A escola sem partido não é sobre escola nem sobre educação. Seus principais defensores, pelos menos os mais públicos, nunca demonstraram uma preocupação real com a educação. Fosse o contrário, teriam estudado o sistema escolar brasileiro, sistemas escolares de outros países e certamente chegariam à conclusão de que a escola não ensina português e matemática, que dirá doutrinar alunos; concluiriam, também, que as próprias redes de ensino e escolas possuem mecanismos democráticos de participação que poderiam dar conta de mediar esses conflitos no interior da escola.
Uma lei federal nos moldes dessa proposta não trará nenhuma melhoria à educação, estimulará a perseguição a professores e tende a ampliar o nível de violência nas escolas – que já é um grave problema.
Essa proposta não é sobre educação. É sobre se beneficiar politicamente, não importando os custos para o país. Para essa estratégia política, o mote da “desideologização” tem se mostrado um terreno fértil.
Funciona mais ou menos assim: cria-se o inimigo, que no momento é a esquerda, representada pelo fantasma do comunismo, que pode ser qualquer coisa; praticamente tudo pode ser resumido a uma uma grande conspiração comunista, sendo as escolas e universidades o lugar onde proliferam; por meio de vídeos, memes, notícias, sites, canais de YouTube, WhatsApp disseminam-se “fatos” que comprovam a existência e os perigos deste inimigo; identificado o problema, é apresentada uma “solução simples” para acabar com o inimigo; a partir daí, passam a existir no mundo apenas dois tipos de pessoas: aqueles que apoiam a “solução” e os comunistas, contrários à solução, em geral, movimentos sociais, intelectuais, pesquisadores, educadores, sindicatos, professores, partidos políticos, imprensa; a polarização se acirra e a agenda ganha ainda mais visibilidade e vai avançando, principalmente com a maior presença nos espaços de poder de pessoas que defendem a “solução”.
Leia também
Essa fórmula tem sido aplicada pelo menos desde 2013 por esses grupos de direita e se mostraram eleitoralmente eficientes e a tendência é que continue, basta olhar as declarações do presidente eleito, após sua vitória, sobre a Universidade de Brasília (UnB), sobre escola sem partido, sobre questões do Enem, com direito à entrevista do Ministro da Educação endossando a visão bolsonarista [1] e os ataques sofridos nas redes sociais pela presidente do Inep, Maria Inês Fini, que fez uma defesa veemente, corajosa e coerente do exame [2].
> “Governo não manda no Enem”, diz presidente do Inep; Bolsonaro criticou questões do exame
É um cenário angustiante porque observamos o modo como operam, vemos a onda se formar e ganhar força. Em nome da “desideologização”, que, na verdade, é, em si, um processo de ideologização e de eliminação da pluralidade de ideias, do debate e cerceamento à liberdade de expressão, desorganiza-se todo o sistema educacional, que tem tantas outras deficiências reais que precisariam ser discutidas e trabalhadas. A cada denúncia, a cada conflito não resolvido pelo diálogo, a cada processo judicial, a cada vez que um professor sentir medo, a qualidade da educação será deteriorada.
O projeto da “Escola sem Partido” vai contra os bons princípios de gestão. Em um sistema complexo como é a educação brasileira, com 183.743 escolas, 43.787.195 matrículas da educação infantil ao ensino médio, as mudanças devem ser muito bem pensadas e planejadas de forma horizontal e dialógica junto com as redes de ensino e com todos os sujeitos do processo – educadores, alunos e comunidade – com objetivos muito claros e diálogo aberto com as redes e escolas. Não se faz de cima para baixo, a partir de uma suposta doutrinação que ninguém sabe especificar o que é, qual sua abrangência e como identificar.
A marcha da insensatez segue adiante. Nossos representantes no Congresso Nacional, que deveriam ser os primeiros a apontarem os riscos de retrocesso para a educação brasileira com a aprovação do projeto da escola sem partido, estão se esforçando para aprová-lo, manipulando e mentindo à sociedade brasileira.
Esse filtro – o Congresso Nacional – não tem funcionado e, por isso, nossa única alternativa é debater esse projeto da escola sem partido de forma ampla na sociedade, mostrando que é um projeto descolado da realidade, não baseado em evidências, não implementado com sucesso em nenhum lugar do mundo e não irá melhorar a educação, pelo contrário, a tendência é ampliar a insegurança de professores, alunos e famílias e piorar a aprendizagem.
É imperativo despertar corações e mentes de milhões de brasileiros que se importam com a educação. É um trabalho de formiguinha, de milhões dialogando com milhões, aprendendo, ensinando e construindo confiança. Essas ações serão importantes para evitar que o projeto seja aprovado e, caso seja, para evitar abusos em nome desta lei.
* Rogério da Veiga é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, trabalhou no Ministério da Educação, no Ministério do Desenvolvimento Social e na Prefeitura de São Paulo.
[1] https://jovempan.uol.com.br/programas/jornal-da-manha/apos-criticas-a-questao-sobre-dialeto-de-travestis-ministro-reconhece-que-enem-tem-exageros.html
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/06/politica/1541536926_746995.html
Mais do autor:
> Política de drogas: por que persistir no erro?
Se você tem uma visão diferente sobre este tema e gostaria de vê-la publicada aqui, mande sua sugestão de artigo para redacao@congressoemfoco.