Em setembro de 2020, o governo enviou ao Congresso a PEC 32, uma proposta de reforma administrativa. Após a análise de juristas, especialistas em administração pública e representantes de servidores públicos, foram apontadas diversas falhas no texto que expõem um processo de construção açodado e pouco plural.
Pedro Pontual, presidente da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (Anesp), diz que a proposta encaminhada pelo governo parte de um diagnóstico preconceituoso sobre o funcionalismo público e não de uma pesquisa séria, amparada em dados sobre a qualidade do serviço público brasileiro.
Segundo Pontual, o texto tem problemas em sua justificativa, em suas premissas, e no planejamento de sua implementação. Ele avalia que pode até haver boas intenções na concepção do texto, mas que elas não se traduzem nas propostas apresentadas. “Quando você vai mexer na Constituição, não basta achar, não basta querer”, diz.
Ao propor a reforma administrativa, o governo parte da avaliação de que o Estado brasileiro é caro, inchado e ineficiente. É este mesmo o diagnóstico do serviço público Brasil?
Esta ideia do governo é preconceituosa. Não foi feito um diagnóstico com dados que nos permitam chegar a essa conclusão. Quem tem uma relação mais próxima com o setor privado acaba mesmo desenvolvendo essa ideia de que o setor público é ineficiente. Quem nasce e vive lá na Faria Lima [pólo do mercado financeiro em São Paulo] pensa assim. Quando vem uma pessoa daí para o governo ela traz essa percepção. Eles chegaram ao governo com essa ideia e não tiveram a preocupação de perguntar: “é isso mesmo?”
O material do governo que embasa a reforma – e que só veio a público depois de ser obtido pelo jornal O Globo – parte da conclusão de que o Estado é caro e vai atrás de dados para confirmar isso. É uma seleção de dados feita para levar a esta ideia prévia.
Os erros contidos na proposta de reforma reforçam a tese de que houve pouco compromisso com a qualidade desse diagnóstico. O material que a embasa é raso, de baixa qualidade.
Quais as consequências desse diagnóstico ruim para a proposta?
Como o texto não partiu de um diagnóstico multidisciplinar e que envolvesse todos os níveis da federação, tem muitas falhas nas minúcias que minam completamente o serviço público brasileiro. Não vou presumir má fé. As pessoas podem acreditar mesmo naquilo que está ali, mas não pararam para ouvir. Quando você vai mexer na Constituição, não basta achar, não basta querer.
O que deveria ter sido feito antes para evitar esses erros?
Uma mudança como esta deveria ser submetida a uma discussão que deveria ocorrer ao longo de alguns anos, de modo diplomático e compromissado. Na reforma administrativa que foi feita na Austrália, por exemplo, o embaixador disse em uma audiência pública na Câmara que uma comissão ficou 18 meses estudando o tema, fizeram um relatório de 800 páginas e a partir daí apresentaram oito propostas de mudança.
Deveria ter havido um aprofundamento técnico prévio, antes de o texto ir para o Legislativo. A Câmara não é o local de debate para o grau de deficiência técnica que tem esta PEC.
Quais as consequências da aprovação do texto como está agora?
É um texto em conflito com a realidade, que não parece ter tido qualquer tipo de preocupação com as dificuldades de implementação mínimas. O Ministério da Economia joga o país inteiro num salto de fé em direção ao abismo. Se essa PEC for aprovada assim vamos ter um país com tudo desorganizado. A PEC é niilista, implode tudo, dá um control+alt+del no Estado de bem estar social.
Se aprovada, a proposta muda o cotidiano do serviço público, mas sem uma orientação, sem orçamento. O dia seguinte à aprovação dessa PEC é o caos absoluto. O STF vai ter que reescrever a PEC toda, tudo vai ter um contencioso.
O que significa a inserção do princípio da subsidiariedade na Constituição?
O princípio da subsidiariedade, que está no caput do artigo, prevê, por exemplo, que pode-se usar dinheiro público para fazer uma chamada cooperação com entidade privada com fins lucrativos. Aí esse dinheiro, de acordo com permissão explícita do caput, vai poder pagar salário e uso dos espaços dessa entidade.
Ao ter uma previsão desse tipo, há um conflito com a realidade, de supor uma capacidade privada que não é real.
Sempre que vai dinheiro público para alguma entidade, existe necessariamente uma equipe que avalia relatórios do uso daquele dinheiro. Isso quem tem que fazer o controle é o próprio ministério, mas até agora não sabemos, por exemplo, se o desenho da PEC vai permitir que o servidor responsável por essa análise de contas seja concursado, com estabilidade. Se não for, corre-se o risco de o chefe determinar a aprovação de contas irregulares sob pena de demitir o funcionário.
Estamos diante de uma reforma administrativa ou de uma reforma de estado?
Ela é aquém de uma reforma administrativa na medida em que trata só de questões de pessoal, de recursos humanos, mas em alguns momentos parece querer ir além, parece haver um contrabando de assuntos que seriam de outros temas que são, na verdade, pontos que disfarçam uma forma que permita o uso do dinheiro público sem fazer discussão adequada. É um salto de fé de quem escreveu.