Maria Helena Castro* e Mariza Abreu**
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), com vigência de 1998 a 2006, e depois o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), de 2007 a 2020, foram e são essenciais para o financiamento da educação básica pública.
> Veja quanto cada estado e município deve receber da União no Fundeb
Esses fundos reduziram a diferença do valor anual por aluno (VAA) disponível para a educação entre os entes federados no país. São 27 fundos estaduais, com redistribuição de recursos entre a rede estadual e as municipais, e mais a complementação da União, no Fundeb correspondente a 10% do total da contribuição dos Estados, DF e Municípios. Os recursos da União são destinados aos nove Estados com menor VAA: AL, BA, CE, MA, PB, PE, PI, AM e PA.
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Segundo estudo da Câmara dos Deputados (CD), considerando todos os recursos vinculados para a educação, em 2015 sem Fundeb o menor valor por aluno ano total (VAAT) seria no Município de Turiaçú/MA no valor de R$ 572, e o maior em Pinto Bandeira/RS, de R$ 56.014. Com a redistribuição intraestadual e a complementação da União ao Fundeb, que beneficia o MA, essa diferença fica em R$ 2.937 em Turiaçu e R$ 19.511 no Município de Pinto Bandeira.
Há consenso no debate público que o Fundeb não pode acabar. Após mais de três anos de debates e audiências públicas no Congresso Nacional, no dia 21/07/2020 foi aprovada a PEC do novo Fundeb pelo plenário da CD. A primeira versão do Parecer de plenário apresentada em 17/07 foi alterada nos últimos dias antes da votação porque o governo federal apresentou uma proposta depois dessa data. Por isso, há dispositivos do texto final que não foram anteriormente debatidos.
PublicidadeA PEC aprovada na CD tem vários pontos positivos: transformação do Fundeb em mecanismo
permanente de financiamento da educação básica pública; manutenção dos 27 fundos estaduais com a mesma cesta de recursos; ampliação do mínimo para a complementação da União ao Fundeb dos atuais 10% para 23% do total da contribuição de Estados, DF e Municípios ao Fundo; aperfeiçoamento da função redistributiva do Fundeb, por meio do chamado modelo híbrido, com alocação de parte complementação da União pelo VAAT (solução possível, pois o Comitê Técnico do Fundeb do Todos pela Educação defendeu o VAAT para a redistribuição intraestadual e toda a complementação da União); progressividade do aumento da complementação da União ao novo Fundeb, entre 2021 e 2026; vedação do uso dos recursos do salário educação para a complementação da União ao Fundeb (hoje não utilizado, mas possibilidade presente em minutas anteriores de Substitutivo da CD); destinação de parcela da complementação da União para a educação infantil.
Entretanto, há pontos polêmicos que precisam ser aperfeiçoados, alguns deles já presentes no
Substitutivo da CD de 17 de julho antes da negociação final com o governo. É polêmica a inclusão do
custo aluno qualidade (CAQ) na CF. Bandeira dos movimentos sociais alinhados a partidos de
esquerda, o CAQ consiste em uma lista extensiva de insumos, com valores monetários atribuídos a cada um deles, variáveis conforme a etapa de educação básica, considerados por seus defensores como indispensáveis para uma educação de qualidade e próximos dos custos dos países desenvolvidos. Essa comparação é insensata, pois não considera a diferença do PIB per capita, menor no Brasil, e a proporção da população em idade escolar, maior em nosso país. Com certeza, padrões mínimos como condição para a qualidade e equidade da educação já se encontram previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Entretanto, a palavra custo implica precificação, e mesmo preço para todas as tipologias e tamanhos de escola. Por exemplo, é claro que a leitura deve ser estimulada em todas as unidades escolares, mas escolas com poucas salas de aula, às vezes uma ou duas, precisam de um espaço físico chamado de biblioteca e de bibliotecária? Além disso, como o cálculo do CAQ vai considerar as diversidades regionais? Com certeza o prédio escolar deve oferecer condições adequadas de temperatura e ventilação, mas será o mesmo no semiárido do Nordeste e no inverno do Sul? Mesma engenharia e arquitetura e mesmo valor monetário? De acordo com dados dos defensores do CAQ, em 2020 o custo da creche parcial seria R$ 2.668 mensais, R$ 32.011 por ano. Nem a creche privada da alta classe média nas cidades grandes do Sudeste tem esse valor. A definição desse custo geraria inviabilidade de cumprimento da Constituição e da lei de regulamentação e, portanto, intensa judicialização.
Controversa é também a vedação do uso dos recursos vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) para pagamento de inativos e pensionistas. Com dados de 2015 a 2018 apresentados em estudo da CD, quinze Estados não cumprem o mínimo de 25% para MDE: AC, AL, AM, BA, ES, GO, MT, MG, PG, PE, RR, RJ, RN, RS e SC, sendo que em 11 deles aposentadorias e pensões são incluídas nesse percentual.
De fato, no orçamento público, educação e previdência são funções diferentes e pagar proventos e pensões não é manter nem desenvolver o ensino. Entretanto, vários tribunais de contas no país têm aprovado os balanços de governos com essa distorção. Se suprimir esse dispositivo é ruim para o financiamento da educação, manter o mesmo sem regra de transição implicará descumprimento da CF já em 2021, contencioso jurídico e fiscal em vários Estados e alguns Municípios. A solução para esse problema é a inclusão pelo SF de regra de transição no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da CF e, na volta da PEC à CD, a manutenção desse acréscimo.
Ainda no Substitutivo da CD de 17 de julho consta a alocação de parte da complementação da União
ao Fundeb por evolução de indicadores de atendimento e melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades, proposta alinhada com a bancada de orientação liberal. Com certeza, a preocupação é meritória, pois mais recursos não geram necessariamente mais resultados. Porém, pode ser mais consequente alocar recursos por meio de programas para indução de educação com qualidade e equidade, pois distribuir recursos por resultados, sem considerar os fatores externos que impactam a aprendizagem e os processos da gestão educacional, pode gerar injustiças e aumento da desigualdade entre as redes de ensino, dando mais para quem já faz mais.
Entre os pontos controversos introduzidos na última negociação com o governo, destaca-se a subvinculação de parte da complementação da União para despesas de capital. Isso não se justifica, pois, além das despesas com pessoal, são imprescindíveis outras despesas correntes de custeio. Essa subvinculação contribuirá para engessamento da gestão educacional, podendo implicar, por exemplo, realização de despesas anuais desnecessárias com capital em alguns entes federados, em prejuízo de despesas de custeio. Além disso, como essa subvinculação refere-se à parcela da complementação da União a ser alocada pelo VAAT, fica pouco clara sua intencionalidade que poderia ser, por exemplo, a entrega pela União de parte da complementação diretamente em obras ou aquisição de equipamentos aos entes federados, hipótese que fere a autonomia federativa.
Destaca-se também a inclusão na PEC do Fundeb de novo dispositivo com referência ao art. 213 da CF, para dispor que, na falta de vagas na rede pública, será admitida a destinação de recursos do Fundeb para instituições conveniadas na educação básica. No atual Fundo, isso já ocorre na educação infantil e educação especial. Difícil entender a intenção desse texto. Seria permitir conveniadas no ensino fundamental e médio? Entretanto, em regra não há falta de vagas na rede pública nessas duas etapas da educação básica.
Por fim, a versão do Substitutivo apresentada no dia 21/07, e aprovada no mesmo dia pela CD, destina parte de recursos da complementação da União à educação infantil. Como divulgado pela imprensa, o governo propôs destinar parte dos recursos federais do novo Fundeb para o programa Renda Brasil, a fim de transferi-los a famílias de baixa renda com crianças pequenas.
