sugestão, apresentada por uma ONG, que libera o cultivo da planta exclusivamente para a produção de medicamentos e a realização de pesquisas científicas. Com isso, a sugestão virou projeto de lei (PL 5.295/2019) e agora será votada pelas comissões do Senado.
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Na Câmara, os deputados criaram uma comissão só para discutir um projeto que facilita a entrada de medicamentos à base de Cannabis nas farmácias (PL 399/2015). A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por sua vez, está prestes a votar resoluções que regulamentam tanto o plantio apenas por empresas farmacêuticas quanto o registro dos remédios.
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Nenhuma das propostas em análise permite o uso recreativo da maconha ou o plantio individual da Cannabis, práticas que a legislação enquadra como crimes.
Mesmo não tendo como objeto a droga narcótica, a regulamentação da Cannabis medicinal é um tema controverso e tem levado a debates acalorados. Os críticos se dividem entre os que afirmam que os estudos sobre a segurança não são conclusivos e os que acreditam que a disseminação dos remédios seria apenas o primeiro passo para a completa legalização da maconha.
Segundo os defensores, já há evidências científicas suficientes a respeito da segurança dos remédios. Para eles, os doentes não podem mais esperar.
Apoiadora da liberação dos medicamentos, a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) cita seu próprio exemplo. Ela, que é tetraplégica, faz uso de remédios à base de Cannabis para amenizar dores, impedir contrações musculares involuntárias e evitar convulsões:
“Alguém já me viu alucinando em algum canto do Congresso, falando besteira? Alguém tem algum senão quanto à minha seriedade no trabalho? Precisamos de mais amor e menos preconceito. E não falo só por mim. Nós não podemos bater a porta na cara da sociedade. Não temos o direito de manter a dor de tantos brasileiros.”
Entre os críticos, está o senador Eduardo Girão (Podemos-CE):
“A dita maconha medicinal é uma falácia que querem incutir na cabeça dos brasileiros, objetivando reduzir a percepção de risco dessa droga. A liberação do plantio no país poderá significar uma porta aberta para que, num futuro bem próximo, o mercado bilionário da maconha recreativa venha a criar tentáculos no Brasil.”
Não há proibição aos remédios à base de Cannabis no Brasil. Em 2017, a Anvisa liberou a venda do primeiro — e por ora único — medicamento do tipo no país, o Mevatyl, prescrito para conter os espasmos de pessoas com esclerose múltipla. O que está proibido são o plantio e o processamento no território nacional. Isso deixa de mãos atadas tanto a indústria farmacêutica quanto os cientistas brasileiros.
No exterior, há inúmeros remédios disponíveis, aprovados por agências como o FDA (equivalente à Anvisa nos Estados Unidos). O Mevatyl comercializado nas farmácias do Brasil é importado da Inglaterra.
Diante das restrições legais, aos pacientes com prescrição médica de tratamento com Cannabis restam alternativas ilegais, desgastantes, burocráticas ou caras. Alguns recorrem ao tráfico para obter sementes, plantar a Cannabis de forma clandestina e extrair o concentrado medicinal. Outros pedem habeas corpus preventivos aos tribunais para cultivar a planta sem incorrer em crime. Há quem solicite à Anvisa autorização para importar medicamentos liberados em outros países. E existem pacientes que pedem à Justiça que obrigue a rede pública de saúde a fornecer-lhes gratuitamente esses remédios estrangeiros.
A demanda pela Cannabis terapêutica é crescente no Brasil. Em 2016, a Anvisa concedeu 450 permissões de importação. Em 2018, foram 2.350. Os gastos do Ministério da Saúde para cumprir ações judiciais que determinam a entrega de remédios à base de Cannabis também subiram. Em 2017, o governo federal gastou R$ 280 mil. Em 2018, R$ 620 mil.
A ONG Abrace Esperança, da Paraíba, que conta com autorização judicial para plantar Cannabis e vender os medicamentos a preço de custo a um grupo limitado de pacientes, tem uma lista com mais de cem médicos de todo o país que prescrevem esse tipo de tratamento.
Certos princípios ativos da Cannabis são capazes de amenizar dores musculares crônicas e inflamações resistentes aos medicamentos convencionais, por exemplo. Em pacientes que se submetem a quimioterapia, ajudam a controlar as náuseas e os vômitos. Em doentes de aids que perderam muito peso, auxiliam no aumento do apetite. Crianças que sofrem múltiplas convulsões diárias passam a ter crises muito esparsas depois de iniciarem o tratamento com a Cannabis terapêutica.
A médica Carolina Nocetti, que integra o Laboratório de Estudos da Dor, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz:
“Os estudos científicos e a prática médica mostram que os canabinoides são seguros. Não matam nem causam dependência, ao contrário do que pode acontecer com os analgésicos opioides, como a morfina. É claro que os canabinoides podem provocar efeitos colaterais, como todo medicamento, mas são efeitos colaterais muito leves, como fome e boca seca.”
No Brasil, a primeira autorização judicial para a importação de um remédio extraído da Cannabis foi concedida em 2014. A beneficiada foi a menina Anny, que vive em Brasília e sofre de CDKL5, uma síndrome de origem genética que atrasa o desenvolvimento neuropsicomotor e provoca convulsões de difícil controle. A síndrome é tão rara que no Brasil só se tem notícia de 30 pessoas acometidas por ela.
O pai da menina, Noberto Fischer, soube do uso terapêutico da Cannabis por meio de famílias americanas que têm filhos com a mesma síndrome. Na época em que ele conseguiu a autorização da Justiça, Anny tinha 6 anos de idade e sofria em torno de 60 crises convulsivas por semana. Ela já havia experimentado inúmeros remédios e até usado um implante que libera impulsos elétricos, semelhante a um marca-passo, mas sempre sem sucesso.
“Foi um choque muito forte quando eu soube que o tratamento que estavam adotando nos Estados Unidos era à base de Cannabis. Eu tinha uma imagem muito cristalizada dessa planta como algo que é do mal e precisa ser mantido à distância. Mas, quando a sua filha está quase indo embora, perdendo a vida, porque os tratamentos não funcionam, você passa por cima de todo o medo e de todo o preconceito. Foi assim que consegui trazer a primeira remessa do medicamento para o Brasil.”
Segundo Fischer, os resultados vieram logo. Em pouco mais de dois meses utilizando um remédio à base de Cannabis, as convulsões de Anny foram rareando e chegaram a desaparecer por um tempo. Hoje são raras. A menina voltou a se alimentar e a olhar os pais nos olhos. Depois de seis anos em constante estado de alerta, para socorrer a filha durante as crises, a família finalmente conseguiu ter uma noite inteira de sono.
“Acredito que, se não fosse a Cannabis medicinal, a Anny não estaria mais conosco. Proposital ou não, a vinculação equivocada que fazem entre o uso medicinal e o uso recreativo ou adulto atrasa o processo [de regulamentação] e machuca muito o coração das famílias que precisam dos medicamentos para garantir a vida dos seus filhos.”
Os remédios podem vir na forma de cápsula, óleo, pomada, vapor, spray nasal e gota sublingual. Cada medicamento tem uma formulação própria, com os princípios ativos em concentrações variadas, conforme a doença.
A maior parte dos tratamentos à base Cannabis não altera nos doentes a percepção da realidade, como faz o cigarro de maconha. Em alguns remédios muito específicos, porém, o objetivo é justamente esse, como aqueles prescritos para aliviar a dor e a ansiedade dos pacientes em estado terminal.
No Canadá, a produção de remédios à base de Cannabis foi regulamentada em 2001. Na Holanda, em 2003. Em Israel, em 2012. O médico Ricardo Ferreira, especialista no manejo da dor e consultor da ONG Abrace Esperança, afirma:
“Será que esses países não estão comprometidos com a saúde da sua população? Será que são coniventes com o tráfico de drogas? É claro que não é nada disso. O Brasil precisa tirar proveito da experiência internacional. Não é justo que pacientes brasileiros não tenham acesso ao tratamento adequado e continuem sofrendo só por causa do estigma que a Cannabis carrega.”
Uma pesquisa de opinião feita em junho pelo DataSenado a pedido do gabinete da senadora Mara Gabrilli sugeriu que a religião afeta a forma como as pessoas encaram a Cannabis medicinal. Da população brasileira como um todo, 79% apoiam a distribuição desses remédios na rede pública de saúde e 75% se dizem favoráveis à fabricação deles no país. Quando se consideram apenas os entrevistados evangélicos, o apoio cai para 70% e 67% respectivamente.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, e os ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e da Cidadania, Osmar Terra, disseram que são contrários à liberação do cultivo de Cannabis com fins medicinais e científicos.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem uma resolução que autoriza os médicos a prescrever Cannabis terapêutica apenas para crianças e adolescentes que sofrem de epilepsia refratária aos remédios convencionais.
“Faltam evidências científicas que comprovem a segurança e a eficácia dos canabinoides. Torcemos que apareçam. Enquanto isso não ocorrer, nossa posição será contrária [à prescrição para outros casos]. Entendemos a dor e o sofrimento desses pacientes que precisam de uma alternativa terapêutica, mas nossa missão, como uma casa de ética, é informar e conscientizar a comunidade médica e científica, os legisladores, os gestores, os educadores e o público em geral sobre o tema”, argumenta o médico Leonardo Sérvio Luz, conselheiro do CFM.
O senador Girão apresentou um projeto de lei que inclui na rede pública remédios à base de CBD, um dos princípios ativos da Cannabis, e apenas conforme o protocolo reconhecido pelo CFM (PL 5.158/2019). O CBD, além disso, teria que ser sintético, de modo a não exigir o cultivo da planta.
“Por que plantar, correndo o risco da perda de controle sobre essa produção, já que não há como fiscalizá-la, se a tecnologia avançada nos propicia a formulação desses medicamentos em laboratório? Até hoje ninguém conseguiu me responder essa questão.”
A senadora Mara Gabrilli criticou o projeto de Girão, por considerá-lo restritivo demais. Segundo ela, a distribuição exclusiva do CBD acabaria impossibilitando a prescrição do THC, outro princípio ativo presente em medicamentos liberados no exterior. O Mevatyl, o único remédio disponível no Brasil, contém tanto o CBD quanto o THC.
“Por todo o período em que eu fiquei sem o THC, me tratando só com o CBD, eu desenvolvi uma epilepsia refratária. Foi por isso que fiquei de licença e faltei tanto tempo às sessões do Senado. Temos que lembrar que nós somos legisladores, não médicos. Se um médico prescreve THC, como nós seremos contrários a isso?”
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Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Infografia: Diego Jimenez
Fonte: Agência Senado