Tempos nebulosos e sombrios os que estamos vivendo. No exato momento da publicação deste artigo a COVID-19 já terá levado mais de 210 mil vidas em todo o mundo e mais de 6 mil vidas no Brasil. Sem falar na enorme subnotificação que começa a ser desvendada, principalmente nos países emergentes e nos países mais pobres. Os sistemas nacionais de saúde estão sendo testados em seus limites. O mundo inteiro está mergulhado num momento desafiador. A presente crise promove a combinação perversa entre a violenta pandemia do coronavírus e o fantasma de uma crise econômica inédita e devastadora.
Felizmente, na saúde, com todas as mazelas e problemas, o SUS é um sistema nacional unificado e coordenado, com capilaridade e descentralização de ações. Sofre sempre o problema crônico de falta de recursos, mas heroicamente resiste e enfrenta a epidemia. A saúde suplementar complementa as ações publicas cuidando de 47 milhões de brasileiros. Mas o sistema de saúde pode colapsar. O resultado só não é pior graças à correta política de isolamento social liderada pela a antiga equipe do Ministério da Saúde, por governadores e prefeitos.
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Poderia me dedicar, nessas linhas, a discutir a crise política derivada da saída do Ministro Sérgio Moro, os conflitos permanentes, reavivados nos últimos dias, entre os poderes da República, a falta de rumo, na saúde e na economia, fruto dos problemas internos do Governo Federal, a expansão geométrica da epidemia entre nós. Mas preferi homenagear os milhares de profissionais de saúde e gestores que neste momento defendem, a duras penas e com enormes sacrifícios, as nossas vidas, nas pessoas de dois grandes protagonistas da história do SUS: o grande sanitarista Eugênio Villaça e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. Afinal, a missão do SUS é cuidar das pessoas e suas ações são feitas por pessoas, e entre elas alguns exercem papel destacado de liderança.
Eugênio Villaça completou, no último dia 24, oitenta anos. Vindo lá de sua Pará de Minas e inspirado na experiência de seu pai, que desenvolvia trabalho social num posto de puericultura, assumiu desde cedo o compromisso explicitado nos agradecimentos em seu livro “As Redes de Atenção a Saúde”, uma das suas principais publicações entre outras dezenas: “projetos de saúde exigem amor aos seus sujeitos, especialmente às pessoas mais humildes”.
PublicidadeFormou-se em Odontologia na UFMG e se tornou um reconhecido cirurgião em Belo Horizonte e professor da Universidade. Uma virada em sua vida aconteceu a partir do curso que fez na Escola Nacional de Saúde Pública, se especializando em planejamento de saúde. Abandonou sua promissora carreira de cirurgião odontológico, que lhe daria uma vida material muito mais tranquila, para se dedicar de corpo e alma à saúde pública.
A prática sem boa teoria é cega. A teoria sem a ação transformadora é estéril. Eugênio se transformou em um dos mais importantes sanitaristas do Brasil, um dos autores mais lido pelos gestores e profissionais do SUS e atuou em centenas de municípios brasileiros e em experiências marcantes no Paraná, Ceará e Minas Gerais.
Eugênio Villaça concentra uma rara combinação de qualidades: rigor e qualidade intelectual, inquietação existencial, espírito público, experiência acumulada, criatividade, integridade pessoal, aguçado senso crítico, compromisso social, espírito militante e capacidade de trabalho e liderança. Sempre foi uma referência para organizações multilaterais como OMS, OPAS, BIRD, BID e de acordos de cooperação internacional. Aos 80 anos, continua militando como principal consultor do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais – CONASS, e contribuindo para a evolução e superação dos gargalos desta política pública de saúde vitoriosa chamada SUS.
Sempre soube que o SUS era uma obra coletiva em permanente construção, como na escolha do poema de João Cabral de Melo Neto para abrir um de seus livros que “um galo sozinho não tece a manhã, ele precisará sempre de outros galos… para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”. O SUS é obra de milhares e ele influenciou e qualificou muitos deles.
Lutou e luta pela primazia da atenção primária como centro de gravidade ordenador das redes de atenção integral à saúde e alertava, não por veleidade teórica ou preciosismo, para a imprecisão de alguns conceitos, como baixa, média e alta cumplicidade ou atenção básica, como se o nível primário de atenção não fosse central e pudesse ser desqualificado como uma coisa trivial, simples, sem importância. Lembro bem dele questionando nossa equipe em Minas Gerais: “O que é mais complexo um transplante ou fazer uma pessoas parar de fumar ou beber exageradamente?” E completava: “Nenhum dos dois, são ambos complexos. Um denso em tecnologia, outro em cognição e relacionamento humano”.
Em seu centrado otimismo cunhou uma frase que virou um mantra no CONASS: “O SUS é uma solução com problemas e não um problema sem solução”. Nos oitenta anos de Eugênio Villaça, a homenagem a todos os sanitaristas que impulsionaram com suas ideias a construção do sistema público de saúde brasileiro, que heroicamente nos defende da COVID-19.
Luiz Henrique Mandetta é médico ortopedista, nascido no Mato Grosso do Sul, com formação em ortopedia pediátrica nos EUA. Foi secretário municipal de Campo Grande, dirigente da UNIMED lá, deputado federal de 2011 a 2018. Compartilhei com ele durante oito anos as manhãs das quartas-feiras na Comissão de Seguridade Social, Saúde e Família da Câmara dos Deputados. Ele era o mais “caxias” da turma toda, e olha que eu era muito aplicado também. Mas ele era o único, o único mesmo, que estudava na véspera todos os projetos em pauta. Sério, dedicado, inteligente, experiente, estudioso, competente e entusiasmado pelas lutas em favor da saúde. Aos 54 anos, em 2019, foi nomeado Ministro da Saúde.
Tivemos grandes ministros da saúde como Adib Jatene José Serra, entre outros. Mandetta passou a integrar a lista dos melhores ministros de toda nossa história. As crises forjam os grandes líderes. Durante o enfrentamento do coronavírus, Mandetta transformou-se em uma referência para a população brasileira. Com seu carisma, profissionalismo, seriedade e capacidade de comunicação conseguiu mobilizar o país em torno da única estratégia disponível para o enfrentamento da pandemia: o isolamento social. Ganhou a confiança e a admiração de milhões de brasileiros. Deixou um vácuo enorme com a sua saída.
Não há saídas simples para problemas complexos. Erguer um sistema público de acesso universal e atenção integral à saúde não é nada fácil num país que tem um investimento público per capita três vezes menor que Portugal, quatro vezes menor que a Espanha, de sete a nove vezes menor que Itália, Canadá, Reino Unido e França.
Se é verdade que o SUS tem graves limitações, principalmente financeiras, seria impossível imaginar a defesa da vida diante da agressiva pandemia da COVID-19 sem a existência do SUS. Esses 31 anos de construção do SUS é obra de milhares de gestores, profissionais de saúde, conselheiros de saúde, espalhados anonimamente por cada um dos municípios brasileiros. Mas o seu sucesso relativo deve-se em grande parte às ideias e ações de pessoas com Eugênio Villaça Mendes e Luiz Henrique Mandetta. A eles nossa homenagem e gratidão.
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