Jornalistas vêm ao mundo para incomodar os poderosos de plantão. É o que venho tentando fazer ao longo desses 44 anos batucando nas pretinhas. Mas é muito engraçado: quando bato na esquerda, sou acusado de ser coxinha, reaça, direitaço. Quando se lembram que trabalhei 12 anos na TV Globo, aí mesmo é que o bicho pega. Não sabem eles que durante o regime militar Doutor Roberto Marinho cuidava e protegia muito bem dos comunistas da redação – “meus comunistas”, como os tratava. Embora ele próprio tenha sido um expoente da direita, e o Grupo Globo, usado como braço oficioso do regime de 64.
Porém, quando minhas críticas se dirigem à direita, principalmente agora com o exército bolsonarista no poder, aí me xingam de esquerdofrênico, terrorista, lacaio do comunismo internacional e o cacete. Outro dia escreveram que não passo de um “epíteto-comunista”. Já revirei céus e terras e não consegui descobrir que diabo é isso. Tomara que seja elogio… Não sabem eles que minha primeira e única filiação partidária foi mesmo ao PCB de Luís Carlos Prestes, do qual fui me afastando aos poucos desde que me dei conta das distorções que o marxismo sofreu nos regimes comunistas implantados mundo a fora. E das atrocidades cometidas de Stálin pra cá. Mas me orgulho, sim, de ter sido filiado ao “partidão”. Aprendi muita coisa boa lá, principalmente a lutar pelos direitos das minorias. Como uma vez me disse o colega Juca Kfouri, “ser comunista não te dá futuro algum, mas te dá um excelente passado!”
Leia também
Esta longa introdução na primeira pessoa é apenas para reafirmar o que está escrito lá na primeira linha. Nós, jornalistas, existimos para incomodar, fustigar, cobrar, expor, revelar, denunciar. No máximo nos é concedido o direito de reconhecer acertos dos ocupantes do poder. Até porque fazer a coisa certa no governo não é mérito e sim obrigação de quem chega ao poder. Jornalismo de louvação elogiosa é puxa-saquismo. Pra direita ou pra esquerda. Ponto. Parágrafo.
Voto de confiança? Mas por quê?
Agora, sim. Desde a eleição de Bolsonaro, tenho lido, ouvido e assistido a muita gente dizer que agora deve-se dar um voto de confiança a ele. Como assim, cara-pálida? Como é possível dar um voto de confiança a quem usou um discurso racista, homofóbico, armamentista, autoritário, misógino e grosseiro com índios e quilombolas, apologista da tortura e do estupro para chegar ao poder? E que estribou a campanha no combate à corrupção, mas, antes mesmo de tomar posse o cheirinho de cocô da corrupção mais deslavada já se percebe ali nos arredores do clã bolsonarista? Para receber um voto de confiança, no mínimo ele deveria pedir desculpas pelas declarações desastradas que o colocam muito mais próximo de um delinquente comum do que de um chefe de Estado. E não aceitar – como prometeu e até agora não cumpriu – deixar de fora de seu governo qualquer integrante sobre o qual tenha recaído denúncia fundada de prática corrupta. Onyx é um deles. O próprio Bolsonaro gastou dinheiro da Câmara para custear a campanha à presidência. Sem falar nessa estranha figura chamada Queiroz, o Príncipe do Laranjal Bolsonarista, um ser escorregadio que não explicou nem vai conseguir explicar o milagre de ter movimentado mais de R$ 1 milhão tendo salário de motorista do filho de Jair Bolsonaro na Assembleia do Rio de Janeiro. E de ter depositado 28 mil bagarotes na conta da primeira-dama.
O barco da podridão é o mesmo
Portanto, se Lula está pagando uma cana por ter recebido (e recebeu, sim, e aqueles pedalinhos com os nomes dos netos no sítio de Atibaia falam mais alto do que qualquer depósito bancário), Bolsonaro, por sua vez, não tem a mínima autoridade para fazer qualquer acusação ao metalúrgico. Os dois navegam no mesmo barco fedorento. A diferença é que um está pagando o que deve, na qualidade de delinquente comum (não tem nada de preso político). E o outro é autor de vários crimes de difamação, por alguns dos quais foi até condenado, como pagar 10 mil realetas à deputada Maria do Rosário, por apologia ao estupro, e indenização de 150 mil ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos do Ministério da Justiça, por declarações homofóbicas num programa de TV.
Diante disso, não há motivo algum para voto de confiança. Jornalistas podem e devem ajudar os governos, sim. Mas essa ajuda deve vir do cumprimento de seu papel institucional, de fiscalizar, denunciar e apontar erros, exigindo correções. A tarefa da imprensa deve ser dia sim e outro também remexer o caldeirão de cocô pra que se perceba o fedor. É o de não deixar que as denúncias contra o clã Bolsonaro caiam no esquecimento.
Voto de confiança é oportunismo adulatório, de quem quer faturar um troco do novo governo alisando o saco do ocupante de plantão. Se tivesse sido outro o eleito – Ciro, Marina, Daciolo ou Eymael – a missão da imprensa continuaria a ser exatamente a mesma – incomodar, fustigar, cobrar, expor, revelar, denunciar etc. Como diria o filósofo Millôr Fernandes, num admirável exagero, “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.