À medida que recursos do Fundeb somente podem ser aplicados em educação escolar, e não em ações de assistência social, terminou-se ampliando a complementação da União ao Fundo para 23%(quando inclusive os partidos de esquerda já haviam concordado com os 20% do primeiro parecer de plenário da CD) e destinando parte dessa complementação para financiamento da educação infantil.
É correto priorizar a primeira infância, entretanto, como esses recursos federais são parcela da complementação da União a ser alocada pelo VAAT, não chegarão a todos os Municípios com crianças de famílias de baixa renda matriculadas em creches ou pré-escolas. Ao contrário, por meio do Programa Brasil Carinhoso, criado por demanda dos Municípios em 2012, e esvaziado pelo governo federal a partir de 2016, a União transferia recursos aos Municípios e ao DF para financiamento de creches de acordo com matrículas de crianças cadastradas no Censo Escolar e pertencentes a famílias do Programa Bolsa Família.
A complementação da União ao Fundeb para educação infantil não vai beneficiar Municípios que receberam recursos do Brasil Carinhoso nos três Estados do Sul, SP e RJ, três Estados do Centro-Oeste, e também o DF, e AP e RR na região Norte. Por exemplo, em 2015, no RS 262 Municípios receberam recursos do Brasil Carinhoso e nenhum receberá complementação da União ao novo Fundeb; em SP, 404 beneficiados pelo Brasil Carinhoso e apenas um, somente em 2026, receberá recursos da União por meio do Fundeb; em GO, 97 atendidos pelo Brasil Carinhoso e, no novo Fundeb, será nenhum Município em 2021, 2 em 2022, 7 em 2023, 9 em 2024, 23 em 2025 e 32 em 2026; em RR, 6 Municípios receberam recursos do Brasil Carinhoso e nenhum receberá complementação da União ao novo Fundeb.
Como essa destinação de recursos para a educação infantil decorreu da proposta do governo de destinar verbas para um programa de assistência social, é possível esperar que a alocação dessa parcela da complementação da União ao novo Fundo venha a considerar indicadores socioeconômicos. Portanto, seria o mesmo que os recursos do Programa Bolsa Família ou do auxílio emergencial distribuído durante a pandemia do coronavírus não fossem repassados pela União a essas Unidades da Federação. Afinal, em Estados com mais recursos também existem indivíduos em extrema pobreza ou, na pandemia, que perderam o emprego ou a possibilidade de exercer sua atividade autônoma.
Com certeza, o principal mérito da PEC em apreciação no Congresso Nacional é transformar o
Fundeb em mecanismo permanente da educação básica, aumentar a complementação da União e potencializar o efeito redistributivo do Fundo. Com o novo Fundeb, o menor VAA vai crescer de R$ 3.700 para R$ 5.700 em 2026. Em um país continental, diverso e desigual como o nosso, o efeito redistributivo do Fundeb, como já vimos antes, é imprescindível para que se possa assegurar educação com qualidade e equidade à população em todos os Municípios brasileiros. Porém, recursos financeiros em quantidade adequada consistem em condição necessária, mas não suficiente, para assegurar educação de qualidade. A qualidade depende de como esses recursos são utilizados. Mais recursos e melhor gestão devem caminhar juntos.
Neste momento em que a PEC do novo Fundeb encontra-se para apreciação no SF, o principal embate é entre os que defendem que os senadores não devem alterar o texto da CD e aqueles que defendem a necessidade de aperfeiçoá-lo de forma a evitar polêmicas ou impossibilidades na operacionalização do novo Fundo. Quem defende que o SF aprimore o texto da CD, argumenta que há tempo hábil para isso, pois não se corre o risco de repetir o ocorrido com o atual Fundeb, quando a Emenda Constitucional 53 foi promulgada em 19/12/2006 para entrar em vigência em 01/01/2007 e, para regulamentação do Fundo, o Executivo precisou editar a Medida Provisória 399, em 28/12/2006, convertida na Lei 11.494, de 11/06/2007.
*Maria Helena Castro, ex-secretária de educação de SP.
** Mariza Abreu, , ex-secretária de educação do RS
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