Thiago Carneiro*
Será que estamos brigando pelos motivos certos?
As discussões políticas que dominam as redes sociais têm frequentemente caído em dicotomias simplistas. Os defensores de cada ponto de vista temem “perder o debate”, ao invés de buscarem o entendimento. Não há espaço para o diálogo, há apenas uma disputa cega para sair vencedor com os melhores argumentos.
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Pego aqui como exemplo as visões reducionistas de “capitalismo” e “comunismo” que pululam nas redes. Reduzindo a obra de Adam Smith a uma frase, o capitalismo promete que cada um receberá sua riqueza conforme seus méritos. Reduzindo a obra de Karl Marx a uma frase, o comunismo promete que cada um receberá uma parcela de riqueza “conforme sua necessidade”.
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Mas há um problema. A distribuição da riqueza conforme os méritos, tanto quanto a distribuição conforme a necessidade, não passam de promessas. São utopias. O mundo real não é tão simples que possa caber em um livro- muito menos em um tweet.
PublicidadeÉ muito comum encontrarmos países capitalistas adotando soluções “comunistas” para resolver problemas sociais. Programas de distribuição de renda como o Bolsa Família não são exclusividade do Brasil. Programas semelhantes existem na França, Canadá, Japão, Estados Unidos e outros países capitalistas avançados. Existem para corrigir a profunda desigualdade que o método de distribuição de riqueza “por mérito” acaba criando. Além disso, o seguro-desemprego e a previdência (aposentadoria e renda em caso de doenças laborais) são comuns em países capitalistas avançados. Isto resulta do reconhecimento de que a distribuição da riqueza “por mérito” não assegura às famílias renda suficiente para se manterem em períodos de crise, em caso de doença, e nem para os trabalhadores se sustentarem na velhice.
Os países comunistas também foram forçados a reconhecer que seus sistemas econômicos fechados não funcionam nada bem. Não é possível desconectar a economia de um país do restante do mundo, para produzir uma distribuição de renda artificialmente controlada na economia doméstica. A partir do momento em que as fronteiras são inevitavelmente abertas, o ambiente concorrencial se impõe. Os salários praticados começam a sofrer influência do mercado externo. A igualdade perfeita vai por água abaixo. Observe que a China, maior país “comunista” do mundo, tem uma economia pujante de fazer inveja aos países capitalistas. O governo chinês abandonou completamente a promessa de distribuição de renda equitativa e passou a permitir a exploração do trabalho operário com jornadas extenuantes, imitando a Inglaterra do início da Revolução Industrial. Karl Marx certamente não teria boas lembranças se visitasse uma fábrica chinesa de smartphones.
Para complicar, as duas promessas utópicas se dissolvem diante dos mesmos problemas: a corrupção e o nepotismo.
Todos os países comunistas produziram sua casta de “privilegiados”, geralmente formados por pessoas próximas aos governantes, que possuíam uma renda melhor do que o restante da população. Quebravam, assim, a promessa da renda equitativa.
Os países capitalistas veem a promessa da meritocracia derreter com as indicações de parentes dos governantes para postos privilegiados no governo, em empresas públicas, o mesmo na iniciativa privada, em troca de favores. Se a (má) distribuição de renda é “parte do jogo” no capitalismo, o nepotismo é a violação da regra.
Essas premissas que fundamentam o capitalismo e o comunismo são, sim, utopias. São ideais inalcançáveis. Persegui-los eternamente pode levar ao engodo, a negligenciar as falhas das versões reais dos sistemas econômicos.
As teorias econômicas de Smith e Marx são muito mais complexas e profundas do que o exposto aqui. E eles não são os únicos autores a serem lidos e conhecidos. Mas as discussões nas redes sociais são, sim, reducionistas e polarizadas em versões reducionistas desses dois autores.
Embora esses autores estivessem tentando falar de economia, suas obras fundaram os princípios ideológicos que hoje estão em disputa. É uma repetição da Guerra Fria, mas na versão Século XXI. Já devíamos ter aprendido alguma lição com as experiências do passado, não é?
Como resolver?
É preciso reconhecer que não há sistema perfeito. A riqueza não será distribuída igualmente entre todos. Também não será distribuída conforme os méritos. O remédio aos defeitos do comunismo pode estar no capitalismo, e o remédio para os defeitos do capitalismo pode estar no comunismo.
Observe, por exemplo, como são elaborados os Projetos de Lei. Pessoas de ideias capitalistas e comunistas normalmente se confrontam nos parlamentos, no Brasil e no Mundo. Os Projetos de Lei não raramente nascem radicais, ou seja, nascem “muito comunistas” ou “muito capitalistas”, para dizer de um modo simples. Mas, após serem submetidos a várias rodadas de debate, os extremismos são podados. O bom texto é aquele que termina mais equilibrado, pois precisa de votos de “capitalistas” e de “comunistas” para ser aprovado e virar Lei. O processo legislativo funciona bem quando parlamentares baixam a guarda buscam pontos de convergência.
Buscar pontos de convergência pode ser um bom exercício para se praticar nas redes sociais. O debate termina bem quando os debatedores saem, ambos, com uma visão mais clara e realista da sociedade em que vivemos.
Enquanto perdemos nosso tempo defendendo as promessas utópicas do capitalismo e do comunismo, o mundo real fica à espera de soluções para os problemas reais. É preciso ter pé no chão. Nenhum país é 100% capitalista ou comunista. São apenas países reais, com problemas reais, com economias reais. O que vamos fazer para resolver nossos problemas de hoje?
*é doutor em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília com a pesquisa Engajamento Político: Participação Política no Brasil e na Suécia, predito por Estereótipos sobre Parlamentares, Educação Política e Contágio Comportamental.