Nilto Tatto*
O ano está apenas começando, e no início de fevereiro o Congresso Nacional retomará as atividades, mas desde já estamos em estado de alerta com a retomada da tramitação da Medida Provisória 910, instalada em dezembro de 2019. A MP, propalada pelo governo Bolsonaro como uma revolução social no país, na verdade atende a interesses muito menos nobres: institucionaliza a grilagem de terras em larga escala no território nacional.
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Sob o argumento de estar beneficiando pequenos proprietários de terra, a chamada MP da Regularização Fundiária modifica sensivelmente o processo de legalização de ocupação de terras da União disciplinando regras para o processo de autodeclaração de áreas equivalentes a até 15 Módulos Fiscais, com dispensa de licitação até 2.500 hectares.
Caso a MP 910 seja aprovada conforme o texto apresentado pelo Governo Federal, a venda direta das áreas ocupadas até 2014 será liberada, a partir de procedimentos simplistas e sem fiscalização adequada das condições estabelecidas para a regularização, a comprovação da ocupação do terreno, bem como do usufruto da área, e a eliminação de garantias do poder público sobre a possibilidade de reversão e retomada de áreas em que não forem cumpridos os requisitos previstos na lei. A prática de crimes ambientais pelos posseiros das áreas nas esferas estadual e municipal também será ignorada. Portanto, trata-se do patrocínio do Estado brasileiro à maior subtração e apropriação privada de terras públicas da história da República. Corrupção clássica, tornando legal a grilagem de terras no país.
Segundo especialistas em questões agrárias consultados pela Liderança do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados, a sanção da MP cria condições para a transferência ao mercado de 88 milhões de hectares das terras da reforma agrária, que são terras públicas.
PublicidadeAlém do favorecimento a grileiros e criminosos ambientais, o cerne da MP 910 toca em um ponto de cara importância para os setores mais primitivos do agronegócio brasileiro, como setores ligados aos madeireiros e latifundiários: a segurança jurídica na posse da terra para a expansão agrícola em território amazônico. É o salvo conduto em forma de lei rumo à privatização da Amazônia, permitindo sua devastação e ignorando por completo os impactos socioambientais de grande magnitude.
Por fim, a metodologia adotada para a regularização fundiária, ao diminuir o prazo de consideração válido visando a alienação das terras da União (há hipóteses em que até ocupantes no ano de 2017 sejam contemplados com a compra da área pública), o governo adota um nível de permissividade sem precedentes, favorecendo os grupos com maior poderio econômico.
Os processos de mediação e participação social previstos no Programa Terra Legal, de 2009, serão eliminados, o que pode resultar na regularização de áreas em litígio e no agravamento de conflitos no campo. Na ausência de critérios efetivos e de fiscalização eficiente do Estado, abrem-se brechas para que pessoas com condições financeiras, proximidade política e ideológica com o governo e capacidade de interlocução encaminhem seus pleitos e sobreponham suas demandas em relação ao de posseiros pobres, com dificuldades econômicas e técnicas de atenderem aos requisitos exigidos. Pequenos produtores e proprietários de terras organizados em assentamentos e movimentos sociais perderam pontos na nova tabela de classificação do direito aos benefícios previstos na MP, configurando uma dificuldade aos cidadãos brasileiros que não apoiam o presidente, como os pertencentes a movimentos de luta pela reforma agrária.
Como de praxe, é mais uma medida de Jair Bolsonaro, da ministra Tereza Cristina e do secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, que afeta justamente quem mais precisa da terra. Governando para um punhado de figuras que talvez sequer representem a maioria do setor produtivo e do agronegócio brasileiro, a legalização da grilagem confirma a jornada rumo ao atraso em que estamos mergulhando.
Na condição de coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, acompanharei atentamente a tramitação da MP e utilizarei todos os fóruns de articulação e diálogo com a sociedade civil para conscientizar e mobilizar os brasileiros contra essa nefasta medida e, com os instrumentos democráticos previstos no Congresso Nacional, lutar para barrar esse retrocesso.
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* Nilto Tatto é deputado federal pelo PT de São Paulo. Foi presidente da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados em 2017 e atualmente coordena a Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara.